#1: II FRIACA - Festival de Roteiro Audiovisual de Curitiba
As etapas da escrita de um roteiro, mulheres no cinema, estereótipos e muitas reflexões sobre processos criativos na programação do primeiro dia do FRIACA
Entre os dias 12 e 14 de setembro de 2024 acontece em Curitiba a segunda edição do FRIACA - Festival de Roteiro Audiovisual de Curitiba. O festival conta com uma programação de diversas oficinas, palestras, masterclasses, debates e estudos de caso inteiramente gratuita. Além disso, também com um laboratório e concurso de desenvolvimento de roteiros, com uma premiação em dinheiro para os melhores projetos.
O festival tem foco em discutir e celebrar a escrita de roteiros e foi muito interessante ouvir as discussões desse primeiro dia, que me trouxeram várias reflexões não só sobre o cinema, mas também sobre a escrita e o processo criativo como um todo. Muitas vezes, apenas assistindo os filmes e séries, não temos noção do tamanho do trabalho que existe por trás das câmeras e do tempo que leva até que uma ideia se transforme naquilo que estamos vendo na tela do cinema ou da TV. Compreender um pouco mais desses bastidores certamente traz outras perspectivas para quando vamos pensar e analisar um filme e foi muito legal poder ouvir os próprios criadores falarem de seus trabalho e processos.
Participei do evento apenas no primeiro dia, conferindo painéis e masterclasses desde os horários da manhã até os da noite, escolhendo aqueles que me chamavam mais a atenção (algumas mesas são simultâneas!). Calhou que, com exceção da abertura, toda a programação que eu vi foram de mulheres e isso tornou tudo ainda mais instigante para mim. Nessa edição, conto um pouquinho do que eu vi e as reflexões ótimas que ouvir essas mulheres me trouxeram.
Pela manhã, tivemos a mesa de abertura, com a apresentação da programação, uma fala da equipe de curadoria e apresentação dos roteiros que participarão do laboratório. Foram 10 roteiros selecionados entre 414 submissões (!!). A equipe apontou que, entre os temas que mais se sobressaíram nas submissões, estão as questões envolvendo tecnologia, inteligência artificial e internet e também as relações familiares.
No primeiro horário da tarde, tivemos um painel chamado Mulheres do Roteiro às Telas, com a participação de Ana Catarina Lugarini, Raiane Rodrigues, Bea Gerolin e Saravy, mulheres que trabalham em diferentes frentes do processo de elaboração de um filme, entre direção, roteiro, atuação, produção e direção de arte. O painel foi incrível não só para pensar a escrita voltada para o cinema, mas também a escrita como um todo, os processos criativos e como funciona o trabalho em um campo como esse.
Foi falado muito sobre a situação de estar envolvida em diversos trabalhos diferentes ao mesmo tempo, exercendo funções distintas e a dificuldade de escrever quando a parte prática do trabalho exige mais da nossa energia. Elas trouxeram várias perspectivas pessoais com relação a como encontrar um equilíbrio entre a prática e a de criação. Todas salientaram a importância primordial de uma rede de apoio, de pessoas que estão ali para te incentivar e dar sugestões e debater as suas ideias quando você precisa. Além disso, falaram sobre como o cinema pode ser um campo difícil e da necessidade de criar os próprios caminhos, de construir o trabalho que você quer fazer e abrir o espaço para colocar os seus projetos no mundo. Também falaram um pouco das suas próprias experiências e trajetórias ao longo dos anos em suas áreas de atuação.
São reflexões de quem trabalha em um campo específico, mas fiquei pensando que tudo o que foi falado dialoga muito e pode ser aplicado nas diferentes áreas criativas em que muitas de nós trabalhamos. A dificuldade que a gente tem em escrever e lidar com as várias outras coisas que também fazemos ao mesmo tempo, dar conta da vida e não desistir de nossos projetos e as questões que temos com nos sentirmos seguras e confiantes para tocar nosso trabalho e trazê-lo ao mundo em ambientes que muitas vezes são hostis e opressores, especialmente quanto estamos inseridas em campos de trabalho dominados por homens brancos, como é o caso do cinema.
Também se falou bastante sobre os aspectos práticos que envolvem a elaboração de um filme, e a necessidade, muitas vezes, de adaptar a escrita do roteiro ao orçamento que se tem disponível, principalmente no caso de filmes autorais. Elas levantaram bastante o questionamento de qual é o papel da mulher no cinema e a importância de se contar as próprias histórias.
Ainda sobre a criação, Saravy falou sobre como a publicação é o fechamento desse processo criativo e que, às vezes, é preciso escrever vários e vários roteiros até aprender a fazer roteiros. Acho que isso vale também para qualquer tipo de escrita.
Em seguida, tivemos a masterclass Sobre a construção de personagens e narrativas negras para além dos estereótipos, com Bea Girolin.
Além de cineasta, Bea também tem uma pesquisa sobre a representação de mulheres negras no cinema e foi bem interessante ouvi-la falar sobre a construção de identidades e o quanto essas representações impactam em nossa subjetividade. Bea apresentou diversos estereótipos presentes nos papeis escritos para pessoas negras no passado e que também permanecem em diversas produções de hoje, como a mãe preta, a negra fogosa e sensual, a amiga e a batalhadora, no caso das mulheres; e o bandido, o empregado, o malandro e o homem viril no caso dos homens. Além disso, também o estereótipo do branco salvador nessas narrativas.
Bea apresentou trechos de um documentário chamado A negação do Brasil que analisa alguns desses estereótipos nas novelas mais antigas da Globo e é surreal o tamanho do absurdo. Sítio do Pica-pau amarelo, Escrava Isaura, novelas em que atores brancos eram escalados para o papel do protagonista negro e a lista segue. Bea trouxe também alguns manifestos publicados por realizadores negros brasileiros e apresentação de algumas estatísticas da Ancine sobre projetos inscritos e contemplados em editais. Os números baixíssimos para homens e mulheres negras em relação aos homens e mulheres brancas levanta o questionamento de quem tem acesso aos recursos e dá uma dimensão do longo caminho que ainda precisa ser trilhado para alcançar uma distribuição mais igualitária.
Para encerrar o dia, tivemos a exibição do filme Cidade; Campo, escrito e dirigido por Juliana Rojas, que estreou na seção Encounters da Berlinale deste ano e levou o prêmio de Melhor Direção. A exibição foi seguida de um estudo de caso em que a própria Juliana contou um pouco mais de como foi o processo de desenvolvimento desse roteiro, desde o surgimento da ideia até as últimas adaptações para a versão final.
Cidade; Campo conta duas histórias em que há um processo de imigração acontecendo: na primeira, do campo para a cidade e, na segunda, o caminho inverso. Joana (Fernanda Vianna) é uma mulher que teve a sua propriedade em Minas Gerais engolida pela lama no rompimento de uma barragem e se vê obrigada a ir até São Paulo para morar com a irmã que não vê há muito tempo. Na outra história, Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) são um casal que se muda para o campo quando o pai de Flávia morre e deixa a propriedade para a filha. Em ambos os casos, as protagonistas precisam entender como viver nesse lugar tão diferente daquele em que viviam antes, ao mesmo tempo que convivem com o luto e os fantasmas daquilo e daqueles que já não existem mais.
Ouvir a Juliana falar sobre o filme trouxe uma nova camada de compreensão daquilo que eu havia interpretado apenas assistindo. É incrível ver todos os caminhos que a ideia precisou percorrer até se transformar naquele filme que vemos ali. Foram inúmeras decisões que precisaram ser tomadas durante esse tempo, seja por uma mudança de ideia, das condições externas ou mesmo aquelas por conta de questões práticas e logísticas de filmagem. Juliana contou como as ideias surgiram enquanto ela ouvia, por acaso, uma conversa em um shopping e como esses fragmentos foram tomando corpo até criar esse todo que é o filme. O processo de escrita começou em 2010, foi retomado em 2016 e só agora o filme está em exibição. É sempre importante quando a gente ouve um relato como esse e lembra do quanto o processo das coisas é lento.
Juliana contou como sempre existiu a ideia de fazer um filme em duas partes e sobre como ele começa mais material e vai se tornando mais onírico na parte do campo. A história das personagens mudou muito ao longo do tempo de escrita, com várias adaptações e observações do que acontecia que iam acrescentando novas nuances àquelas personagens. Juliana também contou o quanto dela está no filme e os desafios que existem em elaborar e colocar em prática um roteiro como esse. Há um universo imenso de referências que vão se somando à construção dessa história, desde as notícias do crime ambiental de Brumadinho até relatos do fim do mundo de diferentes povos. Juliana também falou sobre o processo de rimar imagens e imagens com palavras para fazer a gente identificar os pontos comuns entre as duas histórias, além da importância das locações também como personagens dentro de um roteiro.
Esse foi só o primeiro dia do festival, que ainda tem muita discussão boa para acontecer nos próximos dias.
O FRIACA continua acontecendo hoje e a amanhã, 13 e 14 de setembro, no Cine Passeio e você pode conferir a programação completa no instagram e no site do festival. Toda a programação é gratuita, mas as vagas para as palestras são por ordem de chegada e estão sujeitas à lotação das salas. Chegue cedo!