Em Cloud (Kuraudo, 2025, dirigido por Kiyoshi Kurosawa), Yoshii (Masaki Suda) é um jovem japonês que mora em Tóquio e trabalha como revendedor na internet. Seu método consiste basicamente em comprar quantidades de mercadorias abaixo do valor e vendê-las novamente por um preço muito acima do que pagou. Os negócios vão bem, mas Yoshii leva uma vida sem luxos enquanto acumula o dinheiro recebido. Ele trabalha em uma fábrica durante o dia, mora em um apartamento simples e passa despercebido, com sua namorada Akiko (Kotone Furukawa) acompanhando o mesmo estilo de vida.
Mas a rotina muda quando coisas estranhas vão acontecendo aqui e ali e Yoshii percebe que estão atrás dele. Começa então a grande movimentação do filme, com Yoshii se escondendo o máximo possível, enquanto pessoas muito insatisfeitas tentam encontrá-lo para se vingar.
Na superfície, Cloud é um típico filme de vingança, mas a sua primeira camada já mostra esse tipo meio invertido: ao invés de um protagonista que vai atrás dos vilões para se vingar de algo que sofreu, temos várias pessoas vindo para se vingar de nosso protagonista. É um cenário que já corrompe um pouco a ideia de bem contra o mal, ou nós contra eles, dos clássicos filmes do gênero. Nosso protagonista é um vilão ou um mocinho? Como o próprio diretor disse em um vídeo de abertura no início do filme, Yoshii é alguém com uma moral meio duvidosa, que ganha a vida trapaceando outras pessoas. Onde isso o coloca no quadro geral das coisas? E onde ficam as pessoas que ele enganou?
Mas Cloud vai abrindo mais e mais camadas que levantam, de formas mais explícitas ou bastante sutis, outros elementos dessa situação. Há uma crítica ao formato atual do capitalismo, com o neoliberalismo aparecendo não apenas nos negócios virtuais, nos modos de acúmulo e de consumo, mas também no próprio modelo de sociedade onde Yoshii e os outros vivem. Há um conflito geracional entre aqueles que cresceram em um mundo onde a possibilidade de ganhar dinheiro rápido com a internet é algo próximo e tentador e aqueles para quem o trabalho árduo era a única possibilidade de estabilidade e, talvez, ascensão, para uma pessoa comum. Há um questionamento de até onde vamos para alimentar um consumo pelo consumo. Há também acenos para a gamificação das coisas, desde o vício em ganhar mais dinheiro até casos mais extremos, como se a vida fosse um enorme caça-níquel ou um jogo de vídeo-game.
O absurdo das várias das situações que Yoshii passa, levadas a um extremo meio caricato em alguns momentos, somadas a um reconhecimento do que elas representam, fazem com que o filme se torne cômico também. Rimos do absurdo, mas também do quão próximos de nós esses absurdos, em diferentes graus, estão.
Dá para pensar, lembrar e fazer analogias com muitas coisas presentes na nossa vida de 2025 assistindo Cloud. Bets e tigrinhos. Valores exorbitantes não apenas no mercado de revenda, mas também dentro do consumo das nossas necessidades básicas. Uma exaltação surreal do consumo desenfreado em uma escala nunca antes vista. A nossa dependência dos celulares e das redes sociais, com a necessidade de checar as notificações mesmo durante e depois de situações traumáticas. Grupos de zap e fake news. Pessoas isoladas se juntando à nível nacional para cometerem crimes que elas acreditavam piamente serem justificados.
Mas há ainda outras camadas um pouco mais profundas. Não é à toa que, com exceção de Akiko, todos os personagens dessa história são homens. Aqueles que buscam se vingar de Yoshii o fazem por motivações variadas que não necessariamente dizem respeito a perder algum negócio e/ou dinheiro. Há uma ideia de performatividade social que eles perderam por conta do nosso protagonista. De alguma forma direta ou indireta, os negócios dele os humilharam e pisaram em uma ideia que eles tinham (e receberam) de quem deveriam ser e fazer. A vingança é pelo material, mas também simbólica. Cloud põe o dedo na ferida do tamanho da violência que é criada por conta de algo tão nebuloso quanto interações entre usernames e do quão fácil é para que amarguras acumuladas sejam transformadas em ações extremas. O fato de nenhum desses homens serem realmente poderosos só complexifica ainda mais o problema: não estamos falando de gângsters e mafiosos com acesso a muito dinheiro e influência, como os filmes hollywoodianos, mas de pessoas comuns que perderam algo quando encontraram Yoshii e que tem acesso suficiente às profundidades da internet para encontrarem outros iguais a eles em um curto raio de distância. A pergunta do início ecoa novamente. Muitas das coisas que eles perderam não tem nada a ver com Yoshii.
O filme mostra também que esse é o tipo de amargor que cai fácil sobre os indefesos, mas que não dura frente a um poder maior. Diferente da dicotomia de bem e mal que filmes de vingança tradicionais costumam trazer, associando os problemas somente aos indivíduos, Cloud acaba deixando no ar outra pergunta: que tipo de sociedade cria pessoas como essas? Como todas elas que vemos aqui?
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Eu não sei dizer se levantar todos esses pensamentos era a intenção de Kurosawa, mas os pequenos detalhes aqui e ali, como repetições de algumas falas em contextos diferentes, me fazem pensar que sim. O diretor disse, no início, que muito do valor do filme é devido ao seu ator principal, Masaki Suda e eu concordo com ele. Masaki faz um trabalho incrível em deixar as ambiguidades no ar e representar com muita honestidade todas os sentimentos pelos quais Yoshii estava passando.
A gente fica sem saber muito sobre Yoshii para além da situação exposta no filme, mas acho que deixar as lacunas para que nós as preenchamos como achar melhor faz parte do processo. É um filme que pede a nossa participação e que não entrega tudo, mas que nos prende ali nessa corrida maluca até o fim - e deixa muitos pensamos em aberto depois da sessão.
Assistido no 14º Olhar de Cinema - Curitiba, Paraná.