No curta Barco de tolos (Ship of fools, 2024), a diretora libanesa Alia Haju compartilha algumas de suas conversas com Abu Samra, um homem que ela conheceu no Líbano e que treina intensamente pelas ruas de Beirute para ser uma espécie de super-homem.
Mas antes disso, Alia nos conta um pouco da sua história de uma maneira muito interessante tanto em termos narrativos quanto visuais. O curta mistura filmagens feitas especificamente para ele com outras mais antigas, da infância e de seus anos de faculdade, além de usar a animação para contar aquilo que não foi registrado e também o que não pode ser visto. Alia nasceu no Líbano e viveu ali parte de sua infância, até seus pais decidirem sair do país por conta da guerra com Israel. Mais tarde, Alia volta para fazer faculdade em Beirute e começa a trabalhar como jornalista. Alia mostra diversas filmagens desse período, misturados com questionamentos, reações, medos e ansiedades de jovens vivendo em uma cidade em conflito armado.
Quando conhece Abu Samra, há toda uma outra perspectiva sobre a vida vindo desse homem mais velho que busca uma super-força e uma super-resistência contra tudo que possa atingi-lo. Como sobreviver? Como ser forte? Como aprender a continuar quando tudo ao redor parece desmoronar sem nenhuma perspectiva de melhora? Enquanto aprende e conversa com Abu, Alia vai tecendo suas próprias reflexões de uma forma muito sincera e genuína, buscando compreender como lidar com os monstros que carrega dentro de si e aqueles que observa ao seu redor. A animação aparece novamente para representar esses monstros invisíveis que, apesar disso, são constantemente presentes.
Foi um dos curtas mais instigantes e interessantes que eu vi nas mostras competitivas do Olhar de Cinema deste ano. É um questionamento sobre o que nos mantém de pé, sobre como resistir e cuidar de si para também poder cuidar dos outros. É sobre o que gostaríamos que fosse, mas também um olhar sem rodeios para o que é. Alia usa uma linguagem altamente relacionável que faz a gente se envolver na história e senti-la junto com ela. Ao mesmo tempo que aborda assuntos muito complexos e que estão o tempo todo aparecendo nas ruas por onde eles passam, há também uma leveza nas conversas e nessa tentativa de encontrar uma luz em meio ao caos, uma forma de continuar em meio a tanta incerteza. É um curta bonito, tocante, divertido e visualmente incrível, um dos meus favoritos dessa edição.
Assistido no 14º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba.