#115 Um cafezinho: Oscar
[edição aberta] uma reflexão sobre imperialismo, redes sociais e a ansiedade de ver tudo
Os cafezinhos são edições exclusivas para os apoiadores da newsletter, mas decidi enviar o texto aberto para todos desta vez. Textos como esse são enviados quinzenalmente e se você quiser acompanhar as edições na íntegra, considere apoiar a Andanças:
Minha última tentativa de assistir todos os filmes indicados ao Oscar aconteceu em 2023, quando esta newsletter ainda estava no início. É claro que não deu certo, assim como não deu em todos os anos anteriores em que eu tentei. Se eu for dissecar os motivos, acho que consigo elencar três principais:
Apesar de toda a campanha, nem todos os filmes chegavam aqui de forma fácil antes da premiação e eu acabava não indo atrás deles.
Não dava tempo de ver tudo. Era preciso fazer um esforço direcionado para conseguir fechar a lista, deixando outras coisas de lado para abrir esse tempo - e eu só não estava afim.
Eu me sabotava na minha própria tarefa. Isso porque eu olhava para alguns filmes e não tinha tanta vontade assim de vê-los, aí ia deixando para depois e escolhia outra coisa. Quando chegava o dia da premiação, não havia visto nem metade dos indicados.
Completar a lista toda era, no fim das contas, um esforço. E um que eu não estava assim tão disposta a cumprir. Olhando para trás agora, fico me perguntando por que é que eu me colocava essa tarefa, em primeiro lugar. Ainda mais quando ano após ano o resultado era o mesmo e eu não precisava fazer isso de forma alguma por uma questão de trabalho, como muitos jornalistas e criadores de conteúdo que se direcionam para cobrir e comentar a premiação como um todo. Não era o meu caso antes e nem agora. Mas é que, como alguém que gostava muito de cinema, que acompanhava as premiações há tempos e, mais tarde, começou a escrever sobre cinema na internet, eu precisava estar muito por dentro, certo?
certo?

Ao longo dos anos, eu sempre acompanheo notícias de outras premiações que aconteciam pelo mundo. Guardava na minha lista filmes que me interessavam para vê-los quando tivesse a oportunidade, porque muitas vezes os filmes fazem um caminho longo entre a sua estreia em algum festival e a chegada oficial ao grande público. Assisti muitos filmes excelentes assim. Filmes pequenos, independentes, de todas as partes do mundo. Se eu tinha esse tipo de comportamento com os outros festivais e premiações, por que é que, com o Oscar, eu sentia que precisava ser diferente?
Acho que, antes de tudo, tem uma questão de escala. A premiação da Academia é antiga (a primeira edição foi em 1929!) e ela é considerada uma das mais importantes da indústria cinematográfica. Chegar ao Oscar é realmente um grande feito para os filmes e a gente confia que os escolhidos são, pelo menos, muito bons. É um reconhecimento para quem faz e um tipo de selo de qualidade para quem assiste.
Só que uma premiação como essa é feita por pessoas. Pessoas que estão inseridas em contextos muito específicos. Ainda que essas grandes premiações estadunidenses tenham passado por modificações na sua estrutura de votantes (o que trouxe um pouco mais de diversidade aos indicados), o Oscar ainda é, em todo o seu cerne, exatamente isso: uma grande premiação estadunidense.
Por mais que a gente saiba, é muitas vezes fácil cair no erro de pensar que o Oscar é a principal premiação global, a maior de todas, aquela que mais representa tudo que foi feito naquele ano. Ela é, em partes, mas isso também porque a gente foi levado a acreditar que os Estados Unidos são o centro de onde irradia tudo de mais importante. São décadas de propaganda que fazem a gente absorver como ideal uma cultura muito específica, que fala de coisas muito específicas e que, no topo do topo das suas premiações mais prestigiosas, vai optar por elevar histórias também muito específicas - muitas vezes em detrimento de histórias contadas por vozes do próprio país que eles também não querem ouvir. Há exceções, é claro, principalmente nos últimos anos. Mas é essa estrutura que faz com que todo o cinema global daquele ano seja considerado apenas “estrangeiro” e fique limitado a uma única categoria, com raras exceções. É o que faz com que alguns tipos de filmes sejam considerados irrelevantes, por mais incríveis que eles sejam.
Uma parte do motivo pelo qual nós nos envolvemos tanto com o Oscar - em relação a outras premiações, inclusive estadunidenses - é essa hegemonia de poder que emana dele como representação de um poder cultural que foi disseminado como referência do que é bom. Esse movimento imperialista que há décadas toma conta do mundo e que nos afetou e afeta tanto aqui, na América Latina. Não dá para subestimar esse poder cultural criado tão estrategicamente por tanto tempo. O Oscar está no topo de uma indústria antiga que sabe muito bem fazer sua propaganda para continuar no topo.

Outra razão pela qual eu sentia que precisava maratonar a lista de indicados é pura e simplesmente o ambiente de comparação alimentado pelas redes sociais. Como alguém envolvida com o cinema, é sobre ele muitos dos conteúdos que eu vejo e que aparecem para mim ali. Nesta época de Oscar, eles estão em todos os lugares o tempo todo. Vem a sensação de que todo mundo está falando sobre isso, todo mundo está assistindo tudo e que a gente vai ficar para trás se não fizer o mesmo. Não falo sobre criadores de conteúdo específicos que eu vou atrás por conta própria para ouvir/ler o que dizem, mas sobre essa constância do assunto em tudo o que eu vejo porque o algoritmo identificou que é isso que eu quero ver. É muito mais sobre o mecanismo das redes sociais e a presença constante delas nas nossas vidas do que sobre as pessoas que criam ali. É sobre o que esse mecanismo faz a gente sentir sobre nós mesmos - sobre o que, supostamente, falta em nós.
Eu não sentia as engrenagens dessa pressão com tanta força antes, quando eu era só uma interessada no assunto. Acho que era isso que me levava para a lista sem eu nem perceber o porquê. Mostrar que está assistindo os filmes do Oscar também é uma espécie de demarcação e demonstração de conhecimento. A gente não quer ficar para trás quando aqueles filmes estão em toda conversa que queremos fazer parte. Só que isso é, de certa forma, uma ilusão das redes sociais. Tudo está dentro de uma bolha muito direcionada para o que vai prender a minha atenção ali. É uma parte de como elas operam, também daquele lugar da concentração do poder, só que agora em um outro tipo de indústria - o topo do topo do capitalismo dos nossos anos 2020.
Depois que a newsletter atingiu um outro patamar e eu comecei a me envolver mais diretamente com o assunto também do lugar de quem cria, comecei a demarcar um posicionamento mais forte sobre o tempo das coisas. Falei justamente sobre isso no início do ano passado, quando essa agitação grande com o Oscar também estava acontecendo.
Me pergunto o quanto disso vem de uma ansiedade e urgência suscitada pelo o que as redes sociais entregam para essa bolha em que estamos. Desde então, decidi que eu não vou mais seguir lista nenhuma de Oscar, a não ser que o meu trabalho chegue a um lugar em que isso aconteça. Decidi também que eu não preciso assistir o que eu não tenho vontade, que eu não preciso mostrar nada para ninguém e que eu também não preciso me desdobrar em vinte para assistir dezenas de filmes em um único mês lotado de coisas. Mesmo assim, é um esforço contínuo segurar essa ansiedade e muito do que eu escrevo sobre isso também são lembretes para mim mesma de que outro ritmo não só é possível como necessário.
Pode parecer hipocrisia da minha parte falar isso depois de ter escrito três textos sobre filmes do Oscar nesse início de ano. Mas é que eu tenho adotado uma nova forma de me envolver com os filmes novos que quero assistir: coloco tudo em uma lista de 2025 e vou assistindo conforme posso - e ali estão inclusos vários filmes indicados. Não se trata de assistir ou não os filmes, mas de compreender os mecanismos que estão por trás das produções milionárias, das premiações gigantescas e de todo mundo que ganha muito dinheiro com a nossa atenção e com a deterioração da nossa saúde mental. É muito diferente de fazer um movimento genuíno de querer assistir e falar sobre eles, porque a gente gosta de conversar sobre o que assistiu. Porque é bom também ir ver uma sessão de estreia em uma sala lotada. É bom ver o nosso cinema de rua tão movimentado em uma época em que vários deles estão sendo fechados.
O que eu acho importante é a gente refletir sobre porque os selecionados são esses, porque a gente se envolve tanto com essa premiação em específico (para além da nossa participação histórica desse ano, claro) e porque queremos vê-los. Esse texto é uma lembrança de que a gente não precisa correr, não precisa se engajar com o que parece urgente mas, na verdade não é. Vale para o Oscar e vale para o ano inteiro e muito além do cinema também.
Assista tudo que você quiser. Não assista nada. Assista uma coisa ou outra. Mas o faça porque você quer, porque decidiu conscientemente que quer usar o seu tempo e a sua atenção dessa forma.
E sim, a gente vai torcer com todas as nossas forças para Ainda estou aqui e Fernanda Torres. Eu acho um pouco difícil que a indústria cinematográfica estadunidense decida dar palco para uma atriz e uma produção latinas, ainda mais uma que critica uma ditadura que aquele país ajudou a criar.
Mas vai que.
Até o próximo passeio :)
Alguns links antes de ir
- Dois textos muito bons publicados nesta semana que dialogam muito com esse: sinto que estou possuída, à la filme de terror da
e Coisas que não sei da . A Babi fala sobre esse ritmo frenético das redes sociais e a Paula fala sobre uma ansiedade parecida, mas com os livros.
Tou muito decidida a não me forçar a fazer nada que eu não queira (tirando obrigações e necessidades). Percebo nosso tempo se esvaindo, nossa alegria (já sendo tão pouca) sufocada por várias imposições que não respondem no final das contas a nada importante. Obrigada pelo texto e pela criação, lu :*
Gostei do texto, Luisa! Sua reflexão é interessante porque não precisamos nos comparar com ninguém e menos ainda competir com números.
Curioso como pensei que a sensação que tenho é a oposta, porque sempre tive dificuldade de acesso dos filmes do Oscar (somando com a distribuição falha no Brasil e também por dinheiro/geografia que impossibilitavam meu acesso). Este ano é o primeiro que estou assistindo mais filmes. Mas não quero cair na questão de competição ou comparação, mas com certa alegria pelo acesso que tenho hoje e o aumento de lançamentos nas redes de cinemas daqui.