Girassóis (2025, dirigido por Jessica Linhares e Miguel Chaves) é um curta brasileiro que acompanha a vida de Zé (Wilson Rabelo) e sua esposa Glória (Márcia Santos) em suas respectivas rotinas de trabalho. Zé é um homem negro idoso que trabalha em um supermercado, enquanto sua esposa, também idosa, trabalha dirigido por aplicativo ao longo do dia.
A rotina dos dois começa tranquila, com um café da manhã amoroso e a preparação para mais de um dia de trabalho. Só que essa rotina feliz dentro de casa só evidencia ainda mais o absurdo do lado de fora, do trabalho ao qual eles ainda precisam se submeter. As coisas se complicam quando Zé, que é um funcionário terceirizado em uma rede de supermercados, é realocado para outra filial sem nenhuma explicação. O novo local de trabalho demanda um trajeto muito mais longo, feito nos ônibus circulares cheios, para realizar o mesmo trabalho que ele fazia no local anterior: ficar pelos corredores e aqui e ali algumas pequenas organizações nas prateleiras.
Girassóis não escancara apenas a a precarização das condições de trabalho dentro do contexto atual do neoliberalismo, mas também as maneiras como a vida humana, tão rica e criativa, é transformada em só mais uma peça dispensável em uma engrenagem de fazer dinheiro para outras pessoas que nunca são vistas, e que justificam suas decisões por meio de algoritmos supostamente “neutros” e nomes de empresas. Como se a entidade “empresa” tomasse decisões, e não pessoas por trás delas. Não há empatia quando a roda tem que continuar girando a todo custo.
Ao mesmo tempo, o filme vem nos trazer justamente o olhar carinhoso sobre a vida íntima e familiar dessas mesmas pessoas, na doçura da vida pessoal de nossos dois personagens. Na sessão de debate após o filme, os diretores e o ator Wilson Rabelo explicitaram a importância de o filme não ser apenas sobre o trabalho nos moldes capitalistas. Em poucos minutos, os personagens nos envolvem, cativam, nos colocam para dançar junto com o ritmo feliz do lar seguro e confortável que criaram. O que faz explodir todos os absurdos que acontecem lá fora.
A fotografia do filme é belíssima, uma das mais bonitas desta edição do Olhar de Cinema, e também nos conduz por esses mundos extremos: em casa, a iluminação é quente e ensolarada, no trajeto e no trabalho, é mais fria e banhada pelas lâmpadas fluorescentes do supermercado. O som é outro elemento que embarca junto com para criar essas atmosferas distintas, algo sobre o qual também se falou no debate após a sessão. Em casa, há música e dança, no supermercado, os ruídos vazios de códigos de barras nas máquinas leitoras e rodas gastas de carrinhos circulando pelo chão frio. O próprio título também cumpre esse papel, da forma mais cruel possível.
Girassóis é um filme que mostra tudo de gentil que uma vida pode ter e tudo de opressor que coexiste nessa mesma realidade dentro de um sistema que se alimenta da nossa existência. O filme faz essas contraposições de maneiras sutis que levantam ainda mais raiva sobre tudo e, especialmente, sobre esse constante consumo das nossas vidas por um nada.
A obra foi inspirada em uma história real e faz um trabalho magnífico de crítica às condições desumanas de trabalho, muitas vezes mascaradas. Um dos curtas mais instigantes, interessantes, cheio de camadas, extremamente crítico, bonito, ao mesmo tempo sensível e duro e de cortar a alma que eu vi nessa edição.
O curta levou o prêmio do público e o Prêmio Canal Brasil de Curtas.
Assistido no 14º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Cinema de Curitiba.