Em dezembro do ano passado, o Letterboxd fez uma série especial no Instagram chamada 12 dias de cinema (12 days of cinema), composta por 12 reels curtinhos com vários trechos de entrevistas em que é feita a pergunta:
“Qual o seu cinema favorito no mundo?”
Em cada vídeo, várias pessoas respondem - atores e diretores famosos, equipes de filmes em premiações, membros do Letterboxd frequentando eventos e até a própria equipe do site, espalhada por vários países. Quando você começa a assistir um vídeo, é difícil parar. Não só porque cada pessoa menciona o seu cinema do coração, o que já é bastante interessante, mas porque toda resposta vem com alguma justificativa que faz os olhos delas brilharem.
É incrível ouvir tantas histórias nas respostas animadas de cada entrevistado e como a conversa continua também nos comentários dos vídeos, com as pessoas citando seus favoritos por lá. Cada detalhe que as pessoas guardam é um pedaço imenso de história em si mesmo - o tipo do chão, a cor da poltrona, a sensação de andar até em casa depois de uma sessão da madrugada. É muito legal ver como aquelas experiências na infância, na faculdade, no bairro, levaram todas aquelas pessoas aonde estão hoje - muitas delas agora criando as histórias que nós vemos nas telas.
Ir ao cinema une todas essas pessoas não apenas à arte, mas a uma forma muito única de vivenciá-la - em um lugar lá fora, na cidade, em uma sala escura em meio à uma pequena (ou grande) multidão atenta sentindo todo tipo de emoção ao assistir a mesma coisa projetada em uma tela. A tensão, as risadas, as lágrimas. O cinema fica na gente muito depois que os créditos sobem, quando as luzes acendem e nós somos devolvidos à rua meio sem rumo, transformados pelo o que vimos e vivemos. É uma experiência coletiva e individual, sensorial e introspectiva - tudo ao mesmo tempo.
Imersa nos vídeos, passei semanas lembrando e pensando nos cinemas da minha vida. Os cinemas da região em que eu moro, os cinemas excepcionais que um dia já fui e os cinemas que me fizeram quem sou hoje, tudo veio de volta vindo dos cantos mais queridos da memória - e talvez meus olhos ficaram tão brilhantes quanto o dos entrevistados.
Meu cinema local é o que eu menciono aqui o tempo todo: o Cine Passeio, no centro de Curitiba. Ele foi inaugurado em 2019, mesmo ano em que eu me mudei para cá. É ali que eu vou assistir filmes 90% do tempo, na maioria das vezes sozinha mesmo. Já assisti filmes em todos os horários e já devo ter sentado em todas as fileiras. Tenho o meu lugar favorito, claro, o F5, bem no meio da sala. Já fui a única pessoa em uma exibição (a rainha da sessão, como me falou o moço da porta) e perdi a conta de quantas sessões lotadíssimas assisti ali. Já vi filme nas duas salas e no subsolo - ainda falta o terraço. Assisti curtas e filmes de 3h30, pré-estreias e filmes de 1920. Já vi premiação, festivais, vários atores e diretores falando sobre seus filmes, coletivas de imprensa e oficinas. Já preenchi alguns cartões de fidelidade. Já ri e chorei que me acabei lá dentro.
Já parei naquela calçadinha às 2 e meia da manhã, saindo de uma sessão, sem fazer a menor ideia do que fazer com a minha vida depois de ter visto um filme que acabou comigo.
No começo de 2020, me mudei para a mesma rua do cinema, a Riachuelo. Achei que eu marcaria presença lá todas as tardes, vendo tudo que a programação tinha para oferecer. Consegui ver só um filme. A pandemia veio e eu estava ali, a duas quadras do cinema fechado, tão perto e tão longe. Me mudei de novo antes de ele reabrir, mas eu não tenho do que reclamar. Agora são 10 minutos andando (5, se eu semi-correr, meu recorde). Um baita privilégio.
É engraçado perceber que o nosso cinema local é o cinema extraordinário de alguém e que o oposto também é verdade. Quando pensei nos cinemas mais diferentes que eu já fui, três lugares me vieram à mente. Eles com certeza tinham um público fiel que estava lá sempre, mas eu só consegui ir em cada um uma vez no período em que morei na cidade deles. Não é que eles tenham exatamente algo de especial, mas a ocasião e a novidade do tipo de experiência que eles proporcionaram me marcaram. Não era sobre o tamanho das poltronas ou a qualidade do som - nunca é -, mas as sensações de estar naquele lugar, naquele espaço da cidade em um determinado momento da minha vida em que muita coisa era completamente nova. A cidade, o tempo e o espaço complementam e se envolvem na experiência do cinema, tornando ele ainda mais mágico do que já é.
Um desses lugares é o Angelika Film Center & Cafe, em Nova York, onde assisti em uma sala pequena Wiener Dog, um filme indie de um cachorrinho andante que é adotado por várias pessoas ao longo da vida, com a Greta Gerwig e a Zosia Mamet. Lembro bem da localização, da fachada, do café bonito da entrada. Era uma época em que eu ainda era uma novata nos cinemas de rua, principalmente os antigos, e lembro de tentar registrar cada pedacinho do espaço. Ele também é citado como o favorito por várias pessoas nos vídeos do Letterboxd.
O outro é o Tuttleman Theater, um cinema IMAX interno do The Franklin Institute, um museu de ciência e tecnologia da Filadélfia. O cinema tem uma espécie de domo, como um planetário, que permite uma visão bastante ampla do que está sendo exibido. Foi a única vez que eu fui em uma cinema IMAX até hoje e foi para assistir Star Wars: O despertar da força, um grande evento na época. Eu não fazia a menor ideia de como seria a exibição e foi uma loucura assistir tudo aquilo acontecendo ao mesmo tempo naquele espaço imenso - quase passei mal (aqui dá para ter uma noção de como é a tela). Foi com certeza uma experiência única pelas características técnicas do cinema, pela exclusividade da sessão e pela energia na sala lotada naquele filme tão esperado. Mas o que ficou mesmo na minha memória foi o que veio em seguida. Depois de passar 2 horas naquela imersão, sair para o museu vazio, escuro e fechado foi como atravessar um portal do futuro de naves espaciais direto para os filmes de investigação norte-americanos dos anos 80, aqueles que acontecem em prédios do governo no meio da madrugada. Sair do pátio para o ar frio de inverno foi outro portal: da escadaria, dava para ver toda a linha de prédios de Philly iluminada e a sensação de estar vivendo dentro de outro filme, com o museu de arte da cena clássica de Rocky Balboa subindo as escadarias logo ali do lado (Creed foi lançado naquele ano também, outra experiência). Tinha uma energia no ar depois da sessão que eu não sei explicar. Aquela sensação de ter vivido algo absolutamente único em uma noite em que tudo se alinhou no lugar certo. Lembro de ter andado o máximo possível do caminho, adiando a volta para casa, ainda meio besta com tudo.
Pesquisando para essa edição, descobri que o cinema, que existia desde os anos 90, foi fechado permanentemente após a pandemia, com o museu alegando que ele não era mais um modelo de negócios viável.
O terceiro lugar é o The Trocadero, um teatro pequeno e com cara de antigo em Chinatown, também em Philly - onde assisti o meu primeiro show sozinha. Acompanhando o lugar para saber de outros shows, descobri que eles tinham exibições de filmes ali às segundas-feiras e decidi ir um dia em uma exibição de O quinto elemento. O ingresso era baratinho, 3 dólares, e incluía uma pipoca ou uma cerveja. Para entrar, era preciso seguir todo um caminho até o balcão do teatro no mezanino e lá embaixo no palco estava a projeção do filme. O balcão era com arquibancada sem poltronas individuais, então não tinha muita regra por ali. Chegamos atrasados, entrando direto na escuridão, com cerveja e pipoca para todos os lados e algumas pessoas aqui e ali espalhadas pelos cantos mais escuros. No conjunto de tudo, foi uma das sessões mais doidas e divertidas que eu já fui na minha vida.
Só anos depois eu descobri que aquele era um teatro que estava ali desde 1870 e que, em 1903, começou a operar como um vaudeville (que tem uma conexão com o início das exibições de filmes em teatros) e uma casa de shows de burlesque, as principais atrações do lugar pelos 75 anos seguintes. No final da década de 70 ele se tornou um cinema de filmes chineses e nos anos 80, passou a ser uma casa de shows de rock, com exibições de filmes em algumas noites, e permanecia assim quando eu fui em 2015/2016. A exibição de filmes não era então uma mera atração, mas uma tradição histórica que permanecia por décadas naquele lugar centenário. Com a pandemia o teatro fechou permanentemente e, apesar de alguns boatos de reformas, ainda não se sabe exatamente o que acontecerá com ele. A última sessão de cinema do Trocadero foi de Pulp Fiction. (mais informações e imagens - maravilhosas - históricas e recentes aqui).
Ver esses lugares sendo fechados é uma sensação estranha. É possível que, mesmo que eles se mantivessem abertos, eu nunca mais voltasse lá ou demorasse tanto para voltar que a experiência já seria outra, muito diferente daquela do passado. Mesmo assim, é dolorido. Em um dos vídeos do Letterboxd, as pessoas falam sobre seus cinemas favoritos que já fecharam e é sempre uma tristeza. É saber que um pedaço das nossas memórias não tem mais o traço material que um dia teve. Saber que outras pessoas não podem simplesmente ir lá e viver um pedacinho do que estamos contando. O Tuttleman e o Trocadero ainda estão aí e quem sabe um dia eles reabram, é possível. Mas nem sempre isso acontece.
Às vezes as coisas mudam ou se perdem para sempre e não há mais o que fazer.
Deixarei alguns outros cinemas, de um passado mais distante, para as nossas andanças de semana que vem, junto com um passeio que mergulha fundo nas memórias de uma pessoa, de uma cidade e muitos cinemas que não existem mais.
Enquanto isso, me conta, quais são os seus cinemas do coração? Qual o seu cinema favorito no mundo?
Até o próximo passeio :)
Links extras
Você pode ver todos os vídeos do especial 12 dias de cinema do Letterboxd (com legendas em inglês) aqui: dia 1, dia 2 (um dos meus favoritos), dia 3, dia 4, dia 5 (cinemas da cidade de Nova York), dia 6, dia 7, dia 8, dia 9 (cinemas favoritos que fecharam), dia 10, dia 11 e dia 12.
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adoro o LT3, cinema de rua aqui em Perdizes perto de casa e fora do Brasil eu adoro ir no Freiluftkino um cinema open air em um parque em Berlin, acho uma lindeza, assisto qualquer coisa que esteja passando nele na semana que estou de férias por lá rs
Olha só a belezura que esse algoritmo humanizado do Substack nos proporciona: me indicou seu perfil sabendo que eu amaria o tema e agora, descobri que temos o mesmo cinema favorito, na mesma cidade! <3 O Cine Passeio é um jóia Curitibana e ele foi um dos motivos para eu querer me MUDAR PARA A CIDADE. Sim, eu te entendo, Luisa.