#77 Um cafezinho: se emocionar
No cinema, na rua, no sofá, escrevendo: se tem uma coisa que eu fiz esse ano, foi me acabar em lágrimas
Tem muitas coisas que me fazem gostar tanto desses que eu chamo de filmes andantes. As cidades, as inúmeras caminhadas que vemos nossos personagens fazendo por elas, as aventuras e desventuras, as reviravoltas do destino, as coincidências e a vida acontecendo com todas as suas complexidades. Mas eu acho que eu mais gosto mesmo é o quão próximos eles podem ser da nossa vida cotidiana. Tem uma pessoa, uma rua por onde ela passa sempre ou onde ela calhou de estar naquele momento e é isso. Tudo fica ainda mais forte quando vemos naqueles personagens emoções que a gente já sentiu um dia, que sente hoje, ou que a gente compreende de alguma forma. E essas emoções são o cerne de tudo.
Quando penso nos meus filmes favoritos, são esses momentos em que as emoções pulsam com mais força que me pegam. Quando os personagens expressam seus sentimentos em uma conversa com outras pessoas ou quando dá para ver o que está acontecendo por dentro só pela expressão em seus olhos durante uma caminhada silenciosa. Quando se envolvem em uma dança ou quando saem correndo pelas ruas agitadas. Quando explodem, quando não conseguem mais conter a enxurrada de palavras e sentimentos que lhes acometem de uma vez. A trilha sonora tem um efeito importantíssimo para me pegar de jeito com esses filmes também - tem músicas que ficam por anos na minha playlist de mais ouvidas só por causa de uma única cena.
É a caminhada silenciosa e lenta da Sra. Chan ao som daquele violino maravilhoso em Amor à flor da pele. Casey falando completamente comovida sobre aquilo que mais gosta em Columbus. É Frances correndo por Chinatown ao som de Modern love depois de ter conseguido um lugar para morar e o seu monólogo no jantar em Frances Ha. É Calum dançando Under pressure em Aftersun. Céline desabafando toda a sua insatisfação no banco de trás do carro em Antes do pôr-do-sol. São as cartas da mãe de Chantal lidas por cima dos sons caóticos da Nova York dos anos 70 em Notícias de casa. A música cantada com todo o coração e todo o cansaço em Inside Llewyn Davis. É Jenna voltando para a casa dos pais, depois de descobrir o que sua versão adulta fazia, ao som de Vienna em De repente 30.
A gente sabe de onde tudo aquilo veio. A gente entende. E aí, junto com eles, a gente se emociona também - pelas histórias que estamos vendo e pelas nossas próprias.
Sendo essa pessoa que eu sou e gostando desse tipo de filme, se tem uma coisa que eu fiz nesse 2024 foi chorar. De se emocionar mesmo, profundamente. Não foi uma e nem duas vezes que eu sai da sala de cinema meio disfarçando o rosto, porque eu não fazia ideia de como meus olhos estavam e se tinha ou não um risco preto de rímel cortando a minha bochecha. A emoção fica comigo quando eu volto para a rua e ali eu fico sem saber muito bem o que fazer. Parece errado voltar logo para casa, para a rotina normal. Me sinto meio em suspensão. Teve um dia que eu sentei no banco do segundo piso do Cine Passeio e fiquei ali vendo o corredor vazio. Em outro, fiquei encarando o lago do Passeio Público, vendo as carpas se amontoarem perto de mim. Às vezes ando bem devagar, outras bem rápido. Meu cérebro se divide entre ficar atento à rua e a só processar tudo aquilo que foi visto e sentido.
Calhou que esse começo de 2024 teve vários filmes andantes emocionantes e, de certa forma, todas as edições de filmes que escrevi esse ano foram emocionadas. Foram edições boas de escrever, porque sinto que consegui alcançar o cerne de alguma coisa com elas. Não o cerne das emoções do filme, porque isso é algo que eu não sei nem se tem como alcançar. Mas o cerne daquilo que ele me fez sentir, ou pelo menos a parte disso que eu consegui compreender agora - tem filmes que só vão fazer sentido mesmo para a gente anos mais tarde. Em algumas edições isso aconteceu com mais força e em outras um pouco menos, mas todas eu estou falando junto com essa emoção, que às vezes já veio muito antes do filme em si. Eu me emocionei assistindo o trailer de Vidas Passadas e de Todos nós desconhecidos meses antes de assisti-los e não posso ouvir Always on my mind que já me emociono de novo. Escrever se torna esse processo de uma pequena tentativa de tradução do indizível, daquilo que não está descrito nem no filme e nem dentro da gente. É, talvez, só um arranhar a superfície desse mundo interno que se conecta com aquilo que vemos de formas ainda incompreensíveis nesse primeiro momento.
Eu assisti La Chimera (2023, dirigido por Alice Rohrwacher) nesse último sábado e eu ainda não sei dizer muito bem o que ele causou em mim. É como se o sentimento viesse antes que o pensamento pudesse se formar a respeito. Tem um momento no filme em que o protagonista, Arthur (Josh O’Connor), encontra muito mais do que esperava encontrar e aquilo mexe profundamente com ele. Nessa hora, é como se desse para sentir um pouco do que ele sente, só uma pequena fração do que seria ver aquilo ao vivo. A gente fica lembrando das palavras de Itália (Carol Duarte) minutos antes, do que ela falou sobre a arte e das coisas que não foram feitas para serem vistas por olhos humanos. Fiquei pensando naqueles pequenos feitos de todos os dias, os rituais que nutrimos, as coisas que fazemos com todos os sentimentos do mundo e que entregamos para aqueles que amamos, todos os atos de cuidado. Na quantidade de emoção com que é feito esse mundo em que vivemos.
Escrevendo esse texto, pensei agora que, por outro lado, talvez existam também coisas que só tem significado quando vistas por olhos humanos mesmo. Coisas que precisam da nossa interação, que são um diálogo constante que atravessa o tempo e as gerações. A gente cria coisas belas para permanecer no sagrado da vida privada, mas também outras coisas que são como flechas para o mundo. Registros de uma vida que aconteceu um dia, mensagens na garrafa que talvez alcancem alguém, a busca por tentar entender, a esperança de ser compreendido em outro canto do mundo e em outro tempo além desse.
É o que faz a gente conseguir ver algo feito por outras pessoas e compreender aquilo de uma forma tão profunda sem que se precise dizer nada. Mesmo quando o idioma é muito diferente ou quando os costumes são muito distintos dos nossos. Tem algo na gente que entende, que consegue transportar aquela experiência para a própria vida. Talvez é o que faça eu me emocionar com uma música em finlandês que eu não faço a menor ideia do que diz em Folhas de outono, ou que me faça chorar loucamente vendo um robô de lata animado sonhando.
É tudo tão bonito e tão tocante que não tem como não sentir alguma coisa. Não tem como não pensar na própria vida e, em alguns casos, ficar com aquela sensação boa de que tudo vai dar certo, de uma forma ou de outra.
Depois da sessão de La Chimera no sábado, aconteceu um bate-papo com a atriz Carol Duarte no Cine Passeio. Foram feitas muitas perguntas e algumas acabaram sendo sobre o seu filme anterior, que também foi o seu primeiro: A vida invisível (2019, dirigido por Karim Aïnouz). Lá pelas tantas, o pessoal da equipe do cinema falou um pouco sobre como foi a experiência de exibir o filme naquele ano, ainda durante os primeiros meses de funcionamento do Cine Passeio. Eles contaram que as pessoas choravam tanto, principalmente no final, que dava para escutar as fungadas atrás da porta da sala. Às vezes eles acolhiam as pessoas mesmo, vendo o quão desoladas elas estavam. Muitas vezes, eles contaram, o filme mexia tanto com as pessoas que elas não saíam da sala, mesmo depois que todos os créditos já haviam acabado.
Eu ouvia isso e lembrava do quanto eu havia chorado vendo esse filme ali naquela mesma sala. Soluçava. A vida invisível ainda é, até hoje, o filme que eu mais chorei na minha vida dentro de uma sala de cinema. Eu choro bastante, é verdade, mas normalmente eu tento me segurar, dar uma disfarçada. Mas nesse dia eu não me importei, nem pensei nisso. Enquanto eles contavam isso para a Carol e para o público, eu quase chorei de novo. E quase chorei também vendo a emoção dela em ouvir esse relato de como foram as mais de dez semanas em que o filme esteve em cartaz ali.
Imagina fazer um filme que causa tamanha emoção nas pessoas.
Do lado de cá eu só penso o quanto é incrível poder viver tudo isso. Sentir todas essas emoções assistindo algo no cinema ou na sala de casa, se emocionar só de ouvir uma música e lembrar de tudo que ela significa para nós, ler um livro e sentir todas as emoções do mundo só com algumas palavras impressas em papel. Tenho preferido sentir mais tudo que vem do que ficar pensando no que cada coisa significa e porque me causou aquilo. Em outras épocas, eu provavelmente teria me jogado nessa racionalização, tentando destrinchar cada detalhe. Mas acho que quanto mais o tempo passa e mais eu me entendo, mais deixo de me importar tanto com os porquês. Em algum lugar lá no fundo eu sei. Então deixa ser, deixa vir e não precisa de mais que isso. Tenho preferido assim.
Que a gente possa se emocionar cada vez mais com o que a gente vê por aí, e que a gente possa também transformar nossos sentimentos em coisas belas e emocionantes.
Até o próximo passeio :)
Alguns links antes de ir
- Quase todos os filmes mencionados nessa edição já tiveram edições próprias aqui na Andanças. No link no nome de cada filme você consegue acessar o texto correspondente, mas também dá para ver todas as edições que já passaram por aqui no nosso arquivo.
- Nem tudo que é emocionante necessariamente é aquilo que nos faz chorar: assisti Rivais semana passada também e que filme! Completamente eletrizante do início ao fim, me prendeu de um jeito que eu acho que nunca tinha acontecido antes. Está em exibição nos cinemas.
- Coincidentemente, dias antes do bate-papo com a Carol Duarte eu havia lembrado de A vida invisível lendo esse texto da
.- Uma reflexão ótima sobre a urgência de criar arte no mundo de hoje na newsletter do Nick Cave (em inglês).
- As notas de Jonathan Larson para o musical Rent na newsletter
(em inglês), o que me fez lembrar do filme tick, tick… BOOM de 2021, que conta um pouco da história dele.- O Ora Thiago fez um vídeo incrível falando sobre sonhos no cinema e o filme Monster, outro que me fez chorar esse ano.
- Se você está em Curitiba, nos próximos dias vão acontecer sessões gratuitas dos filmes de Almodóvar na Cinemateca!
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tu sempre comenta aqui sobre quanto chorou nos filmes, e já deve ter mencionado nas nossas conversas também, e eu sempre fico pensando que não achava que tu seria tão chorona em filmes. algo que ficou da primeira impressão. acho que nunca tinha te dito isso.
enfim, o que faz teus textos serem tão bons é que tu consegue trazer essa emoção pro relato ao mesmo tempo que fala dos filmes, que faz análises de cenas e temas, etc. senti muito isso quando tava lendo outro dia uma edição mais antiga, sobre a série The Bear (que eu ainda preciso ver!!!!) adorei o cafezinho dessa semana 💜
Que delícia de newsletter, enquanto alguns filmes nos fazem sair da realidade, outros nos dão prazer nas pequenas coisas e nos fazem refletir (ou só sentir) sobre sentimentos da vida real. A primeira temporada de Fleabag me leva um pouco para esse lugar, as andanças nas ruas de Londres, os sentimentos conflituosos e a trilha sonora ❤️
Confesso que a maioria dos filmes citados não assisti, saio daqui com a lista cheia! :)