O cafezinho de hoje segue nas andanças pelos cinemas da minha cidade natal, Joinville, que começamos na semana passada. Apesar de ser uma continuação, esta edição não depende daquela, mas se você ainda não leu, vem! Ela está super especial <3
Stranger things não é bem uma série andante, mas a maior parte da ação da terceira temporada acontece em um shopping center novo na cidade nos anos 80. Quando penso em algum filme/série que mostre cinemas de shopping, são essas cenas que me vem à mente, de uma época em que os shoppings eram uma novidade e o principal lugar para onde as crianças e adolescentes iam. Todo o esquema dos personagens para entrar nos cinemas pelos fundos, sem pagar, trazendo os próprios refrigerantes escondidos na mochila, também é muito a energia do que esses cinemas eram anos atrás.
Outra coisa que eu acho interessante dessa temporada é a crítica feita à chegada do shopping na cidade, que acaba com a movimentação do centro comercial onde as pessoas se encontravam, fechando os pequenos comércios e, muito provavelmente, também o cinema de rua que existia ali antes.
“É meio triste se apegar a um produto. O problema é que você passou anos da sua vida… indo nesse cinema. Ai a relação fica emotiva e confusa.”
- Trecho de Retratos fantasmas
Se os cinemas de rua - como a maioria daqueles mostrados por Kleber Mendonça Filho em Retratos fantasmas - já eram, de certa forma, produtos, a impressão que eu tenho é que com os cinemas de shopping essa relação se dá com ainda mais força. Um produto dentro de um produto. Mas como eu disse na semana passada, os cinemas de shopping foram tudo que eu conheci por um bom tempo e quando a gente é criança, não pensa nessas coisas. Os cinemas de shopping que eu ia exerciam um fascínio imenso em mim e passei uma boa parte da minha infância e adolescência neles. Mas mesmo os cinemas de shopping como eu conheci naqueles anos 2000 deixaram de existir com uma velocidade avassaladora. Muita coisa mudou em apenas uma década. Os que não fecharam completamente se transformaram a ponto de ficarem irreconhecíveis em relação ao que eram. É por isso que, embora eu não tenha vivido os cinemas de rua da minha cidade, Retratos fantasmas acaba me tocando naquilo que eu vivi e que também não existe mais.
É difícil não se apegar, e mais difícil ainda não se deixar levar pela nostalgia com uma memória talvez já meio romantizada. Esses cinemas sempre foram localizados em um tipo de lugar fadado a mudar o tempo todo para sobreviver e continuar relevante. É uma coisa bem confusa mesmo.
Minha história com o cinema começou oficialmente em 1998, quando eu tinha 5 anos e assisti a animação de Tarzan. Nessa época, Joinville tinha três cinemas, todos de shopping: os cinemas do shopping Cidade das Flores e do shopping Americanas, da mesma rede; e o cinema do shopping Mueller, de outra empresa. Enquanto os primeiros eram salas mais simples, o último era maior e mais moderno, e também um pouco mais caro que os outros. Na andança que eu fiz junto com a minha mãe por Joinville em janeiro, passamos também por onde costumavam ser esses três cinemas, dois deles bem no centro da cidade e um no bairro ao lado, na direção sul. Tudo também a uma caminhada curta de distância.
Os dois cinemas da mesma rede eram peculiares: uma bilheteria simples no corredor do shopping ficava entre duas portas de vidro - uma levava para a sala 1 e a outra para a sala 2. No meio delas, com uma janela para as entradas de ambas as salas, ficava uma pequena bomboniere. Havia uns letreiros em neon laranja em algum lugar também. Uma das coisas que eu mais gostava desses cinemas eram as poltronas: em uma sala elas eram rosa bebê e na outra azul bebê, um charme. No chão, um carpete cinza cobria toda a sala. Aparentemente esse era um padrão da empresa e se repetia em outras cidades - mas isso eu só descobri recentemente. (Essa foto de um cinema da rede em outra cidade de Santa Catarina mostra um pouco do que era).
Eu não sei quando eu parei de ir no cinema do Americanas. Em algum momento da minha infância ele fechou e não lembro bem quando. Não deve ter funcionado por muitos anos: fechou antes que pudesse se deteriorar e permaneceu assim desde que eu me lembro. Ali foi a nossa primeira parada na andança que fizemos e no lugar onde ficava a bilheteria existe agora um restaurante de comida asiática. Deve ter sido a primeira coisa que abriu ali desde que o cinema fechou e não pude deixar de pensar que atrás daquela cozinha ainda devem existir as duas salas de cinema rosa e azul bebê. Não se tira uma estrutura de cinema tão fácil assim, ainda mais em um lugar onde nunca mais existiu nada e em um shopping que já viu dias melhores. Talvez a empresa tenha tirado as poltronas e a tela, o que eu particularmente duvido um pouco - o que eles poderiam fazer com aquilo? Mesmo assim, aquele espaço amplo ainda deve estar lá, invisível aos olhos de qualquer pessoa que não conheceu o shopping 26 anos atrás e que estivesse comendo calmamente na praça de alimentação naquela sexta-feira terrivelmente quente de janeiro.
O cinema do Cidade das Flores durou mais tempo. Ainda me lembro muito bem de quando assisti ali Harry Potter e a Câmara Secreta e nada mais seria o mesmo. Mas eu frequentaria mais ele na adolescência, quando as coisas já não estavam lá muito boas. As poltronas rosa e azul, que ficavam emendadas umas nas outras, já estavam bem rasgadas e tinham os apoios de braço quebrados em vários pontos. Mas era um cinema ainda barato e que passava filmes muito bons, além da promoção do último sábado do mês, em que todo mundo pagava meia - uns 3 ou 4 reais, imagine! Tudo já tinha um ar de decadência anunciada naquele fim dos anos 2000, mas eu gostava bastante daquele lugar. É um dos meus cinemas favoritos, por toda a presença que ele teve enquanto eu crescia. Foram muitos anos da minha vida ali dentro, mais sessões do que eu conseguiria me lembrar.
O cinema fechou quando eu ainda estava no ensino médio e ficou assim por um bom tempo. Lá por 2017, um novo cinema de outra empresa abriu no lugar. Uma reforma imensa foi feita e já não dá mais para associá-lo ao cinema anterior. É um cinema mais específico - a maior parte dos filmes são dublados e voltados para o público infantil. Fui ali umas duas vezes desde que esse cinema novo abriu. Não é a mesma coisa, mas um pouco da nostalgia permanece, talvez pelo fato de o shopping ainda continuar muito similar ao que era antes, com as carpas no laguinho e aquelas incríveis escadas verdes de metal por todos os lados.
É um shopping e tudo em mim hoje tende a não gostar de shoppings e problematizá-los e etc, mas a memória afetiva é grande demais e mais forte que eu aqui. A relação é completamente emotiva e confusa.
Fico pensando se eu veria esses dois cinemas da mesma forma hoje se eles nunca tivessem fechado. Eles teriam mudado, com toda certeza - as coisas se aceleraram vertiginosamente naqueles anos 2000. Talvez eu não gostasse mais deles, não sei. Foi o que aconteceu com o terceiro cinema de shopping da lista. Eu ainda guardo memórias boas dali, de quando as coisas eram menos elaboradas e tudo tinha aquela cara de puro suco dos anos 90. Mas o ranço que eu criei com ele já adulta, por vários motivos, entra no caminho. Fui ali no ano passado assistir Barbie e por mais que o meu racional saiba que aquela é a mesma sala que sempre foi (a 1, a maior), o meu corpo não consegue sentir que está em um lugar onde já esteve muitas vezes. É uma sensação estranha. O cinema mudou de uma forma que não permite mais, pelo menos para mim, a relação de apego e nem de pertencimento. Quando entro ali, tudo que eu consigo pensar é que antes ele era melhor.
Mas essa é a minha percepção totalmente parcial das coisas. Talvez as crianças de hoje gostem dele como eu gostava anos atrás. Eu não sei como eu veria tudo isso se fosse uma adulta nos anos 90. Seriam esses cinemas e shoppings, na época, tão diferente do que são hoje, proporcionalmente? Talvez eu sentiria, assim como todos os adultos ao meu redor, pelo fim dos cinemas de rua que eles adoravam tanto. Mas eu só posso especular. Hoje, eu sinto essa sensação estranha de luto pelo o que acabou antes que eu pudesse viver, e também pelo que eu vivi e que permanece hoje de maneira completamente diferente - uma outra forma de fim.
São empresas, afinal de contas. Acho que a relação com os cinemas para uma geração como a minha, que cresceu dentro dos shopping centers, é altamente confusa. A própria relação com o shopping é confusa. São lugares que a gente adorou profundamente em uma época que não entendíamos o que eles significavam, e são também lugares que nunca vão deixar de mudar da forma mais brutal possível. Talvez a nostalgia que eu sinta hoje seja uma memória romântica de como eles eram naquela época para a versão criança e adolescente de mim mesma. Mas eles jamais permaneceriam da mesma forma - a maioria deles, pelo menos. É meio triste se apegar a um produto mesmo.
Só sei que eu trocaria facilmente a poltrona hiper-mega-confy-vip-sofácama-premium que esses cinemas novos sem graça trazem por aquela rosa bebê já meio acabada.
Até o próximo passeio :)
Alguns links antes de ir
- O cinema de shopping mais anos 90 de Curitiba é o do Novo Batel (que aliás tem uma programação ótima). Com as suas escadas rolantes esquisitas e cadeiras não numeradas, ele mora no meu coração. Nenhum cinema “moderno” poderia gerar uma edição tão maravilhosa como essa da minha xará
, que foi assistir a última sessão do dia lá alguns meses atrás e escreveu sobre ir ao cinema para dormir. Uma das minhas edições favoritas da <3- O Ora Thiago fez essa semana um vídeo maravilhoso sobre Vidas passadas e eu amei cada segundo.
- E falando nisso, os dois melhores textos que eu li sobre Vidas passadas também não são da época do lançamento do filme e nem são, na verdade, exatamente sobre o filme. São histórias da própria vida que vai acontecendo e se entrelaça com a história de Nora, Hae Sung e Arthur, ou de vida que acontece ao redor de uma ida ao cinema que nunca aconteceu. Assisti Vidas Passadas, de
e Carambolas parte I e parte II também da .Apoie nossas Andanças <3
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que honra ser recomendada nessa edição tão anos 90!!1
eu cheguei a frequentar cinema de rua porque os shoppings demoraram a chegar lá em São Luís, até confirmei aqui que o primeiro com ar-condicionado só foi inaugurado em 99 e o cinema ainda demorou a chegar. então lembro de ir no Cine Colossal talvez com uns 12 anos ainda, mas minha lembrança preferida (que não ouso confirmar com os mais velhos) é de ter visto lá uma sessão de Titanic TÃO LOTADA que vi o filme sentada numa cadeira da lanchonete do lugar ao lado. não tinha isso de sessão esgotada, sempre cabia mais um rs
temos que combinar de ir uma vez pelo menos no Novo Batel, ainda não voltei lá.
meu pai me conta das experiências dele com o cinema de rua e com o cinema na rua, literalmente. de quando a prefeitura (acredito) montava uma estrutura com telão e cadeiras na praça da cidade e todo mundo ia lá assistir o filme escolhido. eu tenho memória só de cinema shopping também e, embora não saiba explicar o porquê, compartilho da sua sensação de que os cinemas estão piores hoje… inclusive uma crítica sobre isso esses dias, de como o som estaria ruim e a imagem não seria tão boa. mas não sou a pessoa certa pra avaliar se é isso mesmo que está acontecendo. além do preço alto, realmente, a experiência tem deixado muito a desejar já faz uns anos.