#88 Um cafezinho: por que a gente gosta de assistir a mesma coisa várias vezes?
Uma reflexão sobre filmes e séries de conforto
Para começar essa conversa, acho que existem, pelo menos, dois tipos de “assistidas” repetidas. Uma delas é quando queremos ter a experiência de assistir algo mais uma vez, por qualquer razão. Pode ser que você gostou muito daquilo e quer ver novamente com alguém, ou não gostou e quer ver de novo com outros olhos depois de um tempo, ou ainda rever para pegar detalhes que passaram despercebidos e ter outra perspectiva agora que já sabe o desfecho da história. Pode ser um filme favorito que você quer rever depois de décadas da primeira vez e às vezes só queremos poder refletir melhor sobre o que assistimos, sentir de novo as emoções e coisas do tipo. Nesse caso, talvez a gente assista um mesmo filme de novo só mais uma ou duas vezes ao longo da vida.
Já o segundo tipo, eu diria que diz respeito a algo mais visceral, instintivo e talvez até irracional: a gente assiste de novo porque precisa assistir de novo. Porque fazer isso vai, com toda e absoluta certeza, nos levar para um estado de espírito que a gente já sabe que vai ter e já sabe que precisa naquele momento.
A gente precisa do conforto que aquele filme vai nos trazer.
Acho que filmes de conforto são diferentes de filmes favoritos. Um mesmo filme pode estar em ambas as categorias, mas não necessariamente. Acho que o filme favorito tem um aspecto um pouco mais racional envolvido: gostamos dele por uma razão. Com o filme de conforto, por outro lado, nem sempre conseguimos dizer o porquê: tem um elemento mais emocional do que racional nesse caso.
Um dos meus filmes favoritos de todos os tempos até hoje, que também é um dos meus filmes de conforto, é Frances Ha. Especialmente na última década (como eu já falei aqui), eu voltava para ele sempre que me sentia muito perdida. Tem algo sobre ver mais uma vez a Greta Gerwig toda desengonçada, mas tão esperançosa e honesta com as próprias emoções, que fazia eu me sentir bem - sentir que em algum momento eu iria me encontrar também. É um caso específico que cabe em ambas as categorias, mas há vários dos meus grandes favoritos que - pelo menos até hoje - eu só assisti uma vez. Foi o suficiente para ele se tornar um dos adorados, mas não quer dizer que eu retorne a esses filmes em busca de conforto - reassisti-los faz parte daquele primeiro tipo.
Durante muito tempo, sempre que eu estava me sentindo muito mal, eu assistia Mamma Mia. Ele não é necessariamente um favorito e nem é um tipo de filme que eu vou correndo atrás quando aparece. Mas nem precisava ser inteiro: às vezes só assistir alguns pedaços aqui e ali já era o suficiente para me trazer de volta. Sim, eu só quero ver a Meryl Streep junto com a Christine Baranski (a advogada de The Good Wife) e a Julie Walters (Sra. Weasley) colocando roupas brilhantes e cantando Super Trouper em uma festa com todas as mulheres de uma ilha da Grécia. Atores ótimos cantando ABBA e se divertindo em uma ilha ensolarada é a receita certa para me trazer de volta de qualquer fossa onde eu tivesse me metido (e o Mamma Mia 2 tem o mesmo efeito). Por que esse filme e não qualquer outro? Não sei. Só sei que foi amor à primeira vista e ele é longo e durável. Não faço ideia de quantas vezes já assisti.
Acho que filmes e séries também podem ser os abraços que a gente nem sabia que precisava. Existe todo um ritual envolvido em voltar para um lugar que a gente conhece bem. É quase como um auto-cuidado: se enrolar em uma coberta quentinha no sofá, com umas comidinhas e algo para beber e sentir que ali você pode soltar tudo. Está triste e quer chorar? Vem aquele filme maravilhoso choradeira. Está para baixo e quer se recuperar? O filme alegre e dançante. Está reflexiva e quer pensar mais sobre a vida? Um bom filme andante está sempre ali te esperando. Está cansada e não aguenta mais a rotina caótica? Um episódio aleatório daquela série antiga que a gente tanto gosta.
Eu não acho que a gente volte para os nossos filmes e séries de conforto simplesmente pela sensação de nostalgia. Aquela sensação de tempos mais simples enquanto tentamos ter um respiro da nossa vida adulta caótica e complicada. Não, eu acho que é mais forte que isso. De certa forma, esses filmes e séries fizeram parte da nossa formação como pessoas e o fato de que gostamos muito deles um dia - e que continuamos gostando depois de um certo tempo - diz muito sobre quem nós somos. Acho que ele nos marcam tanto porque mostram para nós um pouco do que somos quando nós ainda não sabemos bem o que é isso e, mais tarde, quando nos distanciamos e precisamos aprender como voltar.
E, às vezes, no meio da bagunça dessa vida complexa, a gente só precisa retirar algumas camadas e se conectar novamente com a nossa essência.
A gente só precisa lembrar quem é.
Eu não acho também que a gente liga essas séries e filmes (mas principalmente as séries) simplesmente para se “alienar” e ficar assistindo algo sem pensar em mais nada. No meu momento mais estressante dos últimos tempos, eu quis voltar para séries que eu já conheço não para fugir da realidade, mas para conseguir me fortalecer internamente para conseguir voltar para ela. Para mim, assistir coisas sempre fez parte do meu processo de cura de qualquer coisa não só pelo momento de pausa e relaxamento, mas pelo momento de conexão com algo que talvez eu tenha perdido enquanto corria pelo caminho.
E aí, dependendo do que tenha sido esse algo que eu perdi ou desse algo que eu queira sentir de novo, eu vou voltar para momentos diferentes dos filmes e séries de conforto da minha vida. Se eu precisar de um pouco de mágica, talvez seja Harry Potter e a Pedra Filosofal (que eu assisti incansavelmente em VHS, até que a fita da locadora ficou presa no aparelho e eu traumatizada parei de alugar de novo) ou as temporadas de Tennant e Matt Smith de Doctor Who. Se eu precisar lembrar da criança que eu fui, talvez seja O jardim secreto ou Pequenos espiões. Se for para lembrar dos sonhos e planos que eu fazia no quarto antes de sair para mundo, talvez eu volte para The O.C., Gossip Girl, The Originals (amo, já assisti várias vezes). Se for para lembrar de quem eu queria ser, Sex and the City e De repente 30 (que eu vi pedaços na Sessão da Tarde esses dias).
Dá para ir longe na lista. São vários os filmes e séries que me formaram e que dizem algo sobre mim. Voltar a eles é como um reencontro com velhos conhecidos que, às vezes, sabem dizer mais sobre nós do que nós mesmos naquele dia. É um espelho de quem fomos e de quem queríamos ser, com todas as doçuras e problemas que isso envolvia e que talvez nós até já resolvemos. E ali, no reflexo, vemos que em algum lugar lá dentro ainda somos as mesmas; que sobrevivemos a tudo que nos aconteceu desde então e que temos sim força para seguir adiante; que nossos sonhos podem até ter mudado, mas talvez sejam ainda muito parecidos; que agora você já conhece aquela rua pessoalmente, veja só as voltas que a vida dá.
Talvez os filmes e séries que gostamos hoje caiam no esquecimento no meio das andanças da nossa vida. Mas talvez eles se tornem o conforto que mais precisamos um dia lá na frente ou agora mesmo, na semana que vem, por que não? Nossos filmes e séries de conforto são também um registro da nossa trajetória. E olhar para trás e receber o abraço de quem fomos é, muitas vezes, tudo que precisamos para seguir em frente.
Até o próximo passeio :)
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A edição enviada por e-mail foi sem dois links! Assim como Frances Ha, a gente já teve aqui edição de Sex and the City: https://luisapm.substack.com/p/andancas-46-sex-and-the-city?utm_source=publication-search
e De repente 30: https://luisapm.substack.com/p/andancas-50-de-repente-30?utm_source=publication-search
:)
Amei o texto!! Me sinto exatamente assim com meus filmes e séries de conforto. Até fiz uma lista pra mim mesma chamada "canja de galinha", pois eles cumprem a mesma função pra alma que uma canja quentinha tem pras doenças físicas hehe 🖤