#9 Andanças Especial, parte 1/4: As férias do Sr. Hulot
Retrogradação, falhas de comunicação e trapalhadas urbanas
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas, trilogias, são o tema de um diretor ou possuem vários filmes com um mesmo personagem. É o caso desse primeiro passeio especial que começa hoje e segue quinzenalmente até o mês que vem. Falaremos da cidade a partir de 4 filmes do diretor Jacques Tati com o seu famoso personagem principal: Monsieur Hulot.
Na astrologia, a retrogradação é um período em que um planeta faz um movimento na direção oposta à que faria normalmente. Em outras palavras, ele “anda para trás”. Quando isso acontece, a área da vida que aquele planeta rege tende a ser influenciada: é um período em que as coisas parecem não avançar, dão errado com mais facilidade e nos convidam a reavaliar nossas ações e formas de pensar. Quando o planeta em questão é Mercúrio, o que é afetado são as nossas falas, meios de comunicações, nossos estudos, conversas e expressividades.
É justamente o período em que estamos agora, que vai até o comecinho de outubro. Não sei você, mas dessa vez esse Mercúrio retrógrado está me pegando com tudo. Me sinto estranha, desajustada. Escrever qualquer coisa tem sido mais difícil, conversar também. Me pego falando a coisa certa na hora errada ou a coisa errada em uma hora pior ainda. Tenho sentido essa dificuldade desde semana passada e, como isso está na minha cabeça desde então, queria trazer para esta edição algum filme que tratasse um pouco dessas falhas de comunicação.
E quando penso em confusões dentro do espaço urbano, nada me vem à mente com mais força que os filmes do comediante Jacques Tati com o personagem Monsieur Hulot. Ao longo de quase 20 anos, Tati construiu esse personagem peculiar e atrapalhado - que é, inclusive, interpretado por ele mesmo - em 4 filmes, onde vemos a cidade mudar e a nossa forma de nos movimentar por elas também. Se você nunca assistiu ou ouviu falar desses filmes, o personagem do Sr. Hulot foi a inspiração de Rowan Atkinson para criar o nosso conhecido Mr. Bean, então isso já te dá uma ideia de como são as trapalhadas de nosso protagonista. Assim como em Mr. Bean, não há muitas conversas entre os personagens, mas a reflexão fica por conta das próprias imagens e das ações das pessoas: Sr. Hulot anda para lá e para cá em uma cidade que vai, ao poucos, sendo “modernizada”. Há muitas diferenças entre nós hoje e aquele mundo, mas, se pararmos para pensar, há também muitas semelhanças.
Como não se trata de um filme, mas quatro, esta é uma edição especial das nossas Andanças. Começaremos hoje, na edição #9 com As férias do Sr. Hulot (Les vacances de Monsieur Hulot, 1953), e seguiremos quinzenalmente com os próximos 3 filmes nas edições #11 - Meu tio (Mon oncle, 1958), #13 - Playtime - Tempo de diversão (Playtime, 1967) e #15 - As aventuras de M. Hulot no tráfego louco (Trafic, 1971). Apesar dessa divisão, nossa conversa se articula sempre com o conjunto em mente.
Conhecemos o Sr. Hulot pela primeira vez em suas férias de verão indo para uma pequena cidade litorânea na França em As férias do Sr. Hulot. Mas não vemos somente ele: Tati nos mostra toda uma movimentação de pessoas da cidade para praia a fim de aproveitar o verão. E, quando um grande número de pessoas está indo para um mesmo lugar, é impossível não existir o caos - sabemos muito bem disso na nossa vida do século XXI. A diferença é que aqui vemos as pessoas vivendo em cidades dos anos 50, com a tecnologia daquele momento à sua disposição para ir e vir.
No entanto, há mais semelhanças com a nossa vida de hoje do que pode parecer em uma primeira vista. Ali, os trens são de locomotivas à vapor, mas quem é que nunca errou a plataforma e viu seu metrô ou ônibus ir embora do outro lado da estação? Nessa semana mesmo, saindo do ônibus em uma das estações tubo de Curitiba (que funciona como um metrô, só que de superfície), ouvi um moço meio desorientado falar para a cobradora que tinha saído pela porta errada. Lembrei das trapalhadas do Sr. Hulot e também das minhas próprias: perdi a conta de quantas vezes “errei” os caminhos por cidades que eu não conhecia bem, andei mais do que precisava, dei informações erradas para desconhecidos, me perdi nos corredores subterrâneos do metrô.
Quando passamos um tempo maior em uma cidade, vamos pegando as suas manhas. Primeiro o jeito “certo” de se locomover por elas e depois outras formas, menos conhecidas, mas que tornam o processo mais fácil - os atalhos, os segredos, os jeitos que alguém um dia descobriu e passou para frente. Mas é mais difícil chegar nelas quando o caminho que fazemos é trilhado só às vezes, nas férias, ou nos é totalmente desconhecido. E, quando não é só você que está nessa situação, mas todo mundo, tudo tem o potencial de virar uma grande confusão.
E a confusão aqui não fica somente na ida até a cidade praiana, ela permanece durante todo o tempo que o Sr. Hulot está lá. Claro, com seu jeito todo atrapalhado, ele é o grande responsável por uma boa parte delas. Mas todos os outros personagens não estão em situações tão diferentes. É um caos de carros antigos estragando no meio do caminho, pedestres quase sendo atropelados em ruas sem sinalização, barcos que se soltam sozinhos, brigas entre as pessoas, cavalos que se soltam, uma profusão de mal-entendidos. Todos são meio atrapalhados, assim como nós.
É engraçado como a pessoa mais coordenada do filme é uma criancinha que equilibra sorvetes. Ela tem só um objetivo: levar aqueles sorvetes intactos até o seu amigo - e o faz com uma maestria e paciência que nenhum adulto ali carrega. Como adultos, nossos movimentos são cheios de expectativas, ansiedades, desejos, medos. Nossa cabeça está em um lugar diferente dos nossos pés, racionalizamos nossos passos, pensamos mais onde queremos chegar do que onde estamos. Nossa pressa, nossa vagareza, nossas pausas e nossas atenções influenciam como uma rede o mundo ao nosso redor e geram uma reação em cadeia. Percebemos os movimentos dos outros, os repetimos ou vamos na direção contrária a depender da nossa posição nessa dança urbana.
A cidade é caótica porque somos caóticos. E somos caóticos há um longo tempo. Costumamos pensar que esse caos é um mal dos nossos tempos, mas os livros e o cinema estão aí para nos mostrar que vários citadinos já pensaram que o seu mundo era o fim, que aquela cidade que o/a cercava era o próprio apocalipse se iniciando na terra. A cidade moderna se fez nesse ciclo da novidade que surge e nos desnorteia, para depois virar rotina, algo com a qual já estamos acostumados. E aí o ciclo se inicia mais uma vez. Cada época teve suas novidades e em cada uma o caos estava instalado - enquanto isso, continuamos tentando compreender o que nós mesmos estamos fazendo por ali.
Se isso já acontecia nas férias em uma pequena cidade na década de 50, imagina o que nosso Sr. Hulot ainda não vai aprontar no decorrer desses 20 anos. Imagina o que acontece na nossa vida hoje, em cidades imensas do século XXI.
No próximo passeio do Sr. Hulot, daqui a duas semanas, o veremos em sua casa em um bairro charmoso (e caótico) na cidade. Só que essa cidade já começa a mudar: em outros bairros não tão distantes há casas muradas com portões automáticos e as ruas são tomadas de regras explícitas e veladas sobre como se movimentar. É essa tensão entre dois mundos coexistentes que veremos em Meu tio. Na semana que vem, seguiremos nossas Andanças por outras paisagens.
Te encontro lá :)
Os filmes de Tati com o Sr. Hulot costumam estar disponíveis para assistir na Mubi. No momento da escrita desse texto, entretanto, os filmes não estão mais no catálogo. Mas, se você estiver lendo esse texto em um outro tempo, vale a pena checar se eles voltaram para a plataforma :)
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