#9: Anora
Hierarquias, poder e uma dificuldade de entender e escrever mulheres
Atenção: este texto faz uma análise que adentra em mais detalhes do filme e, por isso, pode conter spoilers.

Anora é novo filme do diretor Sean Baker, que já dirigiu outros filmes de bastante destaque como Projeto Flórida (The Florida Project, 2017), Tangerine (2015) e Red Rocket (2021). No ano passado, Anora levou o maior prêmio do Festival d Cannes, o Palm d’Or. Aclamado pelos festivais por onde já passou, Anora foi indicado e levou diversos prêmios até agora, sendo um dos cotados para o Oscar deste ano, principalmente pela atuação de Mikey Madison como a personagem principal.
O filme conta a história de Ani (apelido para Anora), uma jovem de vinte e poucos anos que trabalha como dançarina erótica em uma casa noturna de Nova York. Em uma noite de trabalho, ela conhece Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem russo de 21 anos extremamente rico que logo se afeiçoa por ela. Ivan contrata Ani para atendê-lo por um período mais longo fora do clube, acompanhando-o em sua rotina como uma namorada.
Durante uma viagem por impulso para Las Vegas, Ani e Ivan, também impulsivamente, se casam. O casal volta para a mansão dele nos arredores de Nova York e vivem poucos dias como casados até que a notícia chega em sua família na Rússia, que não a recebe nada bem. Seus pais exigem satisfação de Toros (Karren Karagulian), responsável por cuidar de Ivan nos EUA, que imediatamente envia na frente o irmão Garnick (Vache Tovmasyan), para lhe dar tempo até que possa chegar na casa. Garnick segue acompanhado de Igor (Yura Borisov) para lhe dar suporte e assim se fecha o nosso ciclo de personagens. Os pais querem que os dois anulem o casamento, mas Ivan foge antes que Toros, Garnick e Igor consigam o segurar.
A partir dai, tudo vai por água abaixo.
Anora é, antes de tudo, um filme sobre poder. Mais especificamente, sobre o poder do dinheiro e o tamanho do dano que ele causa na vida das pessoas. Ninguém está ileso aqui, mas os danos se apresentam de formas diferentes em cada um dos personagens. No topo dessa diferença, está a relação hierárquica que se estabelece entre todos eles e que deixa marcas muito claras ao longo de todo o filme. Existe uma estrutura de poder vertical que parte dos pais de Ivan, Galina (Darya Ekamasova) e Nicolai (Aleksei Serebryakov) Zakharov, e desce para o próprio Ivan, Toros, Garnick, Igor e, por fim, Ani - o ponto mais baixo e frágil dessa cadeia.
Galina e Nicolai são os detentores máximos desse poder porque, além de serem os donos do dinheiro propriamente dito, também é deles o poder supremo de decisão, algo que Ivan não tem - e vem dai o rastro de destruição literal e simbólica que ele deixa. A grosseria e a pressa dos outros personagens também mostra o lugar que ocupam nessa cadeia: seu comportamento também é de desespero para assegurar o próprio poder, ou seja, manter-se em boa relação com os Zakharov para continuar recebendo suas bênçãos.
Ani pensa que a condição de casada a coloca, se não em pé de igualdade com Ivan, em uma hierarquia logo abaixo dele. Ela não vê que, na verdade, está muito mais próxima do papel de Igor: alguém que cumpre um trabalho, recebe por ele e tem um poder muito limitado sobre o andamento das coisas.
Essa estrutura é muito interessante de se ver, o problema é que o diretor Sean Baker (que também é o roteirista) parece saber melhor o que fazer com os homens do filme. Nicolai, Ivan, Toros, Garnick e Igor, tem todos algum tipo de estrutura sólida por onde navegam, uma personalidade marcante que se sustenta em todas as suas certezas e ambiguidades. As mulheres principais do filme, Ani e Galina, acabam caindo mais cedo ou mais tarde em formas prontas estereotipadas e antagônicas: a totalmente malvada e a totalmente boazinha, a que causa todas as dores e a que sofre todas elas. São as duas mulheres nos extremos dessa cadeia de poder, ambas sem ambiguidade, sem contradições, sem desejos além daquilo que está posto. É como se Galina fosse essa máquina de moer tudo e todos os estereótipos relacionados a isso foram unidos em uma personagem só: da sogra, da frieza russa e da mulher mais velha com poder, da falta de escrúpulos do poder do dinheiro, dos olhos azuis gélidos e do cabelo loiro de vilã - tudo em alta costura, claro.
No outro extremo, algo parecido acontece com Ani. No entanto, como ela é a nossa protagonista e é ela quem acompanhamos durante todo o filme, o roteiro não só a coloca em estereótipos diferentes ao longo do tempo, como também é incoerente com o que propõe inicialmente. Quando a conhecemos em uma noite de trabalho, Ani é dinâmica, decidida, segura de si e parece transitar por aquele mundo com um certo domínio. Não apenas com relação aos clientes, mas também com as colegas de trabalho e no posicionamento que tem em relação aos seus chefes. Ela encara as ofertas de Ivan sempre com muita cautela e negociação nos primeiros dias. A gente fica imaginando que o que ela mais quer de imediato é poder ter uma vida boa, sem nenhuma das preocupações que tem atualmente. Pode ser também que, lá no fundo, Ani queira segurança, estabilidade, conforto, alguém que a ame, a queira e a proteja. Faz sentido que ela queira aproveitar a oportunidade e, ao mesmo tempo, desejar que aquilo tudo seja realmente a vida de sonhos, a sua versão de Cinderela.
O problema é que, a partir do momento em que o casamento acontece, Ani parece perder toda a personalidade que tinha antes. Primeiro, fica difícil de acreditar que alguém tão cautelosa e esperta em um mundo de homens grosseiros não teria minimamente um pé atrás com um cara tão jovem quanto ela (que deixou claro que o dinheiro que tem vem do pai) e tão rico dessa maneira poderia simplesmente casar com quem quisesse. Que alguém que unicamente joga videogame o dia inteiro tivesse algum tipo de poder de escolha.
Segundo, ela baixa a sua guarda muito rápida e facilmente com alguém que conheceu há duas semanas. Ani é alguém que transita por um mundo de perigos. Ela não pode ser ingênua - e é exatamente isso que vemos no início do filme. Mesmo que exista um sentimento envolvido, baixar as defesas emocionais também não é algo feito com tanta facilidade, mesmo que a gente queira. Ani pode ser sonhadora, mas não é uma jovem inexperiente deslumbrada. Acho que é muita subestimação da própria personagem achar que, no primeiro óbvio sinal, ela continuaria se apegando ao conto de fadas tão cegamente.
É como se, a partir do momento que o nome de Galina entra em cena, Ani precisa diminuir. Mas o roteiro não sabe como fazer isso de uma forma coerente, então transforma as duas mulheres do filme em vilã sem coração e mocinha desiludida. Todos os homens possuem nuances, facetas, versões que a gente pode se relacionar que fazem com que nós não gostemos e gostemos deles ao mesmo tempo. Anora força a nossa antipatia por Galina e a nossa empatia por Ani, de um jeito que não faz com nenhum outro personagem - e isso não funciona.
O final é duro, quando a gente percebe o quanto o trabalho que Ani faz afeta o seu estado emocional e psicológico. Mas ele acaba deslocado quando o restante não é atendido. O final não é o suficiente para que a gente possa entender o que fez Ani acreditar tanto e fica parecendo uma solução rápida para deixar que a gente junte as peças e chegue a uma conclusão. É como se tivéssemos dois filmes diferentes aqui.
Eu queria ver Ani sendo mais sagaz. Sacando a situação logo de cara e fugindo junto com Ivan ou então dando um jeito de manipular os três caras com quem passa a maior parte do filme. Queria ver ela engando eles, tentando fugir deles, jogando tudo pro alto e escapando sozinha daquela situação e se embrenhando pela cidade. Queria que ela partisse pra cima de alguém de verdade, não só na cena meio estranha do início dessa treta toda. O arco de reconhecimento da falta de poder entre ela e Igor é bonito, mas ele começa mal e termina mal também. Faz todo sentido o quanto Ani duvida dele até quase o último momento - algo que mostra as defesas dela levantadas o tempo todo, o que faz ser ainda mais incoerente o fato de ela não ter uma postura minimamente semelhante com Ivan.
Anora é visualmente muito bonito, com uma fotografia e uma trilha sonora ótimas, principalmente na primeira parte. A rota de busca por Ivan pelos arredores de Coney Island, em Brighton Beach, também é muito interessante por mostrar uma outra vizinhança de Nova York que não vemos sempre.
O trabalho de Mikey Madison como Ani é incrível, mas o filme falha com ela. Eu acho que Anora poderia ser um filme muito bom se realmente mergulhasse no universo interno e externo de sua protagonista, aquela que dá nome ao filme - algo que inclusive, é mais uma falha com ela: escolhe por título um nome que ela não quer usar. Mas, para isso acontecer, talvez seria necessário vê-la para além das lentes da perspectiva masculina do que seriam a vida e as emoções de Ani. E isso, Anora definitivamente não faz.
Anora estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta, dia 23 de janeiro. Veja o trailer aqui.
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você conseguiu colocar em palavras tudo o que eu queria dizer sobre esse filme