#91 Um cafezinho: os meus quatro filmes andantes favoritos de todos os tempos
uma lista para comemorar os 2 anos de Andanças! <3
Filmes com pessoas andando pelas cidades e conversando sobre a vida sempre foram os meus favoritos, mesmo quando eu ainda não tinha uma noção muito clara disso. Os filmes que eu mais gostava quando criança envolviam algum tipo de andança por aí, com personagens queridas que iam andar por outras cidades, aventuras que iam nas minúcias de pistas escondidas pelas calçadas, comédias românticas que aconteciam nas ruas de cidades movimentadas. Sei lá. Tem algo nisso tudo que sempre me atraiu muito e essas histórias urbanas - das adolescentes às clássicas, das levinhas às complexas, as comédias e os dramas, os clichês e as diferentonas - moram todas no meu coração.
A Andanças nasceu dessa vontade de falar um pouco mais sobre esses filmes que eu gostava tanto em um momento em que eu não só estava assistindo muita coisa como também lendo muita coisa sobre cidades. Minha tese traz uma pesquisa histórica das transformações urbanas que aconteceram no século 19 e 20, com uma discussão sobre modernidade, tecnologia e progresso. Eu estava completamente imersa em tudo isso e vendo nos filmes vários paralelos e conexões interessantes. Mas havia também todas as emoções que me faziam sentir profundamente esses filmes, que me faziam devorar todos aqueles livros teóricos e vários outros de literatura que também tinham as calçadas como palco. A newsletter surgiu do desejo de levar tudo isso para algum lugar, de elaborar e deixar sentir e, quem sabe, encontrar pessoas que também gostassem disso. Marcar um ponto de encontro nessa imensa cidade da internet e chamá-las para um pequeno passeio, toda semana por um lugar diferente.
Dois anos depois, cá estamos, seguindo rumo aos 100 passeios realizados: 100 edições escritas e enviadas (quase) toda semana para um número de pessoas que só aumenta. Já vimos filmes, séries e videoclipes andantes de todos os tipos e para todos os gostos e ainda tem muita coisa para ver e falar a respeito. A gente construiu esses passeios juntos, desbravando as avenidas de como fazer tudo isso dar certo e continuar. É surreal pensar que tanta coisa foi escrita durante tanto tempo e que estamos sempre aqui juntos descobrindo novos caminhos. Um super obrigada tanto para você que já é um/a andante de carteirinha quanto para você que acabou de chegar. Para parafrasear nossa edição número 0, é sempre muito bom te ver por aqui <3
E, bom, nessa vida inteira de uma grande biblioteca de filmes andantes acumulados, eu acho que dá para dizer que eu já vi muita coisa e a minha lista sempre aumenta com tudo que eu esbarro por aí e filmes que vocês também me recomendam. Então, para comemorar esta edição de aniversário, decidi trazer uma lista dos meus quatro filmes andantes favoritos de todos os tempos - que também são, é claro, os meus favoritos de uma maneira geral. Essa lista sempre vai mudando conforme eu descubro coisas novas e conforme o meu gosto muda. Esses são filmes que me pegaram de alguma maneira, que trouxeram elementos novos que eu ainda não tinha visto e que estão em um lugar diferenciado para mim atualmente.
Eles não estão listados em nenhum tipo de ordem de preferência (até porque eu não sei se conseguiria fazer isso). E como sempre, se algum desses filmes ainda não teve uma edição aqui na Andanças, ela acontecerá no futuro :)
1. Amor à flor da pele (花樣年華, 2000, dirigido por Wong Kar-wai)
Já começamos a lista com um velho conhecido: Amor à flor da pele foi o filme da nossa edição #37 e voltou aqui em uma reprise do mesmo texto na edição #78. Se você nunca ouviu falar sobre ele, em resumo, aqui acompanhamos a sra. Chan (Maggie Cheung) e o sr. Chow (Tony Leung Chiu-wai), dois vizinhos solitários que descobrem que seus respectivos cônjuges estão os traindo juntos. Nossos dois protagonistas caminham pela noite de Hong Kong trazendo algumas das cenas mais lindas que eu já vi na minha vida. Tudo aqui é absolutamente perfeito: a iluminação quente e baixa, o ritmo lento dos passos, o violino da trilha sonora, a câmera que avança devagar nos detalhes, os vestidos da sra. Chan, o foco nos dois quando há mil coisas acontecendo, além da própria história, que é linda. Tudo em Amor à flor da pele me tirou o fôlego não só na primeira, como também na segunda vez que eu assisti e suspeito que isso vai acontecer toda vez que eu colocar os olhos nesse filme. A respiração para, o coração acelera, dá para sentir o calor daquele lugar úmido, dá para ouvir as palavras que não saem da boca de nenhum dos dois, dá para sentir a angústia, o desejo, o pesar. Eu desmonto toda vez que o violino chega, viu. Torço muito para ter a chance de ver ele na tela de cinema algum dia.
Se você gostou desse filme, recomendo também, do mesmo diretor, Chungking Express (重慶森林, 1994, sobre o qual já falamos aqui) e A mão (手, 2020), que tem apenas 56 minutos e é lindo, sensual, cheio de delicadeza e de um toque que dá para sentir fora da tela (é de cortar o coração também, então vá preparado). Todos os três estão disponíveis para assistir na Mubi junto com outros filmes do diretor. Eu ainda preciso ver 2046, Fallen Angels e Happy Together.
2. Desencanto (Brief Encounter, 1945, dirigido por David Lean)
Eu acho esse simplesmente um dos filmes mais geniais de todos os tempos. Um filme inglês, feito em um período em que a Grã-Bretanha ainda estava totalmente envolvida e afetada pela Segunda Guerra Mundial, ele é muito simples na sua ambientação, com características de um filme noir, e absurdamente brilhante em todos os aspectos que envolvem essa história. Em poucas palavras, o filme acompanha Laura (Celia Johnson), uma dona de casa do subúrbio que uma vez por semana toma um trem para a cidade mais próxima para fazer compras e ter um tempo para si. Em um desses passeios, Laura conhece o médico Alec Harvey (Trevor Howard) e as coisas se aceleram vertiginosamente. O mais legal de tudo é que a história é inteira contada através do fluxo de consciência de Laura conforme ela analisa em retrospecto o que lhe aconteceu nas últimas semanas. É ela quem narra os acontecimentos e também os sentimentos conflituosos que está sentindo. O desejo, a culpa, o sonho e a realidade. O filme foi escolhido em uma votação entre diversos especialistas como o filme mais romântico de todos os tempos (e Amor à flor da pele ficou em terceiro lugar). Mas eu acho que ele ainda vai muito além do romance impossível entre os personagens. Laura está no centro de tudo e a gente pode acompanhar essa mulher comum sentindo toda essa gama de sentimentos, suas dúvidas e suas decisões a respeito disso, e tudo enquanto ela anda por aí, com todas as liberdades e restrições que tem naquele momento. A estação de trem como cenário principal dessa história deixa tudo ainda mais bonito e triste, com a velocidade dos vais e vens e encontros breves, nos mostrando que, com a mesma rapidez que as coisas surgem nesse novo mundo, elas também se vão. O roteiro é assinado pelo escritor britânico Noël Coward e foi uma adaptação de uma peça chamada Still life, escrita por ele em 1936. Tem muita coisa incrível para falar sobre esse filme e quando chegar a edição dele, ela vai ser longa, viu. Esse eu assisti pela primeira vez no cinema, em uma mostra especial que eu fui sem saber nada e sai de lá abismada.
O segundo filme mais romântico de todos os tempos, segundo a votação citada, é Casablanca (1942, dirigido por Michael Curtiz, disponível na Max) outro filme maravilhoso e que dialoga muito bem com esse.
Desencanto está disponível para assistir gratuitamente no canal do projeto do Cine Antiqua e também no canal Logos Fílmico no Youtube. O filme está em alta resolução e com legendas em português em ambos. Dê uma olhadinha nos comentários dos vídeos - o consenso geral é de que esse é um dos melhores filmes já feitos e que não há palavras para descrevê-lo.
3. A noite (La Notte, 1961, dirigido por Michelangelo Antonioni)
Lidia (Jeanne Moreau) e Giovanni (Marcello Matroianni) são um casal em uma crise no relacionamento e também na vida pessoal de cada um. O filme acompanha o casal durante um dia e uma noite, mostrando o abismo que há entre os dois. À noite, vão juntos para uma festa em um casarão com um imenso jardim e lá se separam para entrar em conversas diferentes. Em dado momento, Giovanni conhece Valentina (Monica Vitti), uma jovem rica filha do dono da casa, e as coisas se bagunçam ainda mais entre o nosso casal protagonista. Acho que esse é um filme que eu ainda preciso assistir mais vezes para compreender melhor todas as sutilezas e tudo que não está dito. Esse filme é o segundo da chamada “Trilogia da incomunicabilidade”, que também começa com o filme A aventura (que eu ainda não assisti) e fecha com O eclipse. Na minha interpretação, o filme traz esses contrapontos de um casal que alcançou tudo que poderia querer e que sente falta do mais básico, algo que eles não tem mais e já não sabem como alcançar - tanto individualmente quanto no relacionamento. Só que isso é transposto também para a cidade: Lidia anda por uma Milão nova, repleta do vidro e do concreto de uma arquitetura moderna que também parece estar em falta do mais básico. As ruínas de uma Milão do passado, por onde ela anda, parecem refletir também as ruínas que ela tem dentro de si e que foram substituídas por uma superficialidade de uma vida com fama, dinheiro e pessoas influentes. O filme tem uma fotografia em preto e branco maravilhosa e as cenas de Lidia andando pela cidade sozinha são absurdas, com enquadramentos perfeitos entre ela e os prédios imensos. Jeanne Moureau e Monica Vitti estão incríveis aqui. É um filme mais duro, eu acho, mas que trata muito sobre essa solidão em um mundo de vazios tão espalhafatosamente preenchidos.
Outro filme de Antonioni que eu gosto bastante é Deserto Vermelho (Il deserto rosso, 1964, achei para assistir somente aqui com legendas em inglês), que traz Monica Vitti como uma dona de casa em uma cidade industrial em decadência e que anda por lá refletindo sobre si mesma.
Infelizmente, A noite não está mais disponível em nenhum streaming no momento (achei apenas para assistir aqui com legendas em italiano). Se isso mudar, atualizo a edição.
4. Columbus (2017, dirigido por Kogonada)
Se em A noite a arquitetura moderna recebe esse olhar crítico mais negativo do diretor, em Columbus ela é vista com um olhar lindíssimo, que reverencia toda a beleza dessas obras em um cenário muito diferente daquela Milão cinza. Aqui, conhecemos a cidade de Columbus, no estado da Indiana, nos Estados Unidos, uma cidade pequena cravada no meio-oeste do país que tem uma característica muito peculiar: é cheia de construções modernistas de arquitetos renomados. O filme aproveita esse cenário e cria uma história que se mistura com ele, tendo a arquitetura como elemento central na vida de nossos protagonistas. Jin (John Cho) chega à cidade para acompanhar o tratamento do pai, um arquiteto famoso que passou mal durante uma passagem pela cidade e que está em coma no hospital local. A relação dele com o pai é cheia de ressentimentos e, consequentemente, a arquitetura acaba sendo esse um ponto de conflito entre eles. Ali ele conhece por acaso Casey (Haley Lu Richardson), uma garota que acabou de sair do ensino médio e que trabalha em uma livraria, adiando os planos de ir para a faculdade para cuidar de sua mãe, que tem um problema com substâncias. Diferente de Jin, Casey tem um amor profundo pela arquitetura e conhece muito bem os edifícios da cidade e sua história. Eles começam então uma grande andança conversando sobre arquitetura, enquanto observam os prédios e falam sobre os sentimentos que eles os trazem, bem como as dificuldades que ambos tem e tiveram com a família. A relação entre eles não é romântica: há uma certa conexão entre passado e futuro, entre as mágoas de uma geração e as possibilidades de outra, assim como a relação que eles tem com os lugares e os conflitos envolvidos nisso. O filme é uma das coisas mais bonitas que eu já vi, daqueles singelos e absurdamente tocantes. Nem preciso dizer que é um prato cheio para quem se interessa por arquitetura.
Acho que um bom par para esse é o filme Medianeras (sobre o qual já falamos aqui!) que também traça uma história entre dois personagens andantes enquanto fala para nós sobre a cidade por onde eles caminham. Mas ele também tem um ritmo e delicadeza que lembra muito Vidas Passadas (que também já vimos aqui).
Columbus também infelizmente não está disponível para assistir em streamings no Brasil já faz um bom tempo, mas você encontra ele no Youtube (em alta qualidade e com legendas em inglês).
A lista segue…
Esses filmes estão na ponta da língua porque são os meus quatro escolhidos para o meu perfil no Letterboxd e normalmente nossas edições com listas aqui possuem apenas quatro filmes, por uma questão de tamanho. Mas há mais alguns filmes que eu considero meus favoritos e essa lista continua. Me avise se você gostaria de ver a parte 2 dessa edição por aqui!
Enquanto isso, até o próximo passeio :)
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Como uma pessoa que prefere caminhar a andar de ônibus, carro, trem e metrô, este estilo de filme apresenta para mim opções com os quais tenho extrema afinidade. Os temas centrais deles, como a senhora resumiu, também me atraem porque sou uma pessoa interessada em saber de tudo um pouco. O último filme me chamou bem a atenção, por sinal, gosto de estruturas arquitetônicas, mas ainda não me aprofundei em pesquisas e estudos sobre a Arquitetura em si.
Luisa, eu tenho um caderninho onde anoto todas as indicações das edições da Andanças. Já assisti muita coisa boa por conta de suas indicações. Vou aproveitar o final de semana para ver algum desses filmes.
Parabéns pelos 2 anos. Vida longa!!!
um beijo.