Conheci este filme nessa lista há alguns anos atrás, enquanto buscava por um filme que fosse mais curtinho e que valesse a pena assistir – aqueles momentos em que a gente só quer algo fácil, que já está ali no streaming aberto, mas que nos surpreenda positivamente. Foi então que apareceu Blue Jay, que é uma pérola escondida na imensidão do catálogo de filmes desconhecidos da Netflix.
Se você mora em outra cidade que não a sua cidade de origem, ou já morou fora dela por um certo tempo, deve conhecer aquele sentimento de ver com olhos diferentes lugares que foram simbólicos, de uma forma ou de outra, quando você ainda morava lá. É algo parecido com revisitar, depois de muito tempo, uma casa onde passamos um longo período na infância: as coisas parecem sempre menores do que nos lembramos e, ao mesmo tempo, mais profundas do que eram. Cada pequena marca evoca uma lembrança. E isso acontece também com a cidade, mas em uma escala muito maior.
As cidades, de maneira geral, estão em constante mudança e, enquanto vivemos nelas, acompanhamos essas mudanças com proximidade. Podemos não gostar delas, podemos ficar chocados com o desenrolar das coisas, mas na escala de uma cidade, a maior parte das mudanças se dá aos poucos e já sabemos algo sobre elas antes de acontecerem efetivamente. É diferente quando estamos fora da cidade por um longo período: a imagem que guardamos dela é a do nosso passado. Toda mudança é um choque e toda permanência é uma revelação - ambos sentimentos que abrem caminhos para acessar espaços da nossa memória que nem sabíamos que existia. É um pouco do que acontece quando encontramos alguém que não víamos há muito tempo ou quando encontramos objetos que haviam sido esquecidos. É o que acontece o tempo todo nesse filme.
Nosso passeio de hoje é por uma cidade pequena e pacata no interior do estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Aqui, acompanhamos Amanda (Sarah Paulson) e Jim (Mark Duplass), ambos na casa dos quarenta anos, que retornam à cidade natal por motivos diferentes, coincidentemente no mesmo período, e se encontram sem querer no supermercado. Esse encontro desencadeia uma conversa e um passeio que vai durar todo o filme.
É um filme que evoca a lembrança, e a estética em preto e branco faz parecer que estamos em uma longa jornada por caminhos conhecidos, mas esquecidos: mergulhados no passado que foi deixado para trás, embora sempre presente. É como se cada lugar visitado por eles descortinasse uma nova passagem no mapa intrincado de ruas da memória, e os personagens descobrem ali uma nova camada de sentimentos.
É assim também quando fazemos, propositalmente ou não, nossos passeios por nossas próprias “ruas da memória”, as nossas memory lanes. O que começa como uma nostalgia divertida tem a capacidade de nos levar rua à baixo em questionamentos mais difíceis de fazer: quem eu era antes? Quem eu sou agora? Avaliar e comparar as diferenças é quase inevitável, ainda que doloroso. O mesmo acontece com nossos colegas de passeio.
Amanda: “Foi muito… meio perturbador… ouvir aquelas coisas. Quero dizer… eu parecia bem divertida […]. É quase como se eu não soubesse quem era a pessoa na fita.”
Inicialmente, essas lembranças são frescas: lugares que eles lembram e querem revisitar, velhos hábitos, piadas internas e apelidos antigos. Seguimos então para lugares esquecidos, memórias que foram enterradas e partes da história que eles escolheram não contar por completo num primeiro momento. Cada silêncio e cada lembrança é cheia de significados: a emoção vem sorrateira sem aviso prévio cada vez que os percebemos, seja no filme, seja na vida real.
O mais interessante de notar aqui é que, quanto mais significativos os lugares por onde eles passam, mais íntima vai se tornando a conversa e mais eles se sentem confortáveis para se abrir. Eles saem de um dos lugares mais “públicos” em que poderiam se encontrar com uma conversa meio superficial, cheia daquele estranhamento de pessoas que não se veem há muito tempo, totalmente fechados à situação estranha em que se encontram. Conforme uma conversa emenda na outra, surge a vontade de revisitar certos lugares e esses lugares, em contrapartida, suscitam conversas mais profundas. Os “lugares” que só eles conhecem são os que possibilitam as maiores aberturas.
A cidade é, então, uma grande caixa viva de lembranças que desabrocha sob nossos olhos já acostumados a outras paisagens. Nem sempre queremos acessar aquilo que ficou para trás, nem sempre é um sentimento de nostalgia gostoso. Mas há sempre uma noção de perspectiva: vemos o quanto andamos, mudamos, nos transformamos. Vemos nossas feridas que ficaram abertas por tanto tempo agora cicatrizadas, ou outras que não havíamos percebido que ainda precisam de cuidados para que possamos seguir em frente… sempre em frente. Vemos o que fomos, o que deixamos e o que ganhamos com a partida. Pensamos o que poderia ter sido, é claro, mas é importante lembrar que qualquer projeção é nada mais que um paradoxo: só vemos como vemos e só sentimos o que sentimos porque fomos o que fomos e passamos por onde passamos, com todas as nossas falhas, nossos traumas, nossas escolhas, nossas vitórias.
Esse é um filme que vai deixar o seu coração em pedaços. Chorei horrores quando assisti a primeira vez e chorei de novo (um pouco menos) reassistindo para escrever esse texto, mesmo lembrando bem de tudo o que ia acontecer. E o que faz ele ser assim é simplesmente o quão comum sua história pode ser. Não é uma história dramática de grandes proporções, daquelas que choramos já assistindo o trailer (muito pelo contrário, o filme proporciona algumas cenas engraçadíssimas). Ela é só extraordinariamente… comum. Mudam-se alguns elementos, talvez outros motivos, outras feridas, outras relações, e o esqueleto da história que vemos na nossa frente poderia muito bem fazer parte das nossas vidas. E é exatamente isso que nos devasta.
Assim como os personagens que reviram e revivem seu passado, todos nós temos uma história que ficou para trás, quer a tenhamos resolvido ou não. E quando essa história deixou no passado também um lugar, uma outra vida, uma outra casa, aquilo que poderia-ser-e-não-foi, o impacto dos retornos é ainda mais forte. O que dá gatilho à história não é somente o encontro improvável de dois velhos conhecidos: é o encontro de ambos na cidade em que cresceram e viveram juntos, onde suas feridas foram criadas. As memórias não ficam gravadas somente em nós – elas estão também nos lugares por onde passamos.
Há uma certa poesia em envelhecer que ultrapassa qualquer sentimento de euforia das histórias intensas da juventude. Blue Jay nos envolve e quebra o nosso coração porque nós todos já estivemos nesse lugar de questionar o que teria sido e avaliar o que foi em algum momento de nossas vidas. Mas a perspectiva é algo que só pode vir com o tempo: é o sabor agridoce de acumular experiências, já saber algo sobre elas e conseguir ver de uma perspectiva mais ampla do que os olhos inexperientes podiam alcançar.
Às vezes, chorar é um belo de um remédio cicatrizante.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir? Netflix
Título original: Blue Jay
Ano: 2016
Diretor: Alexandre Lehmann
Que pérola escondida no Netflix. Amei tanto que nem sei! (E te ler, depois, que fechamento! ♥️)
eu amo esse filme e gostei muito de descobrir a sua newsletter, já coloquei pra seguir agora :')