Andanças #100: Desencanto
A cidade, o romance e uma carta de amor a um dos meus filmes favoritos de todos os tempos
A gente sabe que há alguns lugares específicos em algumas cidades específicas que são classificados como extremamente “românticos”. Lá onde grandes provas de amor são feitas, pedidos, declarações, noites iluminadas e passeios apaixonados de lua-de-mel. Mas a verdade é que as cidades são cheias de lugares potencialmente românticos e uma grande história de amor pode acontecer em qualquer lugar. Elas assentaram as pedras das calçadas, deram forma ao asfalto dessas ruas. Cada prédio antigo desse viu mais amores do que jamais conseguiria contar. Mas não podemos nos iludir, é da cidade que estamos falando: assim como os encontros rápidos e avassaladores acontecem, as despedidas também estão ali na próxima esquina. Rostos que nunca mais se veem, futuros que jamais existirão, fantasias que nunca se tornarão realidade.
Talvez as histórias de amor mais doloridas sejam aquelas que acontecem de alguma forma justamente nos lugares de passagem. Esses lugares específicos das nossas cidades onde os caminhos que antes seguiam juntos se separam. Não é preciso chegar ao ponto de uma grande viagem e de um grande aeroporto para uma história de amor épica. Elas estão mais perto de nós do que parece, embrenhadas no nosso cotidiano em um simples ponto de ônibus, no estacionamento em um lugar qualquer,
ou em uma estação de trem.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas e trilhos que cortam o interior da Inglaterra, em uma região cheia de subúrbios residenciais e pequenas cidades, a uma distância considerável de Londres. Em Desencanto (Brief Encounter, 1945, dirigido por David Lean), estamos no início dos anos 40, portanto ainda durante a 2ª Guerra Mundial e sob os efeitos que ela trazia diretamente no modo de viver das pessoas. Aqui acompanhamos Laura Jesson (Celia Johnson), uma mulher casada e mãe de duas crianças com uma vida comum, tradicional e tranquila dentro do possível naquele momento. Todas as quintas, ela vai até a cidade mais próxima para fazer compras para a família e passear sozinha: troca o livro da biblioteca, almoça em um restaurante, vê as novidades nas lojas e assiste um filme no cinema. No fim da tarde, toma um chá na estação e pega o trem de volta para casa.
Tudo muda quando, em um desses dias, um cisco entra em seu olho depois da passagem veloz de um trem expresso. Ali no café da estação, calhou de estar o médico Alec Harvey (Trevor Howard), que a ajuda. Os dois se despedem mas se encontram novamente ao acaso na cidade, onde ele trabalha no hospital excepcionalmente às quintas. A partir daí, a rotina de quinta-feira de ambos muda conforme eles se encontram toda semana, andam pela cidade e conversam. Os sentimentos começam a crescer e as coisas se aceleram vertiginosamente, como os trens de lados opostos que ambos pegam no fim do dia. Mas a paixão repentina já nasceu fadada ao fracasso: tanto Laura quanto Alec são casados e a possibilidade de trair, especialmente para Laura, é catalisadora de grandes conflitos internos.
“Sou uma mulher com um casamento feliz. Ou, aliás, era, até algumas semanas atrás. Este é o meu mundo… e isso me basta. Aliás, bastava, até algumas semanas atrás. Mas acho que fui muito idiota. Eu me apaixonei. Sou uma mulher comum. Nunca pensei que coisas tão violentas pudessem acontecer com pessoas comuns. Tudo começou em um dia comum, no lugar mais comum do mundo: num café da estação de Milford.”
Eu acho Desencanto um dos filmes mais brilhantes já feitos e, para mim, isso se deve em grande parte à forma como essa história é contada a nós. Ela começa do fim: Alec e Laura sentados silenciosos e tristes no café da estação de trem, interrompidos por uma conhecida que os priva do que eram, aparentemente, seus últimos minutos juntos. A partir de então vamos seguindo Laura e os seus pensamentos. Ela vai nos narrando o que está acontecendo consigo e, chegando em casa, olha o marido tranquilo no sofá e passa a imaginar como seria se ela lhe contasse ali, agora, tudo que está no seu peito, tudo que lhe aconteceu nas últimas cinco semanas e nos dias que passou com Alec. É a partir dessa divagação de Laura que compreendemos não só os fatos que a levaram até aquela despedida, mas também todos os sentimentos que a acometeram. É uma maneira incrível de apresentar na tela, com cenas em movimento, algo que normalmente leríamos como o fluxo de consciência de um personagem em um livro.
O filme já entrega de imediato o desfecho da história: Alec e Laura não ficam juntos. Mas não há spoiler que tenha a capacidade de entregar o que vai se passar nas próximas 1h30 de filme. Os atores tem uma química inegável e a maneira como eles se encontram, se envolvem e o que dizem um para o outro é de esmagar o coração de qualquer pessoa romântica. Mas para mim, a maior genialidade de Desencontro é a maneira como Laura nos conta tudo, como ela analisa a si mesma em retrospecto. O roteiro - que é assinado pelo escritor britânico Noël Coward e foi uma adaptação de uma peça chamada Still life, escrita por ele em 1936 - é de uma sensibilidade absurda e faz com que a gente se aproxime de Laura de uma forma tão tocante, que é como se estivéssemos ali com ela, ouvindo sua confissão. Como se fôssemos cúmplices dos seus crimes, testemunhas do seu conflito interno e da sua boa intenção acima de tudo.
E Celia Johnson é absolutamente incrível na sua interpretação de Laura, com expressões genuínas que se relacionam diretamente com aqueles pensamentos. Ela é capaz de mostrar apenas com os olhos uma gama imensa de emoções. Toda a culpa, o medo de ser descoberta, as mentiras que começaram a se acumular, as fantasias com uma vida onde tudo fosse mais simples… tudo misturado aos pequenos prazeres, ao desejo, à paixão que ela jamais achou que sentiria. Ela sabe que jamais seria poderia ser feliz com Alec, traindo o marido, mas também sabe que jamais poderá retornar a sua vida anterior. Ela não tem para onde ir.
“Isso não pode continuar. Essa infelicidade não pode continuar. Devo lembrar disso e me controlar. Nada dura para sempre: nem a felicidade, nem o desespero. Nem a própria vida dura muito tempo. No futuro, isso não me incomodará mais. Então, poderei pensar nisso com calma e boa disposição e poderei ver o absurdo disso tudo. Não, não quero que esse dia chegue, nunca! Quero me lembrar de cada minuto… para sempre. Para sempre, até o fim dos meus dias.”
Embora isso não seja diretamente mencionado, ambos estão vivendo um período completamente fora do normal, com a guerra já acontecendo há vários anos e as emoções daquela sociedade como um todo consideravelmente fragilizadas. O fim é uma realidade sempre à espreita e as despedidas já se tornaram rotina nesse cenário tão incerto onde tudo acontece tão rápido. O mesmo se dá também com os outros sentimentos, que sempre insistirão em surgir mesmo nos momentos mais complicados: a paixão é avassaladora, a conexão é rápida, um romance inteiro acontece e termina em poucas semanas. É tudo muito forte, muito intenso - e, ao mesmo tempo, dolorosamente impossível. É violento, como diz a própria Laura. Emoções inimagináveis que de repente acometem pessoas comuns.
Desencanto tem várias características que envolvem os filmes noir, em sua maioria estadunidenses: filmes feitos no período entre 1940 e 1950, com orçamento reduzido, fotografia em preto e branco com cenas escuras, muitas cenas noturnas em locais reais, com histórias que normalmente envolviam o crime e alguns estereótipos, como a femme fatale. São filmes que captam muito do espírito daquele momento, com todo o medo, a incerteza e as coisas escondidas. Só que aqui o crime é o adultério e nossa “criminosa” uma dona de casa respeitável de um subúrbio inglês. Laura não se encaixa em nenhum estereótipo: é uma mulher comum, com sentimentos completamente humanos, apaixonada por um homem também comum, envolvida em um dilema moral que parte seu coração ao meio, que a faz questionar quem é e que a leva para situações que ela jamais pensou que estaria. Da mesma forma, seu marido Fred (Cyril Raymond) também vai além de todos os estereótipos do marido em uma situação como essa e entrega uma das falas mais incríveis do filme. É tudo brilhante.
Em poucos minutos na sala de exibição, eu já tinha entendido que Desencanto seria um dos meus grande favoritos da vida. Eu não sei é a estação de trem, a história de Laura, o amor impossível ou a tragédia de tudo. Até a história secundária com os trabalhadores da estação me conquistou. Foi paixão imediata. O filme só ganhou mais espaço no meu coração na segunda assistida e com toda a pesquisa para esta edição. Eu sei que tem várias coisas que eu não cheguei nem perto de abordar, várias que ainda estão no ar, nas entrelinhas, naquilo que ainda não está tão claro e que talvez seja em algum momento.
Eu sinto que eu vou estar conhecendo esse filme a vida inteira.
Enquanto ela vai contando, vamos pensando em como tudo é muito breve mesmo. Que as histórias de amor vem e vão, e que elas parecem cada mais rápidas conforme nos distanciamos delas - conforme chegamos ao seu fim. Mas nada nunca se vai sem deixar marcas. Sem mudar tudo que entendíamos como mundo antes.
E seguimos andando, carregando as nossas histórias que, quem sabe um dia, irão parar também na ficção, onde podemos expor nossas marcas no mundo, contar o que vivemos e tocar tantas outras pessoas que um dia já se sentiram de forma parecida. Aí então criaremos em um lugar absolutamente comum uma nova tradição, um novo ponto sabidamente romântico na cidade por onde passamos. E as nossas histórias sobreviverão muito além de nós, cravadas nas pedras, no asfalto e nos prédios que um dia foram as testemunhas do que vivemos.
A estação de trem de Carnforth, onde Desencanto foi filmado, continua recebendo turistas e apaixonados, que fazem pedidos de casamento embaixo do grande relógio no topo da rampa.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Desencanto está disponível para assistir em alta resolução e com legendas em português no Youtube nesse link (com as legendas já no próprio vídeo) e também neste (é preciso ativar as legendas na configuração).
Links extras
- Desencanto foi escolhido em uma votação entre diversos especialistas como o filme mais romântico de todos os tempos. Além disso, ele é certamente um dos grandes clássicos do cinema britânico.
- “Esse filme hoje é tão bom quanto sempre foi e vai continuar sendo para sempre” - A profile of Brief Encounter, um excelente documentário curtinho dos anos 90 falando um pouco sobre o filme, bastidores dele e entrevistas com algumas pessoas envolvidas nele (com legendas em inglês).
- “A tragédia do tempo perdido” - uma review ótima sobre o filme, focando na relação dos dois com o tempo e elaborando um pouco mais sobre o quanto a guerra está presente no filme, mesmo sem ser mencionada (com legendas em inglês).
- Um vídeo de 2016 mostrando um pouco mais da estação real onde Desencanto foi filmado (que não é a de Milford como no filme, mas a de Carnforth), a história das pessoas que trabalham ali atualmente e a relação delas com a estação e o filme. O vídeo está em inglês e infelizmente não tem legendas, mas vale a pena nem que seja para ver a estação, ainda igualzinha a do filme, e a sala do café restaurada. A estação até criou uma pequena sala de cinema dedicada ao filme, que tem apenas 9 cadeiras, onde ele é exibido cerca de 1500 vezes por ano!
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Adorei saber sobre este filme, não o conhecia, mas vou a correr assistir. A sua descrição, como sempre, é apaixonada e apaixonante. Sinto-me muito confortada sempre que leio as suas news... elas dão-me um quentinho no coração.
Sobre este filme, só pela descrição, pareceu-me que é muito na onda de outro filme - As Pontes de Madison County. São distintos em muitos pontos, mas muito semelhantes na latência do amor... fadado ao término mesmo antes de iniciar. 😘🥰
Nossa, acho que vou amar também esse filme, só pelo que você descreveu... obrigada por compartilhar! Irei assistir, com certeza.