“- Você já viu?
- Não, mas é sempre assim.
- Qual é a graça?
- A graça não é saber o que acontece. É saber como acontece e quando acontece. A gente vai conhecer um monte de pessoas novas. Um monte de problemas que a gente não pode resolver, que só eles podem. Vamo ver como… e quando. Está começando.”
Começa simples, devagar. Um amor ingênuo que ainda é só um arranhar da superfície dessa coisa que são as questões do coração. Nem sempre sabemos o que é o amor ainda, amor de verdade mesmo. Andamos pelas ruas do bairro e imaginamos como seria uma história de amor ali, daquelas de tirar o fôlego que vemos nas telas do cinema e da tv. Projetamos expectativas, nos agarramos em nossos ideais. O problema é que a gente passou esse tempo todo dentro do nosso quarto lendo grandes histórias de amor que se passam em casarões aristocráticos no interior da Inglaterra vitoriana. Primeiros amores que se dão no corredor de escolas onde os estudantes colocam bilhetes em armários que não existem aqui, lá onde as casas não tem muros e adolescentes dirigem carros. O casal que se apaixona no meio de caos de ruas glamurosas, tão diferentes da pacatez dessas aqui. É a história da mocinha que tira férias em um lugar lindo e de cara encontra lá alguém perfeito para ela. Ou então até mesmo aquelas histórias diárias do horário nobre em calçadões praianos mais próximos de nós, mas onde nunca estivemos.
De tanto ver e rever, pode ser que a gente tenha aprendido a sonhar o amor em outra língua. Pode ser que a gente imagine como cenário um outro tipo de cidade, crie mentalmente diálogos com outras expressões no jeito de falar, imagine um figurino de roupas que não fazem sentido no calor escaldante que emana do quintal enquanto você sonha ali, indo longe nos pensamentos.
Era assim com Lisbela também, uma mocinha sonhadora que imagina o seu final feliz a partir dos inúmeros filmes que vê no cinema da praça. Ela já sabe o que acontece - quer saber como acontece. Mas o que ela não sabia era que a sua grande história de amor seria ali mesmo, no lugar onde sempre viveu, na cidade que sempre foi sua.
E que essa seria uma das histórias de amor mais bonitas do cinema brasileiro.

Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Vitória de Santo Antão, uma pequena cidade no interior do estado de Pernambuco, lá por volta dos anos 60. Aqui mora Lisbela (Débora Falabella), um jovem sonhadora, filha do delegado, que ama profundamente ir ao cinema e está noiva de Douglas (Bruno Garcia), um mauricinho local metido a carioca. Do outro lado dessa história está Leléu (Selton Mello), um cara galanteador que circula pelas pequenas cidades em seu carro equipado, vendendo todo tipo de mercadoria e serviço - e arrasando um bom punhado de corações pelo caminho. As coisas se complicam quando Leléu se envolve com Inaura (Virginia Cavendish) e o seu marido Frederico Evandro (Marco Nanini), um matador de aluguel, descobre o caso. Frederico jura Leléu de morte e vai perseguindo seu rastro pelas cidades nordestinas.
Eventualmente, nosso protagonista chega em Vitória de Santo Antão e conhece Lisbela no parque. Algo novo mexeu profundamente no coração do moço malandro e da mocinha com sonhos hollywoodianos - eles só não sabem bem o quê. E ali, pelas ruas da cidade, Leléu e Lisbela vão descobrir esses sentimentos e lidar com toda a bagunça que vai vir junto com eles em Lisbela e o Prisioneiro (2003, dirigido por Guel Arraes). O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome escrito por Osman Lins, que também já teve adaptações para o teatro e para a tv.

Uma boa parte da ação de Lisbela e o Prisioneiro se dá na praça principal, que costuma sempre ser um dos lugares mais importantes em cidades pequenas como essa. É ali que está a igreja, o cinema, a delegacia, o bar e todos os pequenos comércios que agitam a vida do lugar. É ali que Lisbela vai com uma alta frequência em seu santuário mais sagrado sonhar com um amor de cinema. Sonha tanto que nem percebe que o noivo ao seu lado não se importa. O amor ideal, o mais romântico que ela poderia encontrar, é um sonho distante cheio de nomes em inglês.
Fico imaginando quantas Lisbelas existiram nesse país, naquela época em que o cinema de rua era o principal canal de acesso visual a outros mundos e quando as distâncias eram muito mais longas. Quantas mocinhas sonhadoras se imaginaram como Lauren Bacall e Rita Hayworth, como ela? Fico pensando que talvez pelo menos algumas dessas tantas Lisbelas também tenham encontrado pelas ruas de suas cidades um amor que elas nunca haviam visto no cinema. Uma história de amor épica toda sua, cheia de drama, voltas e reviravoltas, casamentos caóticos e pé na estrada rumo ao desconhecido.
São as histórias que ouvimos quando crianças, contadas à mesa em uma tarde de domingo, com uma xícara de café gostoso e quentinho em uma xícara daquelas marrons de vidro da duralex. Histórias cheias de flertes no meio das andanças em um dia de trabalho, passeios pelos parques onde todos iam ver o movimento, serenatas muito bem feitas, vários e vários dramas antes e durante os casamentos, festanças durando dias, fugas pelas estradas a fora desse brasilzão. O que aconteceu vira história contada adiante, deixando no caminho as fotos em preto e branco pequenas coladas em um álbum de família de fundo verde e talvez ainda exista alguma louça dos presentes aos noivos em algum lugar. Não são histórias sem dores, sem obstáculos, sem dificuldades - o amor é um precipício… a gente se joga nele e torce para o chão nunca chegar, como diz Inaura. Mas são histórias profundas, verdadeiras, de quem decidiu mergulhar na emoção. E é quando aquela música toca no rádio, aquela que esteve ali em todos os momentos, que um sorriso nostálgico chega no canto da boca - o movimento sutil de quem sabe que viveu tudo que podia da própria história de amor. Músicas que são trilhas sonoras do amor de uma vida inteira nos versos mais bonitos que só o português desse Brasil consegue fazer.
“O amor me chamou pra um outro lado e eu fui atrás dele. Eu pensei que se eu não fosse, a minha vida inteira ia ser assim. Vida de tristeza, vida de quem quis de corpo e alma e mesmo assim não fez. Daí eu fui. Eu fui e vou, toda vez que o amor me chamar, vocês entendem? Como um cachorrinho, mas coroada como uma rainha.”

É muito interessante ver como Lisbela vai se transformando ao longo do filme, se despindo da representação hollywoodiana dos seus ideais para poder vivê-los em sua essência mais profunda. É engraçado quando Lisbela ouve de alguém a história do homem que domou o boi na praça, sem saber que era Leléu. Na sua imaginação, a grande aventura era um faroeste e ela está lá, toda vestida a caráter sendo salva pelo cowboy galã que fala com dublagem. Quando conhece Leléu, começa a se questionar. Quem é esse homem que fala com poesia frases que ela nunca ouviu em lugar nenhum? Mas quando tudo parece não seguir o rumo esperado, Lisbela acha que não é possível, que ela nunca poderá ter tudo - Mas já acendeu a luz do cinema… e agora vai começar a minha vida. Mas o cinema e os livros e as ideias sempre vem de algum lugar da vida vivida - e ela vai perceber que é nela que está a sua grande história.
A história de Lisbela e Leléu se encaixam uma na outra porque, no fundo, ele é um sonhador também. É o sonho que sempre o guiou, essa busca constante e infinita pelo desconhecido. Ele correu quando criança, e continua correndo, de certa forma. Assume vários nomes para si também, cria a ficção de outras vidas por todos os lugares que passa. Não é só Lisbela que encontrou na realidade a maior história de amor que poderia encontrar, Leléu também se viu imerso no que acontece quando ele fica e se permite ser flechado, se permite sonhar junto.

A poesia de cada fala existente em Lisbela e o Prisioneiro é de chorar de emoção. Eu nunca li o livro, mas imagino que ele deva ser fantástico. A história é romântica e engraçada, e ao mesmo tempo crítica, ácida. O roteiro aqui é uma coisa espetacular de bem feita: não tem uma linha que não signifique nada, que esteja ali preenchendo espaço, enchendo linguiça. A junção do texto, atuação, cenário, trilha sonora, tudo deixa o filme perfeito. Como pode um filme ser tão simples e tão bonito? Como pode essa junção de palavras ser tão poética, tão profunda e ao mesmo tempo engraçada, leve? A maneira como o filme se entrelaça com as sessões assistidas por Lisbela é incrível. A cena de despedida na cela, toda a sequência do casamento, Inaura retocando a maquigem ao som de Elza Soares, a deixa final do mocinho e da mocinha para a continuidade da história, reconhecendo que eles também são o que outras pessoas vão tomar como sonho, como ideal.
E não é assim com todas as histórias de amor?

Agora, que faço eu da vida sem você?
Você não me ensinou a te esquecer
Você só me ensinou a te querer
E te querendo, eu vou tentando te encontrar
São tantos os sonhos em outros idiomas, outras ruas, outro figurino. Longe das nossas palavras, dos nossos rituais, daquele jeitinho tão genuíno e nosso de viver as emoções que nos acometem. Talvez seja meio inevitável, considerando o tamanho da influência de tudo que vimos na construção do nosso imaginário. Mas, assim como Leléu e Lisbela, talvez a gente só tenha a ganhar em se despir das camadas prontas do sonho irreal e nos jogar no sonho das histórias que estão nos esperando aqui, agora, ao nosso redor. É isso que eles nos convidam a fazer.
Essas histórias não estão tão longe assim de Lisbela e Leléu. Saindo do cinema naquela época, talvez o amor estivesse ali fora, do outro lado da praça. Hoje, talvez ele esteja por aí, em algum lugar com mesas de plástico vermelhas, em meio aos litrões de cerveja gelada depois de um dia cansativo de trabalho ou estudos.
A gente só vai saber se sair da tela e ir lá fora espiar.
Uma boa andança de verão e até o próximo passeio :)
Onde assistir
Lisbela e o Prisioneiro infelizmente não está disponível para assistir em nenhum streaming, o que é um absurdo tremendo. Felizmente, o filme está disponibilizado na íntegra no Youtube aqui.
Links extras
- No cafezinho de semana passada, falamos sobre A cidade e a ficção e essa relação emocional e idealizada que temos com certos lugares que, muitas vezes, nunca conhecemos de verdade - mas que é conhecidíssimo nosso pelas horas e horas de episódios assistidos. Conversa bastante com a edição de hoje.
- Se você está em São Paulo, vai ter a Trilogia Before em exibição na Biblioteca Mario de Andrade hoje, amanhã e sexta! <3
- Uma playlist de amor brasileiro <3
- E se você está em Curitiba: neste sábado vai acontecer a finalização do Fanzine Grrrls Lab, um laboratório de zines que eu venho participando desde agosto. O evento é aberto ao público e vai ser uma feira de troca de zines (não acontecerão vendas, apenas trocas! Mais infos aqui). Sábado às 15h, na Casa de Leitura Wilson Bueno, junto ao Portão Cultural. Dá para aproveitar a ida e já ficar para uma sessão de Ainda estou aqui no novo Cinema Guarani, no subsolo.
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Outros passeios
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Amo, amo, amo esse filme!
Muito lindo seu texto <3
Dei um sorrisão quando vi que você escreveu sobre esse filme! Belo texto, como sempre!