Maria Callas (Maria, 2024, dirigido por Pablo Larraín) irá estrear nos cinemas brasileiros amanhã, dia 16 de janeiro. Não há spoilers nessa edição :)
Há muito tempo atrás, Joan Didion escreveu que contamos histórias para poder viver. É uma dessas frases que a gente vê por aí com frequência, nem sempre carregada em conjunto com as 44 páginas seguintes do ensaio que introduz. Talvez seja também uma daquelas frases que a gente compreende de verdade até certo ponto, mesmo quando entende racionalmente o que Didion quis dizer. É diferente senti-la na carne. Vê-la atravessando as sinapses nervosas do próprio cérebro para formar uma narrativa ao qual nos apegaremos para poder continuar.
Continuar buscando. Continuar esperando. Continuar vivendo mesmo quando imersa no absurdo dos próprios dias. Continuar, simplesmente.
É 1977. A cidade de Paris havia sido escolhida há alguns anos pela grande cantora de ópera Maria Callas para ser sua residência em um período em que sua saúde era frágil e ela já não podia mais cantar como antes. Callas morreu aos 53 anos em seu apartamento, no dia 16 de setembro daquele ano, por conta de um ataque cardíaco. Nessas cinco décadas, sua vida havia sido altamente tumultuada, emaranhada com os acontecimentos históricos do seu tempo e criando ela mesma, também, a história do século em que viveu. Era uma presença marcante tanto dentro quanto fora dos palcos. Alguém ao qual a mídia da época gostava de escrutinar, provocar, pisar em cima. Callas era um fenômeno além do que era possível explicar e isso nem sempre atraía bons olhos. Há de se querer mais - mais um pedaço, mais uma música, mais uma parte. Maria busca imaginar o que teriam sido os últimos 7 dias na vida da grande prima donna do século XX, interpretada aqui por Angelina Jolie.
A história de Callas não é tão conhecida por nós como aquelas de Diana e Jackie, protagonistas das outras cine biografias de Larraín. Talvez esse nosso desconhecimento gere um estranhamento com o filme, que não se propõe a explicar muita coisa do passado. Callas caminha por Paris relembrando sua vida em flashes e a acompanhamos nessa retomada. O filme não busca reconstruir a história, nem dar uma perspectiva real e literal do que foram aqueles últimos sete dias. É uma fantasia, uma história contada. Uma tentativa de arranhar a reconstrução do que sabe ser impossível de reconstruir.
É preciso um tanto de experiência de vida, talvez, para compreender nos ossos o que contar histórias para poder continuar significa. E acho que é só depois de um certo tempo que conseguimos ter uma dimensão do quanto essas histórias nos constituem e continuam constituindo. Demanda também uma auto-observação, um certo trabalho interno de buscar compreender os mecanismos da própria mente, a maneira como ela opera, como buscamos uma resposta, um significado. Nem sempre conseguimos ter essa percepção de nós mesmos sozinhos. Muitas vezes, é apenas com o trabalho atento de um profissional, que dá uma perspectiva e ilumina os caminhos por onde nos inventamos, que conseguimos ver realmente a teia de histórias que nos sustenta.
Didion dizia que
Interpretamos o que vemos, selecionamos o que funciona melhor entre múltiplas escolhas. Vivemos, sobretudo se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes, pelas “ideias” com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria que constitui nossa experiência real.
Talvez seja impossível mesmo sermos capazes de viver sem contarmos histórias a nós mesmos. Sem juntarmos as peças em uma narrativa que dê sentido às nossas alegrias e tragédias, aos sentimentos que carregamos dentro de nós e que ninguém sabe, uma razão para os nomes e palavras que marcam nossa história. O que seria a vida sem isso?
Talvez contar histórias seja parte do significa ser humano também.
O filme mostra como Callas tomava diversos remédios naqueles últimos dias, a ponto de estabelecer com eles uma relação de dependência. Em especial, é criada uma história em torno do Mandrax, um sedativo hipnótico que foi descontinuado nos anos 80 por conta de seu alto potencial de dependência e do abuso generalizado que se deu do remédio desde a sua criação, em 1965. Sob o efeito dele, Callas reconta a sua história em fragmentos, imaginando estar dando uma entrevista para um repórter com o mesmo nome do remédio (Kodi Smit-McPhee). Ela mora com dois criados, que também são seus amigos e as únicas pessoas que a acompanham diretamente e de perto nesses dias, o mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino) e a governanta Bruna (Alba Rohrwacher). Na preocupação pelo estado das coisas, há frequentemente um questionamento sobre a realidade. O que é real? O que é imaginação? Em dado momento, Callas fala que é ela quem determina o que é real ou não. Toma a frente do próprio rumo, como sempre fez.
“Às vezes, o contato básico com a realidade é bastante comprometido”, dizia o relatório psiquiátrico de Joan Didion, em 1968. É o que a gente sente quando está entrando em uma crise de ansiedade. A realidade ao redor parece uma pintura em movimento da qual não fazemos parte. O coração acelera, a respiração se torna curta e rápida. Sempre me pergunto se eu realmente estou sentindo aquilo ou imaginando. Se, de alguma forma mágica, eu mesma não me descolei daquela realidade vivida e mergulhei em outro lugar. Nesse estado, situações comuns parecem surreais e, quando prolongado, tudo parece uma grande viagem. Um filme, no qual participamos e assistimos ao mesmo tempo. Talvez seja algo parecido que Callas sentisse, sob o efeito dos remédios ou não. Protagonista máxima e também expectadora da própria vida. Mas isso também pode ser apenas uma história que eu mesma estou criando para conseguir compreender.
Em suas andanças por uma Paris em tons de sépia, Callas transforma a cidade em sua vida e traz os palcos para as calçadas em algumas cenas lindíssimas. Há uma em que Callas anda em frente a um teatro em Paris e para ali por um momento. O plano da câmera abre e vemos Maria em perspectiva em frente ao tamanho imenso da construção antiga. Pequena, minúscula. Apenas uma pessoa como qualquer outra andando pela imensidão do mundo existente e criado por nós, com todas as suas formas opulentas. Nenhuma pessoa deveria carregar tamanha carga em sua vida, tamanho peso e responsabilidade em um corpo tão mortal.
Me pergunto que tipo de histórias alguém como Callas contaria a si mesma. Como dar significado ao fato de não poder fazer justamente aquilo que deu sustentação (para o bem e para o mal) à sua vida por tanto tempo, praticamente toda a sua existência? O que via na cidade alguém que passou a maior parte de sua vida se entregando intensamente aos palcos? Como era o seu olhar sobre a vida cotidiana, sua autoconsciência do efeito de sua presença onde quer que fosse?
O filme é muito bonito, emocionante em diversos momentos e Angelina é incrível em transmitir a força e a fragilidade na mesma intensidade. Mesmo assim, parece que o filme tem medo de mergulhar de verdade, como quem se agarra a frases de efeito para não despejar toda a bagunça do que realmente se está sentindo. Ler Didion falar sobre o próprio estado mental enquanto vivia anos agitados no mundo e na sua vida pessoal me faz pensar na maneira como descrevemos a nós mesmas quando entendemos profundamente aquilo sentimos dentro de nós. Mesmo quando estamos tentando achar as partes para construir a história que iremos contar, sabemos o que sentimos, quem somos, porque fazemos o que fazemos. O filme carece um pouco dessa força. Representa Callas como alguém tão perdida que se misturou não apenas aos personagens que interpretou, mas que reproduz o que se pensava dela. Pode ser que tenha sido assim, pode ser que não, só ela saberia. Foi uma escolha entre tantas possíveis, como dizia Didion, uma interpretação do que foi visto por aqueles que construíram a história que vemos na tela.
O filme não vai fundo em tentar entender a imensidão existente dentro daquela pessoa minúscula frente ao mundo gigantesco que ela buscava segurar. Diferente de Didion, que deixou inúmeros textos que permitem compreender mais racionalmente as histórias que carregava, Callas deixou as suas performances e é na voz que ela expressava quem era, onde contava as narrativas da sua vida. Me pergunto se ao tentar imaginar o que ela não compartilhou não estaríamos sendo também como o jornalista inconveniente, nos metendo onde não fomos chamados. Ou então que estaríamos sendo como o jornalista-Mandrax do início, fazendo perguntas óbvias, sem ter coragem de navegar pelas respostas mais verdadeiras que talvez ela daria - aquelas que estão fundo na carne, nos ossos, no cerne da existência.

Maria é um filme muito bonito, apesar disso. Há inúmeras cenas de Callas andando pela cidade na tentativa de juntar as peças, de dar sentido, de estabelecer as próprias narrativas de si mesma. É uma pena que o filme ouse tão pouco, porém. Vale a pena ver por si mesmo e tirar as próprias conclusões.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Maria Callas (2024, dirigido por Pablo Larraín) estreia nos cinemas brasileiros amanhã, dia 16 de janeiro.
Links extras
- Esta foi a nossa primeira edição andante de 2025! Na semana passada, já tivemos um cafezinho e seguimos por aqui com nossos passeios cinematográficos quinzenais.
- Nesse artigo (em inglês) da Netflix, mais detalhes sobre os bastidores do filme, com destaque especial para os figurinos e o apartamento maravilhosamente decorado de Callas.
- Maria foi o primeiro dos filmes da minha lista de 2025 que eu assisti. Nessa edição para apoiadores, fiz uma listona de todos os filmes que eu estou aguardando para este ano, tanto os já bem comentados, quanto aqueles que ainda não tem muitas informações disponíveis. Na semana que vem, teremos aqui um texto de crítica de Anora, o segundo da lista.
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Tou bem curiosa com callas, sua voz cresceu comigo na casa da infância, tem cheiro de almoço de domingo preguiçoso sabe? Verei e volto aqui!