Andanças #116: Um lugar chamado Notting Hill
Quando um filme andante não é bem o que você lembrava
2025 começou intenso por aqui, com os dias corridos e a cabeça mergulhada na finalização da minha tese. Principalmente na semana passada, passei muitas horas nela escrevendo uma seção particularmente difícil. Essas horas e mais horas de trabalho concentrado em um assunto complexo cansam com uma profundidade densa, daquelas difíceis de comparar com outros tipos de cansaço. Nesses dias, é muito difícil pensar em assistir algo no final do dia que vai exigir ainda mais da minha mente. Por isso, tenho me apegado ultimamente às séries, ocupando meu tempo livre com as bobeiras de Rory, Lorelai e Mrs. Maisel.
Pensando nisso, percebi que a tarefa de escolher um filme para a edição desta semana seria um pouco mais complexa. Eu precisava algo leve, tranquilo, que envolvesse alguma história previsível e engraçada que proporcionasse um momento prazeroso tanto para assistir quanto para escrever a respeito. Abri a lista e fui buscando tipos de filmes que eu considerava relaxantes. Bati o olho em Um lugar chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999, dirigido por Roger Michell) e achei perfeito.
Até que eu comecei e fui ficando… brava.
Você provavelmente conhece a história do nosso passeio de hoje. William (Hugh Grant) é um livreiro que mora e tem uma livraria especializada no charmoso bairro de Notting Hill, em Londres. Anna (Julia Roberts) é uma estrela de Hollywood mega famosa que, um dia, acaba entrando em sua loja. Algumas horas depois os dois se esbarram na rua, se sujam com o suco derramado e William leva Anna até a sua casa para se trocar. Começa aí uma interação que leva a um romance entre os dois, do tipo cheio de altos e baixos e vais e vens, além de momentos engraçados quando a relação é apresentada aos grupo de William: seu colega de apartamento Spike (Rhys Ifans, também conhecido nos nossos tempos como Otto Hightower), sua irmã Honey (Emma Chambers) e seus amigos Bella (Gina McKee), Max (Tim McInnerny) e Bernie (Hugh Bonneville, que mais tarde seria o Robert Crawley de Downton Abbey).
O romance de Anna e William é cheio de andanças pela cidade, especialmente em Notting Hill, com algumas cenas também nos arredores do hotel Ritz, onde ela está hospedada e em Kensington, onde Bella e Max moram. Tem a descoberta de novos lugares que se tornam especiais para a história deles, tem os ônibus vermelhos, tem a corrida clássica para chegar até a amada no fim do filme e uma das cenas andantes de transição mais legais do cinema, quando William anda pela feira de rua na Portobello Road e as estações mudam no caminho, indicando a passagem do tempo.
O filme tem todo um charme inegável, principalmente nas andanças e nas locações, mas a história e o efeito dela em mim foram… tudo foi um pouquinho diferente do que eu me lembrava.
(a partir daqui, spoilers)
Um lugar chamado Notting Hill tem algumas incoerências, como muitas das comédias românticas dos anos 1990, 2000 e 2010. A principal delas é a relação fama x anonimato de Anna. Ela pode e não pode andar tranquilamente na rua dependendo do que convém no momento da história. Ela é mega popular e passa despercebida ao mesmo tempo, como se pudesse transitar sem problemas pelos dois mundos. Eram tempos sem internet, claro, mas a imprensa britânica também não é fácil lidar, como o próprio filme enfatiza mais tarde. Mas isso é só um daqueles detalhes que relevamos em prol da ficção.
Há, entretanto, outros incômodos muito mais profundos aqui, que dizem um pouco sobre a maneira como fomos educadas a ver a nós mesmas e aos homens pelos filmes que assistimos enquanto crescíamos.
Isso se manifesta principalmente em certas ações de Anna e William que não fazem o menor sentido - e elas vão além dos detalhes fáceis de deixar passar. A primeira e mais gritante delas é quando Anna dá um beijo na boca de William quando se despedem após ela ter se trocado, logo no primeiro dia que se conhecem. A observação dela sobre isso mais tarde só piorou o problema: não sei o que deu em mim. Eu entendo o romance mais tarde, mas ali, naquele momento, ele ainda era só um cara desconhecido, todo desengonçado, que tentou ajudar a resolver uma situação.
Outras coisas do tipo vão aparecendo e a gente percebe que, na verdade, Anna não tem nenhuma personalidade. O seu momento mais vivo é quando ela fica brava com William por estar buscando refúgio na casa dele e supõe que, de alguma forma, ele ou Spike vazaram a informação sobre o seu paradeiro e a imprensa está em peso do lado de fora. Daqui eu só pensava: como é que você deixa a mulher incrível com quem você está ir, ela mesma, só de camisa, olhar o que tem atrás da porta, sabendo que o que tem ali é extremamente prejudicial para ela? Red flags, muitas red flags.
A gente também não vê ela interagindo realmente com as pessoas, incluindo funcionários que parecem a acompanhar de perto há muito tempo. A única interação maior é com o seu namorado, interpretado por Alec Baldwin, que mesmo assim é irrelevante. Ela não tem história, um passado, e nem planos pessoais e desejos para o futuro. É como se Anna não existisse realmente como pessoa, para além de seus papéis, antes de ter encontrado William. É a presença dele que dá significado à existência dela dentro do filme - e isso é bem problemático.
Filmes como Notting Hill caem em alguns problemas que, talvez, sejam mais fáceis de identificar hoje do que eram na época em que eles foram lançados. São filmes dirigidos, escritos e produzidos por homens e feitos para agradar o público feminino. Filmes que trazem elementos de uma realidade romantizada que é extremamente atrativa (visualmente, inclusive), mas que cristaliza algumas ideias e papeis que grudaram na gente ao longo da vida. Eles acabaram criando o que achavam que a gente deveria querer ver. Notting Hill tem todos os elementos da comédia romântica de sucesso: um lugar bonito e peculiar, uma mulher deslumbrante e um galã não tão óbvio. Coloque ele para ser o dono de uma livraria, usar roupas intelectuais, um óculos, um cabelo desarrumado e um livro na mão. Acrescente a isso o divórcio e temos o perfeito estereótipo do homem hétero sensível e intelectual abandonado, único do seu tipo. É claro (!!) que uma super estrela de cinema, que pode ter tudo, se apaixonaria por ele em pouquíssimos dias. A romantização geral talvez não seria um problema se Anna fosse uma personagem mais marcante, mas isso não acontece. Mal dá para encaixar ela em algum estereótipo.
De certa forma, Notting Hill ensina para o seu público que o ideal de mulher é uma imagem e o ideal de homem é uma ideia. E nenhuma das duas coisas corresponde à realidade.
É a representação da mulher levada a uma perfeição imposta pelo olhar externo que a esvazia por dentro. O que o filme diz que Hollywood faz com Anna é justamente o que ele mesmo faz com sua própria personagem. É também a representação do homem que tem as suas arestas mascaradas por uma ideia do que se gostaria que ele fosse. Uma projeção.
Eu li comentários falando sobre Anna ser na verdade uma vilã na história, revirando William do avesso com as suas manias de diva. A verdade é que o roteiro não é nem um pouco gentil com ela - e gentil demais com William.
Não são todas as comédias românticas que caem nesses problemas, mas eu sempre tenho um pé atrás com filmes que foram escritos por homens visando o público feminino. Uma história sempre traz, inevitavelmente, o ponto de vista e as concepções de mundo daqueles que a criam. O roteirista de Notting Hill é Richard Curtis, que também escreveu filmes como Uma questão de tempo, Simplesmente amor, O diário de Bridget Jones, Quatro casamentos e um funeral e Os piratas do rock. Todos filmes icônicos do seu tempo, todos com muitos problemas na representação feminina, alguns mais sutis e outros gritantes. Em uma entrevista de 2023 ele admitiu que a sua representação das mulheres no passado foi “estúpida e errada”, especialmente com relação às piadas sobre a aparência e o peso. Com relação à Notting Hill, ele “expressou o seu arrependimento por fazer um filme em Notting Hill sem uma única personagem negra”. Acontece que Notting Hill é uma vizinhança com uma diversidade étnica muito grande, conhecida pela sua comunidade afro-caribenha, além de ser um local de importância histórica para o movimento dos diretos civis na Inglaterra. Só que essa Notting Hill está bem longe do filme.
Ele fala que essas piadas “não são mais engraçadas”, mas na verdade elas nunca foram. Depende de qual lado delas você está e nós crescemos ouvindo, sem saber, histórias criadas por quem jamais esteve do lado atingido por elas. A imagem do que a gente aprendeu a ser foi projetada por homens e a ideia do que a gente aprendeu a querer também é uma versão inflada deles mesmos - irreal e cheia de problemas mascarados como “charme”.
No fim das contas, o filme me levou a pensar muito mais do que esperava, mas isso é bom também. Nem sempre os filmes vão ser como a gente lembrava e é interessante olha-los novamente com esse olhar não só do tempo que passou, mas também nas mudanças do mundo nesse meio tempo. Notting Hill tem seus bons momentos também, principalmente nos minutos finais, mas é hoje um filme completamente outro para mim. É bom também esse processo de olhar novamente para as fantasias que absorvemos ao longo da vida, perceber porque elas ficaram e desconstruí-las. De certa forma, elas já tiveram o seu efeito, mas a gente não precisa mais levar ele adiante. É sempre um exercício e é claro que essa é só uma interpretação minha do filme.
Como sempre, a conversa continua nos comentários.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Um lugar chamado Notting Hill está disponível para assistir na Amazon Prime.
Links extras
- No processo de procurar o filme da semana, criei uma lista de filmes andantes relaxantes que encontrei entre aqueles que já estavam na nossa lista da newsletter.
- Notting Hill representa um bairro majoritariamente branco, muito diferente do que ele era na realidade da época. No entanto, o processo de gentrificação acelerada que vem ocorrendo na área desde então (muito por conta do próprio filme), tem mudado a vizinhança significativamente e a transformando justamente na imagem irreal pintada pelo filme. Esse artigo do The Guardian do ano passado (em inglês) fala um pouco mais sobre isso, vale a pena :)
- Esse outro artigo, da BBC (também em inglês), também fala sobre como a Portobello Road, onde acontece a famosa feira, talvez seja uma das ruas mais gentrificadas de Londres. O artigo vai ainda mais longe na história e fala sobre como área era considerada degrada no início do século XX e uma vizinhança de pessoas pobres - algo que mudou completamente no presente.
- Um guia por todas as locações de Notting Hill (em inglês).
- Se você está em Curitiba: nesta sexta, dia 14, acontecerá o lançamento do livro Memórias de Água da querida Rafaela Tavares Kawasaki. Será no Museu Paranaense, a partir das 17h30, com roda de conversa e distribuição gratuita dos livros. Mais infos aqui. Vem que vai ser incrível :)
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Outros passeios
Nós já destrinchamos a representação feminina nas comédias românticas em:
E já falamos de outra história andante londrina em uma vizinhança diferente, que mergulha na diversidade cultural e étnica do lugar, entrelaçando suas ruas com a comédia romântica de seus personagens:
Nossa, eu amava Notting Hill e nunca tinha me atentado às tantas nuances. Fiquei louca pra ver de novo, com olhos mais apurados e uma cabeça mais madura.
Tenho assistido muitos filmes dos anos 2000. Na verdade, tenho buscado filmes sem smartphones, mas por algum motivo encontrado bastante conforto nas películas feitas entre 1990 e 2010. São produtos da sua época, como tudo. Acho bem natural e saudável que a lente de hoje cause esse estranhamento. Quanto a Notting Hill, estive na livraria há pouco mais de um ano e isso, sim, foi uma decepção 😅