Olhares, luzes, conexões inesperadas entre pessoas que nunca se viram e talvez nunca mais vão se ver. As (im)probabilidades, a coincidência. Os encontros repentinos e aqueles que chegam tão perto de acontecer, mas não acontecem. Quantas histórias passam por nós todos os dias?
Nossos sentimentos estão sempre ali, aparecendo nas micro-ações que tomamos sozinhos enquanto andamos com ou sem rumo. Carregamos conosco alguma parcela de solidão que vem desse andar no meio da multidão desconhecida de nossas cidades modernas. Pode ser por isso que às vezes é tão fácil colocar para fora aquilo que mais nos atormenta para pessoas que nunca vimos, e que talvez nunca mais veremos, no balcão solitário de um bar no meio da noite.
Há uma poesia nesse lugar - às vezes tão estranho - que chamamos de cidade. E se tem alguém que consegue colocar em imagens e sons aquilo que é difícil colocar em palavras, esse alguém é Wong Kar-wai.
“Nós cruzamos com muitas pessoas todos os dias. Podemos não saber tudo sobre elas. Mas um dia podem se tornar nossos amigos ou até mesmo confidentes.”
Nosso passeio de hoje começa com essa frase em uma noite da Hong Kong dos anos 90, cheia de letreiros de neon e luzes fluorescentes iluminando labirintos de galerias de lojas e corredores de metrô. Em Chungking Express ou Amores expressos (重慶森林, 1994, dirigido por Wong Kar-wai), acompanhamos dois policiais que foram deixados por suas namoradas recentemente enquanto tentam lidar com as emoções do término. Cada um deles acaba conhecendo outras duas mulheres peculiares e misteriosas, que seguem em outras andanças pelas mesmas ruas.
“Isso foi o mais próximo que chegamos um do outro. Só 0,01 centímetro nos separava. Mas 57 horas depois, eu me apaixonei por ela.”
O policial nº 223 (Takeshi Kaneshiro) sempre vai à lanchonete Midnight Express. Ele lida com o término tentando não ficar sozinho, enquanto compra latas de abacaxi como uma forma de medir o tempo - um prazo que colocou para arrancar os sentimentos de si mesmo. Na noite em que esse prazo chega, ele conhece uma mulher disfarçada (Brigitte Lin), responsável por um esquema de tráfico de drogas - mas ele não sabe disso. Ambos vagaram pelos mesmos corredores da cidade por motivos opostos e se encontram em seu cansaço - físico, emocional - no balcão de um bar na madrugada.
O policial nº 663 (Tony Leung Chiu-wai) também sempre vai na Midnight Express para um cafézinho no intervalo da sua ronda noturna e para levar um lanche para a namorada, uma aeromoça que acaba o deixando por outro homem. Nas conversas pelo balcão, ele conhece Faye (Faye Wong), uma funcionária nova que ouve California Dreaming obsessivamente o mais alto que pode e que logo se apaixona por ele. Um dia, sua ex-namorada deixa na lanchonete uma carta, o que remexe nas suas feridas, atiça a curiosidade de Faye e faz com que, aos poucos, as vidas desses dois estranhos se conectem cada vez mais.
Nem sempre andamos por aí serenos, tranquilos. Cada um de nós traz consigo uma bagagem de sentimentos que nem sempre compreendemos, mas que estão sempre ali. Às vezes eles estão transbordando de nós: são coisas que não saem da nossa cabeça, são urgentes, primordiais. O contador de passos do celular não consegue dar a dimensão daquilo que realmente nos move, lá no fundo.
Estamos sempre tentando achar formas de lidar com o que sentimos, o que pode ser uma tarefa solitária e que se manifesta na materialização de pequenas obsessões: a tarefa de comprar latas com a mesma data de validade, uma capa de chuva usada junto com um óculos de sol, uma música no repeat, uma conversa com objetos que, sem querer, representam tanto.
“Desde que ela se foi, tudo no apartamento ficou triste. Tenho que consolar tudo antes de ir dormir.”
De certa forma, essas pequenas obsessões são também uma maneira de dar forma aos sentimentos que não conseguimos nomear. Não sabemos muito bem o que é, mas sabemos que é por ali - que algo naquela obsessão vai nos trazer alguma resposta ou um acalento.
Por quais obsessões seguimos na tentativa de encontrar esse nome?
Talvez as latas vencidas possam nomear a perda da ilusão de um amor ideal. A capa e os óculos, a sensação de vulnerabilidade. O cuidado e a conversa com os objetos, a vontade de se conectar. Mas o que todos os nossos personagens tem em comum é a solidão de carregar sozinho seus sentimentos no meio de tanta gente.
É por isso que o filme é tão poético e também sensível: todos nós já estivemos aí antes. Buscamos todos, de alguma maneira, nos conectar uns com os outros e fazer algo com relação aos vazios que carregamos, com os sentimentos que transbordam, com os nomes que não sabemos dar. Fazemos como podemos, como sabemos - seja no balcão de um bar, em uma pausa para o café,
ou em uma newsletter.
“- Para onde quer ir?
- Para onde você quiser me levar.”
Até o próximo passeio :)
Os filmes de Wong Kar-wai são poesia pura, com personagens e histórias complexas que se desenrolam pelas cidades asiáticas. Ainda veremos muito dele por aqui.
Você pode assistir Chungking Express e outros filmes do diretor na Mubi.
E se você mora em São Paulo, no próximo dia 21 vai rolar essa maratona de filmes do Wong Kar-wai (incluindo Chungking Express) madrugada adentro na Usp.
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