Desde 2020 meu trabalho vinha sendo feito majoritariamente em casa, um cenário que mudou por completo recentemente. Foram anos peculiares do mundo e da minha vida, de certa forma. Dois anos de restrições de circulação por conta da pandemia se misturaram a um trabalho de pesquisa acadêmico que é sempre muito solitário, especialmente conforme se encaminha para o seu desfecho. Foram horas e mais horas trabalhando sozinha, eu e o meu computador, sempre dentro de um mesmo cômodo no meu apartamento. No meio de vivenciar um momento histórico no mundo, os abalos emocionais de escrever um trabalho de longo prazo e todas as outras questões mentais e materiais dos nossos tempos, eu fui me fechando cada vez mais dentro da zona de segurança da minha casa e também dentro da minha cabeça. Criei lá um lugar supostamente seguro para mim e permaneci, mesmo quando meus pés me levavam para fora com mais frequência.
Por muito desse tempo nesse período, a cidade foi lugar meio assustador. Foi notável quando eu consegui ultrapassar alguns medos ao longo desses anos ou quando eu me deparava com algumas das paredes dessa falsa zona de segurança interna. Falo de pandemia e home office, mas talvez isso vale para qualquer período um pouco mais longo em que passamos nos sentindo relativamente vulneráveis e encontramos refúgio no lado de dentro e nas histórias que contamos a nós mesmos para poder continuar. Levou um tempo e um processo ainda em andamento para eu entender que quem eu era - quem eu nunca deixei de ser - também estava aqui dentro, por baixo de todas as camadas de proteção que eu mesma criei e deixei que se criassem ao meu redor.
No meio desse processo, sair de nossos casulos físicos pode ser um grande passo para conseguir quebrar, aos poucos, as paredes desse casulo interno que criamos para nós. Talvez isso seja independente das questões externas ou mesmo temporais que marcam o momento presente desse texto, como algo um pouco mais universal com o qual nos deparamos eventualmente em algum momento da vida. Deve ser por isso que, assistindo uma mulher caminhando pelas ruas de outro continente há setenta anos atrás, eu me vi muito mais do que eu esperava.

Nosso passeio de hoje é por Paris no início da década de 1960. Aqui acompanhamos Cléo (Corinne Marchand), uma mulher que, no momento em que a conhecemos, está fazendo uma consulta de tarô. Há a suspeita de uma doença e as cartas indicam isso, para o desespero de nossa protagonista, que está em negação com um possível diagnóstico que aguarda sair ainda naquele dia. São 5 horas da tarde quando Cléo deixa a casa da cartomante, completamente enraivecida. Ao longo do filme, caminharemos com ela pelas próximas 2 horas, até o relógio bater 7 da noite.
Nesse meio tempo, ela vai para lá e para cá. Cléo é uma cantora famosa e chama a atenção na rua, com sua aparência a fazendo se destacar por onde passa. No início, ela é acompanhada por Angèle (Dominique Davray), uma espécie de governanta, empresária e protetora. Em casa, vê o namorado e seus compositores. Depois, segue ao encontro de uma amiga de longa data, Dorothée (Dorothée Blanck). Mais tarde, sozinha, ela conhece Antoine (Antoine Bourseiller), um militar que está de passagem pela cidade antes de voltar para a Argélia.

Daria para falar uma imensidão de coisas sobre Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7, 1962, dirigido por Agnès Varda). Tenho certeza que várias pesquisas já o estudaram em profundidade, que estudiosas já o localizaram no cinema de Varda e na importância histórica que ele tem como um dos primeiros filmes da nouvelle vague francesa (um Godard e Anna Karina jovens, inclusive, aparecem brevemente em um filme dentro do filme). Mas a experiência cinematográfica (e artística como um todo) também vai sempre além do que a gente pode analisar teoricamente e do que os próprios cineastas conceberam de início como um significado ou possível interpretação para o que criaram. Eu vi Cléo pela primeira vez anos atrás e ele não me chamou muito a atenção - era um outro momento. Dessa vez, ele abriu novas camadas de compreensão que tocam muito diretamente nessa minha experiência recente de estar no mundo hoje, mais de sessenta anos depois que o filme foi feito.
Para mim, há três coisas acontecendo aqui ao mesmo tempo e diretamente conectadas umas às outras. Primeiro, a doença e o tamanho do lugar que ela ocupa na mente de Cléo. Segundo, as camadas de proteção das quais ela se cercou (e que, eventualmente, também foram impostas a ela) e que vai rompendo nessas duas horas. Terceiro, a forma a distância física ocupa um lugar muito representativo e metafórico do que está acontecendo do lado de dentro.

Quanto mais Cléo quebra suas proteções externas e internas, mais longe ela avança. Literalmente mesmo: mais ela se embrenha na cidade por lugares onde nunca foi e se deixa viver experiências impensadas inicialmente. Ao mesmo tempo, quanto mais longe vai e mais se solta, mais forte ela se torna e menor parece ser o seu medo.
A mudança é visível de muitas formas. Cléo começa parecendo uma criança indefesa, que precisa ser carregada de um lugar para o outro e tratada com palavras gentis e filhotes de gatinhos (ah, Varda <3). Meio chata, até. Os “adultos” não falam diretamente com ela, a enchem de caprichos e mimos e decidem as coisas por ela. Uma boneca a ser carregada, que vê e escuta a vida agitada acontecendo em torno de si, mas nunca se envolve com ela. Cléo era extremamente protegida de muitas formas e, em seu casulo de proteção, ela só via a si mesma e a sua perfeição. Nesse cenário, uma doença, independente de qual for, é impensável, insuportável, incorreta. Uma fissura permanente na vida perfeitamente bela que ela tem dentro da redoma de vidro.
“Enquanto eu for bonita, estou mais viva que os outros.”

Mas a fissura já está ali e Cléo, no limite, também sente seus incômodos com mais força. Se cansa e vai se libertando aos poucos conforme anda lá fora. Sai de casa sozinha com outras roupas e outros acessórios. Muda a expressão, de cara já não parece mais a mesma pessoa. Com a amiga ela vai também retomando outros aspectos de si. Elas eram amigas desde antes da fama e, enquanto Cléo passou a ter tudo que queria, Dorothée seguiu com a sua vida normal, o que traz a ela uma independência, ousadia e coragem de viver como quer que Cléo não tem. Mas já aí é possível ver Cléo agindo de forma diferente. Quando encontra Antoine e conversa com ele pelo parque, ela vai mostrando ainda outras facetas. É uma mulher agora, a mulher que sempre foi por trás dos babados, perucas e olhadelas em todos os espelhos. Cléo ainda tem medo de seu diagnóstico, mas ele já não parece mais o fim do mundo quando ela vai lá fora e encara o mundo de fato. Sua angústia é colocada em perspectiva, diminui - ela, por outro lado, se torna imensa.

Cléo passa por uma transformação gigantesca em apenas 2 horas. Descobrimos até que esse nem é o seu nome de verdade, o que evidencia ainda mais a ideia de que um personagem foi criado e, em algum momento, nossa protagonista se perdeu dentro dos limites dele. Eventualmente a gente percebe que não se trata tanto sobre saber se Cléo terá um diagnóstico positivo ou negativo, mas a maneira como ela muda a perspectiva sobre isso e sobre si mesma nessas 2 horas. Ela percebe que tem força, que tem coragem, que tem capacidade de se bancar sozinha no mundo, assim como já teve um dia para chegar onde está hoje.
Chega um momento que é muito difícil ter essa perspectiva mais ampla de nós mesmas se não nos permitirmos sair dessa zona de conforto e nem deixamos que nada entre. Quando nada nunca nos atinge, quando não permitimos o desconforto de nenhuma maneira, quando evitamos tudo que abala a nossa concepção cristalizada de mundo. É muito fácil cair em um lugar de intolerância ou de extrema sensibilidade. Ou ainda de um forte egocentrismo, como Cléo no início do filme. Estamos um cômodo de espelhos, cheios de pontos cegos, vendo apenas a nós mesmos inúmeras vezes.
Depois de um tempo, Cléo vai parando de ver apenas a sua imagem refletida e passa a olhar o que existe do outro lado dos vidros, lá fora. E, olhando o mundo, ela vai até ele.
Estar lá fora meio que obriga a gente a ver além de nós. Vemos coisas meio malucas, como o homem que engole sapos nas ruas de Paris nos anos 60. Ouvimos pessoas e suas histórias, com caminhos que jamais imaginaríamos, como a taxista do início do filme. Ouvimos, mesmo sem querer, as conversas das mesas ao lado e os dramas que também afligem aqueles ao nosso redor - não somos os únicos sofrendo. Nos vemos em situações diferentes e descobrimos lugares escondidos, como o caminho de Cléo pelo ateliê e o filme que assiste do lado de dentro da sala de projeção. Encontramos também, eventualmente, pessoas que nos instigam, nos desafiam, nos perguntam os porquês. Pessoas que nos fazem pensar e que nos acompanham, mesmo que muito brevemente, até uma outra direção.
Mas para isso, antes de qualquer outra coisa, a gente precisa estar lá fora. E estar lá de cabeça aberta e verdadeiramente dispostos a deixar que essa cidade lá - com todas as suas pessoas, todos os seus calores e suas friezas, toda a sua realidade, toda a sua improbabilidade, toda a sua resistência e sua beleza e seus imensos causos que acontecem o tempo todo - nos transforme. Porque, no fim das contas, não existe redoma de vidro perfeita em lugar nenhum (e tentar criá-las externamente não vai extinguir os problemas que existem dentro de nós).
As coisas podem até parecer boas do lado de dentro, mas elas também podem ser incríveis do lado de fora. Fora da mente, fora do casulo, fora dessa pequena tela em que você me lê nesse momento.

Enquanto escrevo, minha gata senta na janela em frente à mesa e olha atentamente o movimento da rua no início da noite, enquanto as pessoas ainda estão saindo do trabalho e outras estão chegando nos bares. É dia de show grande na vizinhança hoje, com aquela muvuca sempre muito interesse de se acompanhar.
Tem muita coisa boa além das nossas fortalezas.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Cléo das 5 às 7 está disponível para assistir na Reserva Imovision, dentro da Prime Video.
Links extras
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Outros passeios
Já falamos de outro filme andante da Varda por aqui antes:
E uma outra edição sobre distâncias, voltas, retornos e o processo de se encontrar de novo:
A Varda é muito maravilhosa né? Tava c saudade de te ler ♥️
Eu estava precisando desse texto. Obrigada, Lu ✨