Neste último domingo, enviei o texto final da minha tese. Era a minha maior entrega até agora, aquela em que eu decido colocar o ponto final e passar o trabalho adiante. É talvez uma das coisas mais difíceis de se fazer em qualquer projeto dessa dimensão: saber quando parar.
Em alguma medida, a gente também cria um apego com aquilo que ocupou a maior parte dos nossos dias e da nossa energia vital por anos das nossas vidas e é muito difícil estabelecer um fim. Há sempre algo a mais para colocar ou que poderia ter ficado melhor, sempre uma coisinha mínima que poderia ter sido diferente… Para além dos prazos obrigatórios, quem dita o fim, muitas vezes, é o cansaço.
Nesses dias de trabalho intenso das últimas semanas, lembrei de uma cena de Whiplash (2014, dirigido por Damien Chazelle) em que o protagonista segue tocando bateria cada vez mais forte e cada vez mais rápido enquanto seus dedos sangram, espalhando manchas vermelhas e suor pelas baquetas e tambores. Em casa, ele enfia a mão em uma jarra de água gelada, em uma espécie de tratamento de choque, para continuar tocando com as mão enfaixadas. É uma evidência física do extremo, da ultrapassagem de um limite, da mente inquieta levando o corpo a uma destruição e não dando tempo nem espaço para que ele se recupere. Está ali no sangue, nos calos, na dor muscular.

Ultrapassar os limites mentais não tem, normalmente, as mesmas evidências óbvias. Não há nenhum sangue espalhado, nenhum suor. Nenhum choque que escancara o absurdo da nossa falta de cuidado entre uma sessão de exercício mental extremo e outro.
Acho que todo projeto grande e individual nasce, se desenvolve, se fortalece e se conclui a partir de alguma espécie de obsessão. A gente tem que ser muito obsessivo para passar tanto tempo em função de buscar alguma coisa, de desvendar alguma coisa. Chegar em uma resposta, alcançar as minúcias de um mesmo tema, mergulhar de cabeça em todas as ramificações desse universo recortado que nunca para de aumentar.
Mesmo quando o ambiente e as relações de trabalho são tranquilas e saudáveis, um projeto grande é sempre um elefante que carregamos nas costas para onde quer que vamos. Está ali do lado da cama quando você acorda um pouco mais tarde do que gostaria. Está na pausa depois do almoço, no café no meio da tarde, no final de semana de descanso. Está no bar, na cadeira ao lado. Está em cada um dos outros projetos acontecendo em paralelo, meio longe mas sempre à vista, como quem diz “olha, eu estou aqui hein?”. A obsessão não se trata só do amor profundo por aquilo, mas também de todas essas nuances de uma relação complexa da qual a gente quer e não quer se livrar ao mesmo tempo. É um fim que a gente anseia e atrasa.
A sensação pós-entrega é estranha também. Eu já entreguei muitas coisas longas nesses anos todos, mas nunca uma que levou quatro anos e alguns meses para ser completada. Coexistem a sensação de que eu alcancei um lugar de conhecimento no qual eu nunca estive antes e uma sensação de esvaziamento. Como se eu tivesse colocado tudo ali naquelas 230 páginas e não tivesse sobrado mais nada. Ao mesmo tempo, eu acho que nunca tive uma compreensão tão grande daquilo que eu sempre quis fazer desde o começo. Aquela sensação de finalmente ter entendido tudo aquilo que foi lido, relido, revisto, sublinhado, esses anos todos. O olhar, quase afastado, de quem vê o que fez e se nutre de volta.
É também uma sensação de saber que nada nunca mais vai ser como antes. Não porque um pedaço de papel ou qualquer outro marco vai dizer que algo foi completado, mas porque finalmente chegou o momento de parar de correr e, ao retomar o fôlego, ver o tamanho do caminho que foi percorrido - e saber que ele só poderá seguir em frente. Foi um caminho árduo, é verdade, cheio de altos e baixos. Uma caminhada que deixou marcas no corpo. Os ombros encurvados para frente, a coluna que resolveu pender para a esquerda, os tiques nervosos cutucando a pele, os cabelos brancos que explodiram. Foi também onde a garganta finalmente entendeu como expressar a voz, onde as pontas dos dedos aprenderam a acompanhar o ritmo veloz de um pensamento, onde cada pequena marca de expressão é também a materialização de formas de raciocínio que não existiam antes.
A gente nunca sai de um projeto grande ileso.
Eu sinto que preciso reaprender a andar. Literalmente mesmo. Descobrir qual a velocidade dos meus passos sem o elefante nas costas e o relógio no meu encalço. Redescobrir como andar com as pernas e os pés e não com a cabeça - essa cabeça que vinha carregando um corpo inteiro por aí. Ainda não deu tempo de experimentar totalmente esse caminhar mais leve e mais lento, porque o corpo exigiu presença de volta na primeira oportunidade e gritou um resfriado já na segunda-feira.
Mas se o mundo era visto a partir da lente da obsessão e da eterna companhia da imensidão desse projeto, eu sinto que também preciso descobrir como ver o mundo a partir desse olhar novo. O que eu vejo agora que não via antes? O que eu sinto agora que não sentia antes? Sobre o que eu quero falar? No que eu quero focar? O que eu acho que vale a pena expressar?
Em parte, nossos passeios andavam sumidos porque, nessa transição, eu também não sabia mais o que dizer. O que faz sentido agora?
São perguntas cujas respostas não vem quando as mãos estão sangrando e nem depois que elas foram mergulhadas no balde de gelo. E, sinceramente, nem depois que o e-mail foi enviado e o resfriado curado. É agora, com o tempo, que as coisas vão encontrando não um retorno aos lugares anteriores, mas os novos lugares que elas ocuparão daqui para frente. Porque essa mudança é completamente inevitável.
Nossas andanças seguirão com toda e absolta certeza, mas eu não sei ainda por quais caminhos e nem de que maneiras. Talvez passeios não sejam mais a melhor forma de nos encontrarmos, ou talvez sim. Talvez exista agora espaço para muitas outras coisas que não existiam antes, talvez tenha muito mais em frente e que eu não tenho possibilidade de vislumbrar agora. Eu não sei.
E se tem uma coisa que aprendemos com projetos grandes, é a conviver com a enormidade do que a gente não sabe e deixar se surpreender pelo caminho.
Até aqui, um imenso obrigada a todos que seguiram firmemente mesmo com todas essas oscilações no nosso cronograma. Um imenso obrigada também a quem chegou por aqui nesses meses, mesmo com poucas novidades acontecendo. Talvez a melhor forma de achar o caminho seja juntos - e a presença de todos vocês sempre foi e é, agora mais do que nunca, fundamental <3
Há novidades em frente. Teve uma nova leva de zines de Vidas Passadas e Fleabag que logo logo estarão à venda, tem novas zines chegando por aí, o Olhar de Cinema já é no mês que vem e há várias edições meio escritas que precisam de uma atenção novamente.
Eu mal posso esperar para ver aonde esses novos passos mais leves vão nos levar.
Até a próxima edição :)
que texto lindo!!! quis grifar inúmeras partes e gravar pra sempre! grata por isso! e parabéns!!!!
ahh que texto mais lindo
acho muito bacana poder conhecer essa perspectiva do outro lado dos quatro anos de pesquisa, esse momento de olhar pra trajetória <3
esse trecho aqui me deixou super intrigada: "Coexistem a sensação de que eu alcancei um lugar de conhecimento no qual eu nunca estive antes e uma sensação de esvaziamento."