Andanças #131: Copenhagen
O estereótipo do homem andante perdido, a Maniac Pixie Dream Girl e os filmes andantes que eu odeio
A gente romantiza muita coisa enquanto está crescendo. Faz parte do processo de se encontrar no mundo, eu acho. Essa romantização acaba estando muito atrelada com as mídias que a gente consome: aquilo que parece mais se aproximar do que gostamos, do que queremos ser e do universo ideal onde esperamos habitar um dia.
Só que, nesse processo, a gente ainda não tem, muitas vezes, uma compreensão mais ampla das coisas. Um filme, por exemplo, é sempre muito mais do que as imagens e o texto que vemos na tela. Ele nunca é neutro, nunca está isento de uma visão de mundo. Um filme, assim como tudo, é um produto de escolhas e decisões que definem o que deve estar presente (e como) e o que não.
É o que me traz hoje a uma categoria de filmes andantes bem específica, da qual a gente ainda não falou por aqui: aqueles que eu odeio.

“Quando a garota dos seus sonhos tem a metade da sua idade, é hora de crescer.
Depois de semanas de viagem pela Europa, o imaturo William se encontra em Copenhagen, o lugar de nascimento de seu pai. Ele se torna amigo da jovial Effy, que trabalha no hotel de William como parte de um programa de intercâmbio, e eles se organizam para procurar o último parente vivo de Willam. A mistura de exuberância jovial e sabedoria de Effy desafia William como nenhuma outra mulher jamais fez. Conforme a atração cresce, ele deve aprender a lidar com elementos desestabilizadores do passado sórdido de sua família.”
O trecho acima é uma tradução livre, feita por mim, da sinopse de Copenhagen (2014, dirigido por Mark Raso) no Letterboxd. Eu não acrescentaria mais muita coisa, além de que, nessa procura, eles passam dias caminhando pela cidade que dá título ao filme, capital da Dinamarca, fazendo desta uma história totalmente andante.
Para mim, Copenhagen não é só mais um filme ruim. Tem algo mais problemático e também mais complexo aqui, algo que mexe com muitas coisas que a gente aprende a romantizar enquanto ainda está descobrindo o mundo.
Primeiro, acho ele ruim como um filme do gênero andante. É a fórmula clássica (aquela de Antes do amanhecer), sendo replicada de uma forma genérica e sem graça. Não acrescenta nada de novo, de interessante ou de relevante. Segundo, o filme também se apoia fortemente em dois estereótipos bem caricatos que volta e meia aparecem nos filmes tipicamente andantes: o do homem perdido por aí sem rumo e o da maniac pixie dream girl.

Vamos por partes. O primeiro estereótipo que o filme traz é o do homem perdido na vida que perambula pela cidade. O estereótipo de modo geral traz (e este filme reforça) uma romantização desse homem que se entrega à vida boêmia noturna, que vai de um lugar a outro tentando se encontrar, que se permite, com todo o seu privilégio de ir e vir, todos os vícios e prazeres que os lugares mais desconhecidos e insalubres podem oferecer. Ele normalmente anda por aí com a barba por fazer, o cabelo meio desgrenhado, com a blusa gasta de uma banda de rock alternativa e um maço de cigarros. Tem um temperamento oscilante, uma vida bagunçada. Ele tem pinta de profundo, sentimental demais para o próprio bem, machucado pela vida. Mas não se engane: o estereótipo do homem andante perdido é o de alguém bem tratado. Ele que transita fácil por todos os lugares, se encaixa em um padrão e, por alguma razão, pode se dar ao luxo de manter esse estilo de vida - normalmente porque existe alguém em algum lugar segurando as suas pontas.
Assisti Um completo desconhecido esses dias e vi o estereótipo bem ali. Na estante do apartamento de um ainda desconhecido Bob Dylan, onde a sua namorada mantém tudo acontecendo, está On the Road, de Jack Kerouac, como não podia deixar de ser. Se a gente revisitar a história (e o filme, que ainda vai aparecer por aqui), vai ver o estereótipo também em Dean e em Sal, mas principalmente Sal.
William (Gethin Anthony) é todinho esse estereótipo. Uma visão exagerada, romantizada e sem sal dele.
Outro estereótipo que aparece é aquele que costumamos chamar de Maniac Pixie Dream Girl (que eu vou chamar de Dream Girl para facilitar), que em Copenhagen se mistura um pouco com outro estereótipo clássico: o da Cool Girl.
A cool girl é aquela mulher que “não é como as outras”: é atraente, se interessa por vários assuntos tipicamente masculinos como esportes e jogos, é uma parceira de bar e, normalmente, a única mulher no meio dos homens, tratada “como se fosse um deles”.
A dream girl é aquela mulher mais infantilizada, inocente, meio doidinha, que está sempre pronta para deixar a própria vida de lado para ajudar um marmanjo que a vê com um olhar que mistura um pouco de pena, curiosidade e encantamento. Ela é doce, acessível, excêntrica e a única que consegue realmente compreender o protagonista “complicado” do qual ela é apenas um anexo.
Tanto a cool girl quanto a dream girl servem unicamente para dar suporte à história masculina. A dream girl não tem nenhum agência que não seja relacionada ao protagonista e a cool girl se posiciona um pouco mais, mas também é como se ela não existisse realmente fora daquele contexto que a valoriza e valida.
Effy (Frederikke Dahl Hansen) é um pouco dessas duas coisas. Ou melhor, ela é construída para caber um pouco nessas duas coisas.
Só que Copenhagen não para por ai.
A próxima camada de problema é a aposta do filme na romantização de um relacionamento completamente disfuncional entre esses dois estereótipos.
É um terceiro estereótipo também: a relação entre um homem mais velho imaturo e a mulher mais jovem “madura para a idade”. Esse aí já é bem antigo, atravessa vários gêneros de filmes, e eu não vou entrar em mais detalhes. O negócio é que Copenhagen vai além dos problemas que envolvem cada um desses três estereótipos individualmente e em conjunto - o cara red flag romantizado, a garota cujo propósito é servir à história do protagonista e o relacionamento com diferença de idade entre os dois. Lá pelas tantas, Effy revela à William (e a nós) que o programa de intercâmbio que envolve o seu trabalho não é na faculdade.
Nem no ensino médio.
Effy conta que tem, na verdade, 14 anos e o intercâmbio faz parte de um trabalho da escola, ensino fundamental mesmo.
Leia agora a sinopse do Letterboxd de novo. A mistura de exuberância jovial e sabedoria de Effy desafia William como nenhuma outra mulher jamais fez.
Existe um dilema moral a partir da revelação, é claro, mas não sem antes o filme aproveitar e deixar a situação no ar, com uma cena em que uma relação física quase rola - mas a “consciência” de William o faz recuar. Além de escolher essa configuração de idade, o filme também escolhe mostrar esse “quase” pra gente.

O que mais me faz odiar Copenhagen não são só todos esses estereótipos e imensos problemas, mas o fato de que, quando eu o vi pela primeira vez, em 2015, eu gostei dele. Eu tinha 22 anos, estava fora de casa pela primeira vez em uma cidade agitadíssima e carregada de idealizações que eu havia acumulado nos anos anteriores. Eu já gostava muito dos filmes em que as pessoas andavam por aí, a cidade me deslumbrava e o auge da romantização era a única história andante que parecia ser possível: a do garoto encontra garota em uma cidade famosa. O olhar sobre a andança que me tinha chegado com mais força até aquele momento era o masculino.
O cara andante perdido, aventureiro e intenso, ainda era um mistério a ser desvendado e ser a cool girl meio dream girl parecia a forma que cabia nessas histórias que me atraíam. Eu gostava de On the Road também. Eu nunca havia pensado que, naquela visão de mundo, à mim só caberia no máximo o papel da personagem de Kirsten Stewart no filme, uma cool girl. Eu não percebia ainda que era meio isso que eu tentava ser também. Porque eu achava que só assim eu conseguiria vivenciar o que eu queria.
Para acessar esse lugar mais amplo lá fora que eu romantizava, eu criei para mim mesma uma personalidade que passava pelo olhar masculino, porque o que eu consumia também vinha desse mesmo olhar.
De certa forma, esses estereótipos estavam presentes em muitos tipos de filmes que envolviam a cidade e gostar deles também envolvia absorver essas visões de um mundo onde eu jamais teria a possibilidade de ser igual. Eu ainda não tinha experiência para enxergar e nem conhecimento para entender. Até a premissa da diferença de idade passava sem grandes problemas. Quando a revelação da idade real de Effy aparece, é um choque, mas também não era algo tão grotesco assim do que eu já havia visto na realidade. Passa batido. É normalizado, tido como real. E ai realidade e ficção se retroalimentam e talvez, em algum lugar, aquilo também seja tomado como ideal por alguém.

Eu assisti o filme de novo meses depois, na época, e só então percebi que ele era ruim. Mas foi só anos depois que eu entendi como. Que eu entendi de que maneira aquilo também estava embrenhado no meu universo daquele momento. E quando eu olho para tudo isso hoje, eu penso que, diferente desse culto à juventude feminina tão prezado no imaginário masculino tradicional, é muito bom envelhecer. Muito bom ganhar experiência, conseguir ver a partir de outras lentes e identificar, pelo menos na ficção, aquilo que me envolvia e me direcionava no passado - e me livrar disso.
Um dos dilemas que eu tive no começo da newsletter era se eu falaria também sobre esse tipo de filme andante. No começo eu achava que não, mas ai eu lembrava do tanto que demorou para eu compreender e das escolhas ruins que aconteceram nesse caminho. Lembrava das pessoas que via no mundo real tomando os estereótipos de um lado ou do outro. No processo de pesquisa para essa edição, eu vi também muitos comentários amando profundamente o filme, textos falando muito bem dele, e elogios à maneira como a diferença de idade é mostrada. Não dá para não falar.
Com o tempo a gente entende que a melhor configuração de cidade e de andança vai ser aquela que você encontra a partir de quem é de verdade e não de uma romantização do que nos fizeram pensar que deveria ser, tanto para um estereótipo quanto para o outro.
E sim, um dia você vai encontrar muitos filmes andantes excelentes que falam muito melhor com você, pode acreditar.
Até a próxima edição :)
Eu não assisti o filme de novo para escrever essa edição (duas vezes já foi mais do que suficiente) e não acho que vale a pena vê-lo também. Mas se você quiser dar uma olhada, ele está disponível no Prime.
Links extras
- Outro filme andante péssimo que usa da mesma fórmula (mas com idades mais altas e um foco maior na dream girl) é Liberal Arts, com Elizabeth Olsen.
- Esses dois vídeos (em inglês) falam de uma forma muito boa e didática sobre a Cool Girl e a Maniac Pixie Dream Girl.
- Algumas semanas atrás saiu uma entrevista minha sobre a Andanças no site e no instagram da Mulheres e a Cidade da Agência Púrpura. Ficou lindo, vem ver <3
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Outros passeios
Já falamos de outros estereótipos por aqui antes, como o da mulher malabarista:
e o do homem hétero sensível e intelectual abandonado: