Neste último final de semana aconteceu O Texto & o Tempo, um evento para falar sobre newsletters, internet, leitura e escrita, organizado por um pessoal incrível que escreve pelas avenidas dessa internet. Vai levar um bom tempo ainda para eu conseguir processar tanta discussão bacana que aconteceu nesses dois dias. Por ora, a edição de hoje está completamente influenciada por elas e a da semana que vem também :)
“Na manhã seguinte, depois que os pais saíram, Matilda saiu à procura de um livro.”
Se você foi, assim como eu, uma criança leitora dos anos 90, é bem provável que esse tenha sido um dos filmes da sua infância. Matilda (Matilda, 1996, dirigido por Danny DeVito) foi um dos grandes clássicos da Sessão da Tarde e conta a história de uma menininha apaixonada pelos livros e pelos estudos.
Matilda (Mara Wilson), já percebeu desde pequena que era muito diferente de sua família, que não se importa muito com as mesmas coisas que ela - e nem com ela. Ela aprende que precisa cuidar de si mesma e ir atrás do quer por conta própria, e é assim que descobre a biblioteca pública da cidade. É quando ela começa a ir para a escola, com 6 anos, que a aventura do filme se desenrola: Matilda precisa enfrentar a diretora horrível, Agatha Trunchbull (Pam Ferris, que também fez outra personagem peculiar nos cinemas: a tia Guida de Harry Potter!), mas descobre lá um novo mundo de amizades e cuidado com outras crianças e com a sua professora, a senhorita Honey (Embeth Davidtz) - além de aprender que tem alguns poderes especiais, como vocês devem se lembrar.
Mais do que um passeio pelos subúrbios dos Estados Unidos dos anos 90, onde o filme se passa, proponho hoje a você uma viagem pelo passado: por quais caminhos percorremos até sermos os leitores que somos hoje?
“Daí em diante, assim que sua mãe ia ao bingo, Matilda andava 10 quarteirões até a biblioteca e devorava um livro atrás do outro. Quando acabou de ler todos os livros infantis, andou pela biblioteca procurando outros.
Vemos Matilda crescer nesse vai e vem sozinha pelas ruas do bairro, entre emprestar e devolver livros. Diferente dela, sempre recebi muito incentivo à leitura em casa. Mas livros eram (e ainda são) uma coisa cara, infelizmente. Não era possível simplesmente ir na livraria do shopping e comprar o livro que parecesse mais interessante, muito menos fazer isso com frequência. Era preciso desbravar a leitura por outros caminhos.
Um deles sempre foram as bibliotecas, assim como para a nossa protagonista. Eram elas que possibilitavam o encontro com aqueles livros que talvez eu jamais encontrasse sozinha naquela idade. Os sebos também sempre foram parte desse desbravamento. Tem uma coisa bonita no encontro com livros que já andaram tanto por aí, que carregam consigo uma história. A surpresa de encontrar neles essas marcas é sempre sensacional - uma dedicatória carinhosa, uma foto perdida dentro do livro, uma anotação. São marcas de que aquele livro já foi muito querido por alguém um dia.
Um outro caminho - mais inusitado - da leitura para mim foram os supermercados. Nos corredores que ficavam próximos aos caixas, sempre havia livrinhos pequenos e baratos, desses colecionáveis de vários contos de fadas. Em cada ida, eu podia escolher um livro novo - mas só um por vez. Esses corredores passaram a ser um lugar importante de cada saída e, com o passar do tempo, minha atenção foi mudando dos livrinhos para os quadrinhos e deles para as revistas - primeiro a Recreio, depois a Witch e a Smack (lembra delas?), aí então a Atrevida e a Capricho. Algumas delas eram mais baratas e eu conseguia acompanhá-las todo santo mês.
Essa leitura periódica, em que era preciso esperar a próxima ida ao supermercado ou ao sebo, o mês seguinte para a próxima edição da revista, ou ainda o tempo de empréstimo das bibliotecas, não era um empecilho, muito pelo contrário. Nesses intervalos de tempo cada leitura era saboreada com calma, destrinchada em todos os seus detalhes e carregada por todo canto. Havia tempo para fuçar cada referência que era trazida e ansiar de um jeito gostoso pela próxima.
O ritual deixava de ser somente a própria leitura: a espera também fazia parte dele, assim como o trajeto a percorrer até o lugar onde a encontraríamos. O ritual envolvia essa rotina de ir na biblioteca a cada 15 dias, aos sebos todo sábado de manhã e à banca toda quarta à noite. Cada ida trazia as novidades que se acumularam naquele intervalo de tempo, e cada escolha também era feita com esses fatores em mente.
O processo de ir atrás do que se quer ler envolve uma relação diferente com a leitura: a da descoberta e a da escolha. Começamos a entender nossos próprios interesses e aquilo que nos chama mais atenção, enquanto vemos como esses critérios vão se transformando com o tempo conforme vamos alcançando novos patamares de leitura, mais complexos.
“O intelecto de Matilda continuou a crescer, alimentado pelas vozes daqueles autores que tinham lançado seus livros no mundo, como navios são lançados ao mar. Esses livros davam à Matilda uma mensagem reconfortante: você não está sozinha.”
Se pudéssemos ter visto Matilda crescer mais um pouquinho e se tornar adolescente, certamente ela seria uma leitora de blogs nos anos 2000 - assim como eu, assim como você, muito provavelmente. Mas a possibilidade de termos as leituras à nossa disposição no conforto do lar não mudou essa relação de ritual com a leitura. Todas as tardes eram momento de sentar na cadeira, ligar o computador, entrar na pasta de favoritos do navegador e abrir cada um dos blogs que eu tinha salvo para ler seu texto mais recente. Não lembro como isso começou (talvez pelas revistas?), mas um blog ia puxando o outro e a pasta crescia. Não se saía fisicamente do lugar, mas caminhos de leitura virtuais também eram desbravados através da escrita de tantas pessoas que se dedicavam a escrever e lançar seus textos ao mundo por conta própria. Era assim com os blogs, é assim hoje com as newsletters.
A vida adulta bagunça um pouco esses rituais tão mais fáceis de seguir na infância e na adolescência. Por mais que eu faça um doutorado e ler/pesquisar/estudar faça parte do meu trabalho, as coisas não são tão simples como já foram. Nem sempre dá para ler na poltrona confortável, ao som da chuva caindo com uma xícara de chá fumegante, e às vezes o horário do almoço apertado é único possível para a biblioteca pública. A leitura vai acontecer com os sons de buzinas e gente falando ao redor, no caminho de ônibus de volta para casa, ou com uma marmita do lado na hora do almoço. Vai acontecer de pé na fila do banco, sentada no corredor no intervalo entre uma aula e outra ou já tarde da noite, quando provavelmente deveríamos estar dormindo mas insistimos naquele livro que não coube em nenhum outro momento do dia.
A verdade é que não importa muito o lugar se estamos nos entregando a uma leitura que nos interesse, seja ela qual for, no meio que for. Nos lançamos nessa procura, nos empolgamos com cada nova descoberta e, depois, nos abrimos para saboreá-las como pudermos. Talvez Matilda, quando cresceu, também se pareceu um pouco com cada um de nós, leitores vorazes nos intervalos possíveis.
E quando a leitura encontra o coração, ela transborda para fora de nós de várias maneiras. Gosto de pensar na escrita como esse transbordamento, essa coisa que preenche e vai além de nós porque não existe outra possibilidade, não há outro caminho se não colocar para fora.
Esse é o tema da semana que vem, te espero lá :)
Onde assistir
Você pode assistir Matilda na Netflix.
News andantes
Neste final de semana (12 e 13 de novembro), vai acontecer em Curitiba a Feira Estopim e eu estarei lá no estande da Tenda de Livros. Será na Alfaiataria, no Centro, das 13h às 20h, no sábado e no domingo. Se você estiver fazendo suas andanças por lá, vem dar um oi! Vou adorar conhecer você :)
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que texto mais aconchegante e que me lembrou de uma saudade. esse texto me lembrou, não, me transportou para minha infância de percorrer o mercado todo, alimentando por vontade própria a ansiedade de chegar na parte que vendia quadrinhos, só pra ter a emoção de ver pela primeira vez a história que me acompanharia pelo resto da semana. mas ainda alimento uma ansiedade boa para começar a ler um livro pra lembrar que ainda tenho coisas daquela criança risonha, alegre e tagarela. obrigada pelo texto.
❤️