É estranho pensar na rua como uma testemunha das nossas vidas. Esse amontoado de paralelepípedos, concreto e asfalto por onde passam centenas ou milhares de pessoas todos os dias. Ruas que existem há muito mais tempo que nós, que vivemos hoje sobre esse planeta. Ruas que nem sempre sabemos dizer como começaram, quem as construiu e qual vida existia ali antes dessa que se desenrola aos nossos olhos agora. Quantos amores essas ruas já viram florescer? Quantas injustiças elas já presenciaram?
Se a rua Beale falasse (If Beale Street could talk, 2018, dirigido por Barry Jenkins) é uma adaptação do romance homônimo do escritor estadunidense James Baldwin. Aqui, acompanhamos Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James), dois amigos de infância que cresceram juntos e se apaixonaram. Um dia, Fonny é preso por um crime que não cometeu e, pouco tempo depois, Tish descobre que está grávida. Junto com a família, ambos seguem em uma jornada para provar a inocência de Fonny.
Embora o romance se passe no Harlem (onde Baldwin nasceu, em 1924), vemos nossos protagonistas em suas andanças pela cidade de Nova York em passeios românticos e, mais tarde, na procura interminável por um apartamento para começar sua vida em conjunto. É por essas ruas da cidade, nos anos 70 - não segregadas na teoria, mas bastante segregadas na prática -, que fazemos nosso passeio de hoje.
“Beale é uma rua em Nova Orleans, onde nasceu meu pai, Louis Armstrong e o jazz.
Todo negro nascido nos Estados Unidos nasceu na Rua Beale, no bairro negro de alguma cidade dos Estados Unidos, seja em Jackson, no Mississipi ou no Harlem, em Nova York. A Rua Beale é nosso legado. Este romance fala do impossível e do possível, do absolutamente necessário, para expressar esse legado.
A Rua Beale é ruidosa. Cabe ao leitor decifrar a batida dos tambores.- James Baldwin
Não existe uma rua Beale em Nova Orleans, pelo menos não oficialmente. Beale é o nome de uma rua importante na história afro-americana e famosa no circuito do jazz e do blues em Memphis, no Tennessee. Mas talvez Baldwin não estivesse falando de uma rua específica, registrada nos mapas oficiais. A rua Beale de Baldwin é também as tantas ruas como essa que existem por todo o território estadunidense - ruas que fazem parte de determinados bairros que, por muito tempo, foram os únicos lugares em que as pessoas negras norte-americanas conseguiam encontrar moradia.
Se a rua Beale falasse acabou não ficando tão conhecido quanto outro filme do diretor, vencedor do Oscar de Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado, Moonlight (ainda veremos ele por aqui!). Eu demorei para assisti-lo porque achei que esse seria um filme triste - e eu andei desviando de filmes tristes nesses tempos pandêmicos. Eu não estava de todo errada nas minhas impressões: a história de Tish e Fonny é realmente triste, atravessada duramente pelo racismo que perpassa a sociedade norte-americana. Porém, a história desses dois personagens não se limita aos sofrimentos que passam.
Se a rua Beale falasse, ela também falaria de amor.
Um amor incondicional que segue firme não importa o que aconteça, não importa o que precise ser feito para bater de frente com as injustiças de um sistema que faz de tudo para excluir a população negra. A rua Beale falaria do desejo profundo de liberdade, construída com a esperança de um futuro melhor daqueles que vieram antes - para si mesmos e para os que viriam depois.
Saidiya Hartman, pesquisadora e ensaísta norte-americana, em seu incrível Vidas rebeldes, belos experimentos (publicado em português pela Fósforo nesse ano), fala sobre a resistência das jovens negras que insistiam em viver uma vida boa apesar de todas os preconceitos e limitações sociais e geográficas que as confinavam em um determinado ponto do mapa das grandes cidades. As ruas também são testemunhas das inúmeras formas de resistências, grandes e pequenas, que acontecem nelas todos os dias.
“Elas estão tão desesperadas para encontrar uma rota de fuga da servidão quanto sedentas por novas formas de vida. Ao ver as pessoas passearem pela avenida ou jogarem cartas na escada ou beberem vinho no terraço, elas se convencem de que os negros são o povo mais bonito. A luxúria comunal da metrópole negra, a riqueza do só nós, a cidade-negra-dentro-da-cidade transformam a imaginação daquilo que você pode querer e do que pode ser, encorajam você a sonhar. Merda, nem importa se você é negra e pobre, pois você está aqui e está viva e todas as pessoas ao seu redor a encorajam e a convencem a acreditar que você é bonita também. Esse esforço coletivo para viver livre se desdobra nos confins da paisagem carcerária. Elas podem ver o muro ser erguido ao redor do gueto, mas ainda assim querem estar prontas para a boa vida, ainda querem se preparar para a liberdade. (p. 44)
A cena em que Tish e Fonny finalmente conseguem alugar um loft é maravilhosa. Depois de tantos “nãos”, tanto preconceito, tanta procura sem chegar em lugar algum, tanto assédio, eles conseguem um lugar na cidade, por mais precário que ele ainda esteja. Os jovens gritam e se abraçam na rua, livres, felizes, cheios de amor - amor que permanece sempre.
Mas o filme não fala somente do amor romântico entre duas pessoas. Eles não estão isolados e muito menos sozinhos nessa cidade imensa. O legado da rua Beale é também os laços que unem as famílias em um objetivo comum, que unem diferentes pessoas vivendo em um mesmo bairro onde muros invisíveis foram erguidos, que formam uma comunidade que se apoia e se protege. A família de Tish e de Fonny faz o possível e o impossível para os defender e cuidar, assim como do bebê que está por vir. É na união, no apoio mútuo e no amor que os conecta que eles se tornam mais fortes.
(Inclusive, as atuações de todos os atores desse filme são de tirar o fôlego. Além dos protagonistas já mencionados, Colman Domingo, Teyonah Parris, Michael Beach, Aunjanue Ellis, Brian Tyree Henry, e a maravilhosa Regina King, que levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por esse papel em 2019, são só alguns dos nomes desse elenco).
Aqui e ali, Tish e Fonny também encontram pessoas que os ajudam. Pessoas que também são excluídas de outras formas - por sua nacionalidade, religião, gênero - e que batem de frente como podem. As ruas onde pisamos - essas ruas que já testemunharam tanto - são um lugar político, não podemos nos esquecer. Sempre foram e sempre vão ser. Ainda que as ações individuais não sejam muito frente à enormidade e crueldade daqueles que tem o poder, é com elas que nos juntamos como conseguimos e tornamos a rua um lugar mais gentil, mais seguro e mais acolhedor para todos. É com elas que nos amamos, nos protegemos, protegemos os outros e permanecemos atentos.
As nossas ruas também testemunham muito amor, apesar de tudo - e é o amor, sempre ele, que nos faz continuar.
“- Não quero parecer boba, mas se lembre: foi o amor que te trouxe até aqui. E se confiou nesse amor até agora, não se desespere. Confie sempre.”
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Se a rua Beale falasse está disponível para assistir na Netflix.
Links extras
- Além de Moonlight e Se a rua Beale falasse, Barry Jenkins também dirigiu a série The Undergroud Railroad (2021), que está na minha lista para assistir. Você pode assisti-la na Amazon Prime.
- Nesta semana do dia da Consciência Negra, o Sesc SP está com uma programação online de documentários, incluindo o excelente Eu não sou seu negro (2016), que traz mais James Baldwin. Os filmes ficam disponíveis gratuitamente até janeiro.
- Saidiya Hartman foi uma das convidadas da Flip deste ano e esteve em uma mesa ontem no evento (você pode ver a gravação aqui). A escritora também estará no Rio, em Salvador e São Paulo nos próximos dias.
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de: