A ilha de Bergman (Bergman Island, 2021, dirigido por Mia Hansen-Løve) foi um dos melhores filmes que assisti neste ano. Há tanta coisa que eu poderia falar aqui que me perco, não sei por onde começar e nem no que focar. Quero falar de tudo, mas não há tempo e nem espaço. Penso, escrevo, apago. Já comecei o texto várias vezes ao longo da semana. Começo, não sei como continuar, desisto.
Olho pela janela tentando achar uma forma de colocar o texto para fora em meio a páginas de anotação e rascunhos. Não consigo. Largo tudo e vou no mercado, para ver se andar traz um ar para a cabeça, que já não consegue encontrar uma trilha só em meio a tantos caminhos possíveis.
Escrever é difícil.
Enquanto eu busco nas ruas do centro de Curitiba uma forma de conseguir escrever tudo que eu sinto sobre esse filme, Chris (Vicky Krieps) busca na paisagem e nas ruas da ilha de Fårö, na Suécia, uma inspiração para conseguir sair da página em branco. Chris é uma cineasta que vem para a ilha junto com seu marido Tony (Tim Roth), também cineasta, para participar de um programa de residência artística. O objetivo de ambos é trabalhar no roteiro de seus próximos filmes durante a estadia.
A ilha de Fårö é o nosso passeio de hoje e também o local pelo qual o famoso cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) se apaixonou nos anos 60. Desde aquela época ele manteve uma residência na ilha e filmou muitos de seus filmes ali, como Persona (1966). Há um grande trabalho de preservação de sua obra na ilha e vemos muito dessa estrutura no filme: a semana de eventos (Bergman Week), o museu, os tours pelos locais importantes e as casas que fazem parte da propriedade de Bergman, que recebe artistas desde 2010.
Chris e Tony se hospedam em uma dessas casas, que tem espaço de sobra para que cada um trabalhe como bem entender. Eles estão vivendo o que seriam condições “ideais” para escrever: um lugar lindo, calmo, tranquilo, sem interrupções, com todos os recursos e suporte que precisam. No entanto, enquanto a escrita de Tony flui com facilidade, a de Chris estagna.
A sensação de não conseguir escrever, principalmente estando em condições materiais e de tempo favoráveis, é horrível. Existe a culpa - eu deveria estar fazendo mais do que isso -, a auto cobrança, a sensação de ser uma fraude (“Sim, mas não sei como, escrevendo aqui, posso não me sentir uma perdedora? Tenho até medo de me sentar à mesa.”). Nesses momentos esquecemos outros fatores que atravessam nosso processo criativo e que não aparecem no saldo final da produtividade que exigimos de nós mesmos.
Entre eles, estão as questões sociais como as de gênero, por exemplo. As pressões e exigências que nossa sociedade exerce sobre cada um são diferentes e se manifestam de muitas formas no nosso processo de criar, incluindo a própria dificuldade de ter tempo para isso e de poder andar por aí com tranquilidade para experimentar o mundo.
Podemos ver essas reflexões nas sutilezas do relacionamento entre os dois - por mais respeitoso e aparentemente equilibrado que seja - e em como cada um lida com o próprio trabalho. Essas questões também são amplamente discutidas de forma crítica ao longo do filme, principalmente quanto ao legado do próprio Bergman, que teve 9 filhos com 6 mulheres diferentes.
“- Você acha que é possível criar uma grande obra e uma família ao mesmo tempo?
- Uma obra desse porte? Aos 42 anos, Bergman tinha dirigido 25 filmes, dirigia um teatro, encenava muitas peças. Como acha que ele teria feito isso se também estivesse trocando fraldas?
[…] - As mães criaram os nove filhos e ele não fez nada.”
Chris segue em andanças pela ilha tentando encontrar a história que sabe que tem dentro de si. Ela anda sozinha e também na companhia de Hampus (Hampus Nordenson), um estudante de cinema que conhece pelo caminho. O processo criativo de Chris é diferente de Tony. Enquanto ele observa a ilha com uma certa distância e funciona bem sentado à mesa sozinho escrevendo, Chris precisa se envolver com a ilha por conta própria. Ela caminha um bocado, anda de bicicleta, se perde, se encharca com a chuva, mergulha (literalmente) de cabeça nessa pequena aventura.
É experimentando o lugar em que está, à sua própria maneira, que ela encontra o fio da meada que a permitirá desenrolar sua história.
A segunda parte do filme é toda com Chris contando suas ideias para Tony. Podemos entrar em sua cabeça e entender o processo de construção dos personagens, seu passado, suas angústias. Vemos como o seu processo criativo opera de perto, com todas as dúvidas e pontos em aberto, assim como tudo o que ela está considerando e aquilo que é importante para ela. Vemos que criar não é uma luz divina que aparece em um momento iluminado em nossas vidas. Criar demanda prática constante, mas mesmo assim o caminho às vezes vai tortuoso, cheio de procrastinações e incertezas. Vemos ali o que talvez seja algo mais próximo do nosso próprio processo criativo, onde os estereótipos do escritor (algo mais parecido com Tony) não existem realmente.
E vemos também que, mesmo nesse processo meio atravancado, podem sair coisas lindas. É mania nossa, muitas vezes, diminuir o resultado final só porque sabemos as dificuldades que tivemos para chegar nele - a sensação de ser uma fraude. Nosso trabalho é fruto de tudo que já estudamos, vivemos e praticamos até então e um resultado bom não tem como sair disso por pura sorte.
O que precisamos fazer é investigar maneiras de deixar o processo mais fácil, mais saudável para nós mesmos e deixar de invalidar nossa própria experiência. Escrevo isso aqui, mas na esperança também de um dia conseguir seguir minhas próprias palavras.
O filme que ela está escrevendo nos é mostrado literalmente dentro do filme - e ele é incrível. Os personagens de Chris, Amy (Mia Wasikowska) e Joseph (Anders Danielsen Lie), também vagam pela ilha tentando entender seus caminhos que se separaram no passado, enquanto viajam para Fårö para o casamento de uma amiga em comum. Vemos na história vários elementos da própria experiência de Chris na ilha, mostrando como nossa vida, de qualquer forma que ela for, está intimamente ligada com o que criamos. Contamos as histórias que temos em nós, afinal de contas.
Um outro texto, sobre os fantasmas tão falados no filme me roda a mente sem que eu consiga encaixá-lo aqui. Talvez as histórias que ainda não contamos sejam os fantasmas que nos circundam, esperando o seu momento para fazer a passagem para o lado das coisas que foram ditas.
Talvez em cada edição dessa - escrita de pijama no meio da pressão do prazo que eu mesma me coloquei (como se já não existissem pressões o suficiente), vendo as marmitas subirem e descerem a rua na hora do almoço e sob o som de marteladas em uma obra em algum lugar próximo - eu deixe alguns desses fantasmas irem. Quem sabe no meio desse caminho eu encontre a minha própria forma de criar, com menos pressão e menos culpa, e consiga, no tempo de uma vida, deixar que fantasmas maiores passem para o lado de lá. Talvez seja isso que Mia Hansen-Løve fez aqui também. Talvez seja isso que todos nós tentamos fazer todos os dias.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
A ilha de Bergman estará disponível no catálogo da Mubi a partir de 23 de dezembro. Anota aí para não esquecer!
Links extras:
- Vicky Krieps também atua no filme Trama fantasma - que é maravilhoso - e Anders Danielsen Lie esteve em outro dos melhores filmes desse ano: A pior pessoa do mundo (ainda veremos ele por aqui!). Ambos estão disponíveis para alugar na Amazon Prime.
- Ano passado a HBO fez uma adaptação de Cenas de um casamento (1973), uma das obras de Bergman, imaginando a história para os nossos tempos. Fui um pouco cética com a ideia no início, mas me rendi. A série é incrível e Oscar Isaac e Jessica Chastain são maravilhosos. Na HBO Max.
- Falando na dificuldade de mulheres diretoras de cinema, nessa semana Chantal Akerman (1950-2015) foi a primeira mulher a ter um filme no topo da lista dos melhores de todos os tempos pela lista da lista da Sight & Sound. Merecidíssimo.
- Coincidentemente, a
(que é minha companheira e escreve a no quarto ao lado), também falou sobre processos criativos nessa semana (não combinamos, juro!).Outros passeios:
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Eu quase me inscrevi para fazer essa residência em 2023. Mas tô me planejando para tentar fazer em 2024, com um projeto mais sólido para executar na ilha. Espero que topar com teu texto sobre esse filme (que eu não vi, mas agora botei na lista) seja um sinal hehe <3 Obrigada por compartilhar a reflexão toda.
Adorei!
Já quero super ver!
(Luisa, já pensou em transformar essas suas andanças em um livro? fico viajando com a lindeza que seria ter esses passeios em minha estante, sempre a mão na hora da escolha de um filme, naqueles domingos sem ideia)