Esta é a última edição “convencional” da Andanças que você receberá neste ano!
Nas próximas semanas teremos duas edições especiais de Natal que saem um pouco do nosso esquema de sempre. Depois delas, a Andanças entrará de férias, mas você continuará recebendo os e-mails! Serão duas edições mais curtas, com indicações temáticas de filmes andantes. Em janeiro, voltamos à programação normal (e com novidades!).
Como explicar aquele momento em que alguém atrai o nosso olhar na multidão?
Aquele momento em que, em meio a tantos desconhecidos andando ao nosso redor, somos arrastados para uma pessoa em específico como que por um imã, sem saber dizer exatamente por quê. O olhar se fixa sem ter como sair
– sem querer sair.
Ao olhar de volta para esse alguém, pode ser que sejamos capturados também por essa eletricidade, que percorre o corpo e imobiliza, mas de um jeito bom. Perdemos a noção do entorno, como se os dois pares de olhos estivessem unidos por uma força invisível que os impedissem de se soltar um do outro.
Por alguns milésimos de segundo, nada mais importa.
Nosso passeio de hoje é longo. Ele começa no Natal, nos corredores de brinquedos de uma loja de departamentos em Nova York nos anos 50. Dali, segue para as ruas de uma Manhattan que parece ter saído de um quadro de Edward Hopper. Vemos restaurantes e salões luxuosos dos hotéis de Midtown - Ritz, 7th avenida, Madison Av., Plaza - e as ruas boêmias cheias de jovens sonhadores do Greenwich Village. Pegamos uma carona até o subúrbio em Ridgewood, em Nova Jersey, a 50 minutos de Manhattan, e então pelas estradas dos Estados Unidos entre cafés e hotéis de beira de estrada.
Em Carol (2015, dirigido por Todd Haynes), acompanhamos Therese (Rooney Mara), uma jovem fotógrafa que trabalha na loja, um emprego que odeia. Naquele dia de dezembro gelado, o olhar de Therese encontra o de Carol (Cate Blanchett), uma mulher mais velha, rica e casada, que vem à loja comprar um presente de Natal para a filha.
Depois do impacto do primeiro olhar, as duas voltam a se encontrar e desenvolvem uma proximidade. De um lado, o casamento de Carol desmoronou há muito tempo e, do outro, Therese não parece muito satisfeita com a vida que está levando. As duas se envolvem cada vez mais e o que foi dito naquele primeiro olhar começa a tomar forma e a ser difícil de evitar. No ano novo, as duas pegam a estrada no carro de Carol com o objetivo de ir até a costa oeste, do outro lado do país.
Em uma época em que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não era somente algo “imoral”, mas também criminoso (o Illinois foi o primeiro estado a descriminalizar a homossexualidade, em 1961, mas a lei só foi derrubada totalmente em 2003!! - mais infos aqui), o olhar é uma das principais formas de comunicação.
O olhar busca, se interessa, flerta, acalenta. Talvez seja também pelo olhar, mesmo hoje, que começamos a navegar o mundo quando ainda não sabemos bem quem somos. Percorremos com ele a malha invisível da realidade que nos é posta, como que buscando brechas, possibilidades, compatibilidades. É só depois que o que encontramos passa pelo consciente e pelo racional – e nem sempre isso acontece.
Mas há outros olhares nas ruas: suspeitos, interrogativos, denunciadores, vigilantes. Os olhares entre Carol e Therese também comunicam aquilo que agora é sabido, mas que mesmo assim não pode ser dito. São olhares cúmplices nas artimanhas feitas para despistar. Todo cuidado é pouco porque esse é os Estados Unidos dos anos 50 e duas mulheres não deveriam estar viajando sozinhas.
Um “desvio” e a malha da realidade imposta já não é tão invisível assim: mostra todas as suas garras para nos fazer voltar à “normalidade”. Afinal, Carol e Therese são duas mulheres bastante diferentes (e nem tudo são flores, importante dizer) que se interessaram romântica e sexualmente uma pela outra, mas também que desafiam e negam outros papéis que lhes foram colocados: Carol é uma mulher casada do subúrbio que ousou pegar o carro e ir embora; Therese é uma mulher jovem que ousou querer mais para si do que o casamento.
Na cidade, o olhar é início e é final. Quantos romances inteiros já existiram nos segundos de um olhar? Um primeiro olhar desse não se esquece com facilidade e nem um último, talvez você saiba bem disso. Talvez você ainda saiba dizer em quais ruas, cafés ou bares aquele primeiro olhar foi dado, ou aquele último. Eles ficam em nós, nas cenas do filme das nossas vidas.
Às vezes, início e fim estão contidos em um mesmo e único momento; outras vezes, são só o começo ou o fechamento de uma história cheia de outros olhares. Temos como saber de qual desses tipos é esse olhar? Talvez as conexões que buscamos com nossos olhos são todas apostas que jogamos para o universo: não há como saber realmente se aquele se trata de um ponto final ou de novo parágrafo. A vida tem desses mistérios, às vezes.
O último olhar que vemos na tela é mais uma vez de olhos que se encontram no meio da multidão. É um meio, um fim, um novo começo? Só podemos preencher a lacuna dos mistérios que ficam com nossas próprias expectativas, opiniões, desejos e vontades. Nunca vamos saber, e nem elas saberiam. Do lado de cá, nós só podemos supor o que esses olhos dizem, nessa comunicação silenciosa que acontece em um universo próprio, além de qualquer outra pessoa. É no olhar que temos o nosso final feliz - seja ele qual for.
Carol é uma adaptação do romance de Patricia Highsmith, que foi publicado sob um pseudônimo em 1952 com o título O preço do Sal. É incrível saber que uma história de duas mulheres da costa leste pegando a estrada para a costa oeste dos Estados Unidos existiu antes que as aventuras de homens fictícios se tornassem famosas (On the Road, de Kerouac, foi publicado em 1957). Há muitas outras reflexões que podemos fazer, mas quem sabe em uma parte 2?
Eu não conhecia muito sobre romance quando assisti o filme pela primeira vez anos atrás, e soube mais em uma das aulas do curso As mulheres que escrevem Nova York 3, oferecido pela
no mês passado. As professoras Marcela Lanius e Emanuela Siqueira, junto com a Roberta, coordenadora da Literária, foram incríveis na apresentação do romance e do contexto em que ele se passa nos anos 50. Essa edição é só um pedacinho dessas reflexões. Se você tiver a oportunidade de fazer esse curso no futuro, não perca! Informações novas sempre aparecem no Instagram da Literária.Semana que vem temos outras Andanças. Te espero lá :)
Onde assistir
Você pode assistir Carol na Mubi, Looke e na Claro Video. O filme também está disponível para alugar na Apple tv.
Outros passeios
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ando COMPLETAMENTE obcecada com as tuas andanças, Luisa!
e essa...
ahhhh, morri com esse curso! Na agenda para o futuro, com certeza!
Antes de tudo, muito obrigada por trazer a Literária e a aula da Marcela e da Manu para a newsletter, Luisa.
Adorei o texto e a forma como você perseguiu o enquadramento da narrativa que se desenrola no filme pelo olhar que observa os olhares das duas.