A Andanças está de volta! No último mês, tivemos apenas edições especiais de final de ano ou de férias. Nossa última edição “convencional” foi do dia 10 de dezembro(!) - nem parece que faz tanto tempo. Se você chegou na Andanças nesse período, te dou oficialmente as boas-vindas! Daqui em diante (salvo em situações específicas), toda semana você receberá uma edição como essa, com um texto a partir de um filme andante cheio de coisas da vida para nós pensarmos juntos. É bom estar de volta e é bom vê-los novamente por aqui. Quem venham muitos passeios em 2023 :)
Aviso: o texto de hoje pode conter alguns spoilers.
Quando eu era pequena, costumava registrar todos os lugares interessantes e fora do meu cotidiano que eu ia. Um restaurante, uma loja, uma casa, uma rua. Se não fosse possível por fotografias ou palavras escritas, fazia os registros na minha mente e ia repetindo os trajetos em pensamento até decorá-los. Até hoje lembro da casa de alguns colegas que eu nunca mais vi, ou a organização dos cômodos na casa de pessoas que eu não saberia reconhecer na rua, assim como partes de cidades que eu não sei localizar no mapa. Levei essa mania para a vida adulta, e cá estamos nós. Andar, assim como escrever, é também um exercício de memória.
Mas é mais fácil lembrar de situações isoladas. As viagens, por outro lado, são uma avalanche de lugares diferentes de uma só vez. É difícil registrar tudo, justamente porque estamos animados demais com o que vemos. Há ainda as pessoas que conhecemos e os hormônios à flor da pele da adolescência bagunçando tudo. É fácil esquecer os detalhes. Os dias se misturam, as conversas se sobrepõem. Nossa memória prega peças. A longo prazo, tudo parece ter sido somente um grande sonho - desfocado, pixelado, um borrão luminoso que passou por nós rápido demais.
No passeio de hoje, acompanharemos Sophie (Frankie Corio) pelas ruas ensolaradas e cheias de hotéis do litoral da Turquia nos anos 90. Em Aftersun (2022, dirigido por Charlotte Wells), uma Sophie de 11 anos está em uma viagem de férias com seu pai, Calum (Paul Mescal), que não mora no mesmo país que ela. Há muitas novidades: o lugar, os passeios, as outras crianças, os adolescentes e o próprio pai. Sophie está vivendo um momento de transição em que muitas coisas acontecem. Ela registra tudo em uma câmera filmadora, mas também na memória: podemos ver que algumas coisas a marcam mais e reaparecem constantemente na tela, como a pulseira que ganha de uma menina mais velha.
Mas essa é a perspectiva de Sophie. O que ela registra sobre a viagem tem o ar da descoberta e de suas experiências como uma pré-adolescente em formação no mundo. Embora sua percepção seja afiada em alguns momentos (principalmente com relação à dinheiro), ela ainda é nova demais para compreender algumas coisas relacionadas às emoções e as sutilezas lhe passam despercebidas. Ela não vê algumas coisas que nós vemos.
“Quando você tinha 11 anos, o que você achava que estaria fazendo agora?”
Minha idade hoje é próxima a que Calum tem no filme. Não tenho filhos e jamais saberei o que é ter uma filha tão cedo na vida. Mas sei, hoje, que ser adulto é uma coisa difícil. Muito mais difícil que uma versão mais jovem e mais arrogante de mim pensava ser, alguns anos atrás. E ser um adulto com uma mente que atravessa dificuldades, mais difícil ainda.
Aos poucos, vemos que esse pai jovem, sensível e brincalhão é um adulto que, como tantos de nós, tenta manter a vida no lugar aos trancos e barrancos. Há muitas questões emocionais em jogo e talvez elas já existam há muito tempo. Calum tenta, tenta de novo e mais uma vez. Medita, pratica Tai Chi Chuan, planeja uma viagem ideal, tenta um novo negócio, faz de tudo para que a filha se divirta, se emociona vendo as filmagens do dia. Vemos suas tentativas naquilo que Sophie não vê: seja porque está fora do seu campo de visão, da sua compreensão ou porque é algo que está escondido em um olhar que nós, também adultos, reconhecemos, mas ela não. Calum está cansado, um cansaço profundo que aparece cada vez mais conforme os dias passam e se torna mais difícil manter a fantasia de que está tudo bem.
“Você já sentiu como se tivesse passado um dia inteiro incrível, e depois você volta para casa e se sente cansado e triste, e sente como se seus ossos não funcionassem. Eles estão tão cansados e tudo cansa. Como se você estivesse afundando. Não sei, é estranho.”
Mas a Sophie de 32 anos também compreende isso agora. Há uma casa, uma companheira e um bebê chorando no outro quarto. No processo de entender e lidar com a nossa própria vida, olhamos para trás para tentar buscar o que nos escapou. Sophie faz esse retorno com as memórias e registros que tem, mas o panorama nunca é completo. A memória foge, escapa, nos engana. Nós, espectadores, temos um privilégio que ela não tem. Podemos ver na tela o que Sophie está agora buscando entender: que o que Calum sentia talvez estivesse além dele mesmo, além das dificuldades cotidianas da vida adulta. Que aquele era um precipício que talvez ele não conseguisse sair sozinho, por mais que tentasse.
“Nunca se esqueça disso.”
Quando sai da sala de cinema, fiquei um pouco em dúvida com o que tinha visto. Em algum lugar da minha mente, guardei a informação de que algo acontecia (talvez com a mãe?) e os dois precisariam lidar com essa emoção juntos. A espera pelo algo-que-nunca-veio desviou a minha atenção das sutilezas que se desdobravam silenciosamente na tela. Registrei-as de alguma forma, porque desci as escadas com uma suspeita e um nó na garganta que levei uns minutos para processar.
Na minha fileira, um grupo bem jovem levantou agitado quando as luzes acenderam. Uma das meninas levantou as mãos para o alto como quem diz que não entendeu nada. Talvez seja muito cedo, ainda. Sentei na cadeira da cafeteria e a ficha inteira do filme caiu de uma vez e eu chorei. Ali mesmo, na cafeteria agitada e iluminada do Cine Passeio, escondida atrás da minha máscara cirúrgica.
Meu caminho de volta para casa é andando e passa pelo parque mais antigo da cidade. Um parque onde um dia, anos atrás, eu andei e tentei registrar sua localização e formato na minha mente, mas havia muitas outras coisas para se preocupar na época. Ele é um tanto melancólico em dias frios e nublados como aquele de dezembro e, ali, eu chorei de vez. Chorei. Chorei andando, como já fiz tantas vezes. Chorei por Calum, chorei por Sophie e chorei pelos pedaços de mim que vi em ambos.
“That's me in the corner
That's me in the spot-light
Losing my religion
Trying to keep up with you
And I don't know if I can do it”
Mas às vezes é chorando que fazemos o luto das dores que não podem mais continuar conosco daquela forma. Que nos desprendemos da ideia de compreender tudo e ter todas as respostas. Que entendemos que não somos infalíveis e que a ajuda necessária estava muito além de nós. Olhar para trás talvez seja o início de uma cura, de saber que não podemos mudar o que passou e nem exigir da criança que fomos a percepção que temos do mundo hoje. De aceitar que provavelmente não havia nada que pudéssemos ter feito.
“This is our last dance”
Transformar nossas dores em coisas bonitas talvez seja o máximo da transmutação que está ao nosso alcance humano. Curar a nós mesmos e homenagear aquilo e aqueles que passaram para que continuemos em frente tentando fazer o melhor que podemos com o que temos. Aftersun fica como um filme para guardar no coração sempre que for preciso relembrar de tudo isso - e que bela homenagem ele foi.
Até o próximo passeio :)
A história e o desfecho de Aftersun são uma ficção, mas o filme foi em partes baseado nas memórias da própria diretora, Charlotte Wells. Nessa carta (em inglês, mas nada que o Google tradutor não dê conta), ela conta um pouco sobre o filme e o quão pessoal ele é, além de também escrever sobre memórias e o complicado processo de lembrar. Não deixe de ler, vale bastante a pena.
Onde assistir
Você pode assistir Aftersun na Mubi. O filme também ainda está em exibição em alguns cinemas no Brasil. Se for o caso da sua cidade, recomendo fortemente a experiência.
Links extras
A Mariana também escreveu sobre Aftersun a partir de uma perspectiva da finitude na
. Você pode ler o texto aqui.A Bárbara também escreveu uma edição especial para assinantes sobre o filme na
.Um agradecimento especial à Roberta da
e à Jana @janaisa pelas mensagens nas últimas semanas, que me trouxeram muito o que pensar sobre o filme e com isso contribuíram na construção dessa edição.Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Luisa, que leitura mais linda!
Sabe que não tinha me atentado a esse olhar e, de repente, senti vontade de abraçar os meus pais. Obrigada por isso! Você arrasa demais!
(e obriii pela referência tão gentil! <3)
Que delícia de passeio! Eu fiquei bem melancólica depois que saí da sala do cinema e, como muitos, passei dias matutando sobre o que não acontece no filme, o que a gente não vê (adorei sua percepção sobre o que a Sophie não viu). E adorei essa carta da diretora... novidade pra mim. Bjs