Alguns dias atrás, recebi uma notificação do Personare dizendo que, ao longo de todo o ano de 2023, estarei passando pelo meu primeiro retorno de Saturno.
Resumidamente, esse é um fenômeno astrológico que acontece mais ou menos a cada 28 anos e é quando Saturno - considerado, entre outras coisas, astro das responsabilidades - nos convida a mudar nossa forma de agir e pensar para um novo momento de nossas vidas, mais maduro que o anterior. Em outras palavras, nos convida justamente a isso: amadurecer.
A tarefa é sempre difícil, mas aos vinte e tantos, é uma transição bem mais complicada do que pode parecer. É o que eu estou descobrindo agora e também o que Delphine (Marie Rivière, que tinha exatamente a minha idade no momento do filme) vai descobrir em O raio verde (Le rayon vert, 1986, dirigido por Éric Rohmer).
No passeio de hoje, acompanharemos Delphine em suas muitas andanças solitárias pelo verão em Paris e em outras cidades turísticas da França nos anos 80. Delphine é uma jovem secretária que tem à sua disposição 2 semanas de férias no final de julho. Ela quer sol, mar, bronzeado e água fresca e seu plano era viajar para a Grécia, mas a amiga que a acompanharia desiste da viagem. Delphine fica completamente perdida e sem saber o que fazer: não quer de forma alguma viajar sozinha, mas também não gostaria de mudar demais seus planos.
Durante vários dias, vemos Delphine andar para lá e para cá em Paris visitando amigos e pedindo opiniões. Cada um deles tem uma sugestão e ela recusa quase todas. Por fim, acaba aceitando algumas propostas e viaja por cidades no litoral e nas montanhas. Mas as angústias permanecem: nenhuma daquelas é a viagem que ela gostaria de estar fazendo nas suas férias.
Se olharmos um pouco mais fundo, há várias camadas envolvidas no sofrimento de Delphine, assim como também existem no nosso. Durante todo o nosso período de crescimento, somos levados à acreditar em ideais e em linhas de chegada. Criamos sonhos baseados nisso e romantizamos como a nossa vida supostamente será quando os alcançarmos. E aí vem a vida real e nos mostra que não é tão simples assim.
Nas palavras da própria mensagem do Personare que recebi: “Um ponto em comum abarca cada vez que Saturno retorna: trata-se de um momento em que tomamos consciência dos limites que muitas vezes nos recusávamos a encarar. Estes limites podem ser externos ou internos, mas sempre representam condições que precisamos ter consciência, caso contrário, nos limitamos a sonhar sem conseguir realizar as coisas no plano prático.”
Delphine está só e, romântica como é, quer um amor ideal - “fico esperando que um dia surja aquele com que sonho” - e alguém com quem compartilhar suas férias perfeitas. Ela sabe o que quer, mas não faz a menor ideia de como alcançá-lo no plano prático das coisas. Sofre porque ainda precisa de uma validação externa, de encontrar do lado de fora alguém que pense como ela para que possa se sentir mais segura de quem é e da realidade do que quer. Negar completamente os outros, nesse caso, é aceitar a sua solitude e é a isso que Delphine ainda se prende. Por isso cede a planos e modos de fazer as coisas que não são os seus. Mas estar em meio à estranhos só a faz se sentir mais sozinha.
Nós já estivemos aí antes, você sabe. Nos perguntando o que viemos fazer ali. Esgotamos relações possíveis porque buscamos nos outros um norte que não nos permitimos dar a nós mesmos. Vemos que, em algum nível, já fomos Delphine também.
“Atenção: O sofrimento nos retornos de Saturno ocorre quando há insistência em se manter num estado infantil.”, diz também o Personare.
“Estou dizendo bobagens. Não sei o que eu quero. Parece que estou num outro planeta.”
É mais fácil falar do que fazer. Escrevo essas palavras enquanto eu mesma me sinto perdida, meio sem rumo. Me sinto adulta em algumas coisas e uma adolescente mimada em outras. Tenho dificuldade de expressar com clareza o que eu quero e às vezes já nem sei mais se realmente sei o que quero. Mas me pergunto se a dúvida é realmente sobre o que se quer, ou se é um medo de admiti-lo em voz alta. Ou, ainda, sobre encarar quais as possibilidades reais que temos de alcançá-lo.
Tendemos a nos fixar em apenas um único caminho para fazer as coisas. Já falamos disso no ano passado quando passeamos por Nova York com Frances, e Frances Ha é um filme que tem muitas conexões com este. Assim como Frances, Delphine tenta muitas vezes. Mas nossa imaturidade não nos deixa ver os mil e um caminhos possíveis que podem fazer nossos sonhos se concretizar de formas ainda melhores do que sequer podíamos imaginar antes.
Vimos lá atrás Frances perceber que Sophie continuava sendo a sua pessoa na vida, mesmo depois de se mudar e casar. E que também sua carreira na dança poderia ser altamente promissora de outras formas, diferentes daquela em que ela insistia. Delphine só é capaz de encontrar o que tanto queria quando desiste de tentar se aproximar dos outros e faz as pazes com o fato de estar sozinha no meio da multidão.
“- Não gosta de estações?
- Não gosto de partir.”
Mas às vezes, Delphine, é justamente partindo que deixamos ir o ciclo que precisa ficar para trás. Não sabemos para onde estamos indo, é verdade, mas sabemos que precisamos gastar a sola dos sapatos, testar todas as ruas possíveis, entrar em todos os lugares para entender essa transição que estamos passando. Tentamos, buscamos - e quando o fazemos, mesmo que da nossa forma meio estranha ou sensível como Delphine, eventualmente encontraremos algo. No mínimo, conheceremos mais de nós mesmos e talvez esteja aí um dos primeiros passos da maturidade.
Saturno nos guia adiante - e ele sabe o que faz.
Até o próximo passeio :)
PS.: E se dois estranhos se conhecendo em uma estação de trem europeia te lembra alguma coisa, já pode começar a preparar o coração para daqui a duas semanas <3
Onde assistir
Infelizmente, O raio verde não está disponível em nenhuma plataforma de streaming nesse momento. O filme já fez parte do catálogo da Mubi e, se retornar, atualizo as informações nessa edição.
News andantes
Nem todos os filmes da nossa lista andante são fáceis de encontrar nos mais variados streamings que temos à nossa disposição. Então, quando algum deles aparece por aí, precisamos compartilhar.
Casulo (Kokon, 2020, dirigido por Leonie Krippendorff) é um desses filmes e está disponível para assistir gratuitamente no site do Sesc SP até o dia 09/04. Não veremos ele por aqui tão logo, mas já fica a dica caso você queira se adiantar :)
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
<3
Que lindo, Luísa! ♡