“Vamos para o outro lado. Lá a vista será mais bonita.”
Em relacionamentos com outras pessoas, costumamos pensar sempre em termos daquilo que queremos e precisamos e daquilo que o outro quer e precisa - uma via com duas direções. Não pensamos tanto, porém, na relação que cada um tem, individualmente, com o meio que o cerca – o entorno onde essa via de mão dupla está. É uma relação que, muitas vezes, só notamos quando se torna um desequilíbrio escancarado na nossa frente; quando extrapola as margens da relação com o outro e não pode mais ser evitada.
Essa relação individual com o meio faz com que duas pessoas morando em uma mesma cidade a vejam e a conheçam de uma forma completamente diferente. A cidade nunca é uma só, portanto: ela é o conjunto das experiências que tivemos nela, do que ela nos traz no momento e de como nos sentimos ali, assim como quão em harmonia ela está com o nosso senso de identidade. Cada um vive sua própria cidade e cada cidade se desmembra nas milhões de versões de cada um de seus habitantes.
A relação que temos com o meio onde moramos é extremamente importante para a construção de quem somos. A cidade, dessa forma, pode constituir também uma forma de lar. É esse amontoado de construções e multidões com o qual nos identificamos, é o lugar por onde circulamos todos os dias, que sentimos como nosso. Nem sempre se trata da nossa cidade natal, porque às vezes o que precisamos mesmo é fugir dela. Às vezes, uma cidade é nosso lar apenas por um determinado período de tempo. As circunstâncias nos levam a encontrar lares em outros lugares ou então nós mesmos mudamos: nos transformamos em outras pessoas, com outros desejos e experiências, outras conexões com a cidade e outros significados sobre o que é “lar”. A vida está constantemente nos mudando no espaço e no tempo.
Não conseguir nos identificar com o espaço onde estamos é algo que sempre nos afeta: nosso senso de direção interno se descompassa. E, se perdemos o domínio de quem somos e não nos identificamos com o ambiente ao nosso redor, nos colocamos em um desequilíbrio que vai encontrar suporte somente no outro: alguém que tem interpretações e expectativas que nem sempre nos atendem.
Quantas vezes recusamos oportunidades ou ofertas na tentativa de sermos fiéis a nós mesmos? O que é ou não uma oportunidade é sempre um objeto de interpretação: o que parece ótimo de um ponto de vista mais amplo, não necessariamente o é no nível do individual. A relação que temos e tivemos com o meio influenciará nas escolhas entre ir e permanecer. Às vezes, precisamos ou queremos ir com o fluxo; outras vezes, devemos nos guiar justamente contra ele para manter um senso mínimo de identidade - e de sanidade.
“O que eu vou fazer lá? Quem serei?”
Porém, falar de movimentações geográficas é algo altamente complexo. Quantas pessoas são obrigadas a viver em um lugar com o qual não se identificam, sem poder retornar para casa? Ou sem ter mais casa nenhuma para retornar? Quantas milhares de pessoas foram e são forçadas a migrar por conta de guerras, condições de vida insuportáveis, escravidão, tráfico, exílio? As condições amplamente desiguais do nosso mundo, que é fruto do colonialismo e do imperialismo dos últimos séculos, nem sempre deixam muitas escolhas.
Guerra fria (Cold War, 2018, dirigido por Paweł Pawlikowski) é um filme que traz essa reflexão em um contexto histórico e político bastante específico. Estamos em uma Polônia destruída após a Segunda Guerra Mundial e sob o domínio da União Soviética. Acompanhamos nossos personagens, Zula (Joanna Kulig) e Wiktor (Tomasz Kot), principalmente durante suas movimentações por cidades europeias ao longo de 15 anos. Zula é cantora e Wiktor um maestro, e a música e a dança ocupam um papel central na história. Além da relação entre os dois, o que vemos também é a relação individual de cada um com as cidades diferentes onde vivem.
Zula e Wiktor não são somente duas pessoas com temperamentos bastante diferentes: são pessoas que vivenciam de forma bastante diferente os lugares onde estão juntos. Cada cidade exerce uma influência em cada um que é baseada em suas experiências anteriores de vida e do que constitui ou não um “lar” para eles - e é preciso lembrar que essas experiências são marcadas pela guerra e pelas restrições geográficas que lhes são impostas nessa nova configuração política. O que é insuportável para um não necessariamente o é para o outro. É a partir dessa tentativa de ser fiéis a si mesmos que eles fazem suas escolhas: ir ou ficar não envolve apenas o sentimento pela outra pessoa, mas também sua própria integridade. A influência que viver de uma determinada forma em um determinado lugar exerce em seu senso de identidade não pode ser ignorada por eles sem perdas, sem machucar a si mesmos e, mais cedo ou mais tarde, o outro.
A via de mão dupla do relacionamento, portanto, possui materialidade, existe em um ambiente físico com características próprias. O que existe ali se torna algo diferente do que seria em qualquer outro lugar. Ao mesmo tempo, cada um dos envolvidos viverá esse mesmo lugar de formas completamente diferentes e isso se refletirá em como vivenciam a relação com o outro. Quando paramos para refletir assim, é até meio desnorteante o tamanho da complexidade - e da fragilidade - que envolve estar vivo e em constante interação com outras pessoas em um ambiente como as cidades, que também se transformam no tempo.
Podemos pensar, então, que estamos em um constante estado de busca de equilíbrio entre as relações conosco, com os outros e com o meio. Ora pendemos para um lado da fronteira, ora para o outro. Essa busca é ilustrada no filme com algumas das cenas mais bonitas e ao mesmo tempo tristes que eu já vi. É um filme visualmente impecável, sem sombra de dúvida. Os altos contrastes em preto e branco só reforçam ainda mais quão diferentes nossos personagens são e intensificam as emoções que irradiam dessa busca incessante por si mesmo e do que constitui um “lar” quando o mundo ao redor já não atende mais ao que precisam. O filme, inclusive, é baseado na história de amor dos pais do diretor, que deram nome aos personagens. Diferente do filme, a história de idas e vindas de Zula e Wiktor da vida real se passou ao longo de 40 anos, de 1948 até 1988 - o começo e o fim da Guerra Fria. Ambos morreram logo antes que ela terminasse em 1989, com a queda do muro de Berlim.
Buscamos o equilíbrio para encontrar nessas relações um lar. Um lar na cidade, um lar nos outros, um lar em nós mesmos. Um lar que reúna todos esses lares em uma vida só, que constitua um porto seguro onde podemos nos apoiar frente às adversidades que vem e vão. Como seres sociais que somos, talvez estaremos nessa busca por equilíbrio durante toda a nossa existência. Sabemos que o equilíbrio “ideal” nunca vai existir e que a vida nunca é tão certa e rígida. É mais garantido tomar a instabilidade como certeza, o movimento e a oscilação como únicos guias possíveis. Às vezes lembramos disso, às vezes esquecemos - e está tudo bem.
Até o próximo passeio :)
Guerra fria está disponível gratuitamente no site do Sesc São Paulo até o dia 14/09/22. Você também pode assistir o filme na Amazon Prime e no Globo Play.