Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas e trilogias, como é o caso deste passeio especial que começa hoje. Faremos nossas andanças junto com Jesse e Céline, protagonistas dos três filmes da Trilogia Before. A edição de hoje é uma introdução e nas próximas três semanas conversaremos mais sobre cada um dos filmes.
Uma das características que eu mais gosto nos filmes andantes é a sua proximidade com a vida cotidiana. Assisti-los nos traz a sensação de que, alinhadas as circunstâncias do acaso - ou: o lugar certo na hora certa -, aquela é uma história que poderia muito bem estar acontecendo conosco. Todos nós saímos às ruas de nossas cidades todos (ou quase todos) os dias e cruzamos nossos caminhos com uma infinidade de pessoas conhecidas e desconhecidas. A verdade é que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento - há um filme andante das nossas vidas à espreita em cada nova esquina.
Quando pensamos em filmes de pessoas andando por aí e conversando, provavelmente são os filmes da Trilogia Before (ou Trilogia do Antes) que nos vem à mente primeiro. Eles carregam a essência desse tipo de filme do início ao fim e são um imenso sucesso até hoje, estando na lista dos favoritos de muita gente (a minha inclusa!). São aqueles confort movies para o qual voltamos sempre que queremos ter o coração aquecido e sentir que o amor é possível. E não é por menos: a história, os diálogos, os desfechos, os atores, as andanças, tudo se encaixa perfeitamente bem e faz desses alguns dos melhores filmes andantes que temos.
Caso você ainda não a conheça, a Trilogia Before é composta pelos filmes Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995), Antes do Pôr-do-sol (Before Sunset, 2004) e Antes da Meia-noite (Before Midnight, 2013), todos dirigidos por Richard Linklater. Em Antes do Amanhacer, Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) se conhecem em um trem; em Antes do Pôr-do-Sol, se reencontram depois de 9 anos; e, em Antes da Meia-noite, partem juntos para uma viagem.
Sempre esteve nos meus planos fazer um especial em três partes, uma para cada filme da trilogia. Mas, no começo desse ano, um amigo me me enviou esse fio no twitter (em espanhol) feito por Jorge Corrales, e eu percebi que três edições apenas não bastariam: eu precisava de uma introdução.
Isso porque há duas coisas especiais que perpassam todos os três filmes: a história real que deu origem a eles e uma nova forma de interpretá-los.
Como pessoas comuns, cheias de preocupações e demandas que somos, talvez seja normal tentarmos ver nossas vidas com os óculos cor-de-rosa dos filmes, romantizá-las dentro do que é possível. Não costumamos pensar com a mesma frequência o contrário: de que um filme pode ter se originado de alguma experiência altamente comum e corriqueira (ainda que extraordinária à sua maneira) de pessoas como nós, que só estavam ali vivendo suas vidas no tempo de espera entre uma coisa e outra.
Em 1989, o diretor Richard Linklater (então com 29 anos e já cineasta), iria passar a noite na casa de sua irmã, na Filadélfia, antes de voltar para Nova York. Naquela noite, ele acaba conhecendo uma moça de 20 anos chamada Amy Lehrhaupt em uma loja de brinquedos. De cara, os dois se conectaram e passaram horas conversando e caminhando pelas ruas até amanhecer. Richard disse à Amy que, no futuro, ainda faria um filme sobre aquela noite.
Os dois tentaram manter uma relação à distância, mas não deu certo. Richard começou a se relacionar com outra mulher e ele e Amy não se falaram mais. Em 1995, o primeiro filme foi lançado, baseado diretamente na noite que viveram juntos. Richard até achou que ela poderia aparecer em algum dos eventos do filme, mas os dois acabaram não se vendo de novo. (Você pode ler mais sobre a história completa aqui (em inglês) e aqui (em português)).
No segundo filme, vemos que Jesse e Céline passaram por algo semelhante. Seus caminhos se desencontraram e Jesse, agora casado e com um filho, escreveu um livro sobre aquele dia (assim como Richard havia feito o primeiro filme) - de certa forma, na esperança de um dia reencontrá-la. Dá certo: Jesse e Céline se encontram novamente quando Céline vai até um evento sobre o livro em Paris. Temos então mais algumas horas de muitas conversas entre os dois enquanto caminham pela cidade.
Em 2010, Richard recebeu uma carta de um amigo de Amy que sabia sobre o encontro em 1989, contando que ela havia falecido em um acidente de moto em 1994, semanas antes do início das filmagens de Antes do Amanhecer. Nos créditos finais do terceiro filme, lançado em 2013, há uma dedicatória dos filmes em sua memória.
O desfecho da história de Richard e Amy é extremamente triste e tocante. É duro saber que ela não teve a oportunidade de assistir o primeiro filme e nem de conhecer toda a história de Jesse e Céline que se desenrolou nos anos seguintes. Saber da notícia foi muito triste para o diretor, que, em uma entrevista comentou sobre “Quem sabe como reverberamos na vida um do outro […] mas ela é a inspiração de tudo isso”.
Eu já conhecia a história de Richard e Amy quando li o tweet que mencionei, mas o que eu não esperava era que, depois de tantos anos assistindo e reassistindo os filmes, eu me depararia com uma nova possibilidade de interpretá-los.
Costumamos pensar na Trilogia Before como uma mesma história que se desenrola com o passar do tempo. Vemos os protagonistas envelhecendo e como os sentimentos que tinham um pelo outro evoluíram e se transformaram nesse período. A interpretação mais comum que temos da história é a da continuidade - um mesmo romance e suas mudanças. É como eu sempre vi os filmes também. Mas o fio no twitter de Jorge abriu um horizonte imenso para uma perspectiva que eu nunca havia pensado antes: os filmes contam exatamente a mesma história de amor vivida por pessoas diferentes.
Jesse e Céline não são os mesmos em cada um dos filmes, assim como nós também não somos no decorrer de nossas vidas. Suas versões de 20 anos não são as mesmas das de 30 e de 40. Cada vez que se reencontram, eles são pessoas diferentes das que haviam sido da última vez que os vimos. São jovens aventureiros viajando pela Europa, depois são adultos com mais compromissos e responsabilidades e, no último filme, um casal que convive junto há um certo tempo e que conhecem mais profundamente um ao outro.
Mas a história de amor permanece exatamente a mesma em todos os filmes: um homem e uma mulher estranhos um ao outro se encontram na rua, conversam e se conhecem, percebem suas similaridades e diferenças, refletem sobre si mesmos e seus modos de pensar, contam seus planos e o que querem para o futuro, se entendem, se envolvem. Temos 1h30 dessas conversas em todos os filmes e elas seguem a mesma estrutura enquanto as cenas também se espelham (Jorge, o autor do fio no twitter, assistiu os três filmes simultaneamente e você pode ver mais detalhes dessas semelhanças por lá).
Mas, como não são mais os mesmos, a história de suas versões de 30 e 40 anos não se dariam mais da mesma forma apaixonada e aventureira dos 20 anos. Eles tem mais recursos, circulam por outros lugares, tem outras necessidades durante suas andanças. É assim na nossa vida também: mudamos, envelhecemos, e nossas formas de amor mudam conosco - o que não quer dizer que elas sejam menos românticas do que foram aos 20 e poucos.
Para mim, isso aproxima ainda mais os filmes da realidade das nossas vidas e torna esse romance andante ainda mais palpável. Essa forma de interpretá-los e a história real que deu origem a eles os fazem exemplos excelentes de como a arte pode imitar a vida e o quão cheia de surpresas nossas vidas - reais e cotidianas e comuns - por aí podem ser. Saber dessas duas informações me faz pensar nos filmes de outra forma, com ainda profundidade e poesia do que eles já tem sozinhos.
E é com esse pano de fundo que começaremos nossa andança junto com eles nas próximas semanas, acompanhando Jesse e Céline por Viena, Paris e Grécia.
Te espero semana que vem com Antes do amanhecer :)
Onde assistir
Você pode assistir o primeiro e o terceiro filme da trilogia na HBO Max e o segundo filme (que por alguma razão saiu da HBO) está disponível para alugar na Amazon Prime.
Links extras
Nessa semana finalizei uma encomenda de pintura com uma das cenas de Before Sunset. Postei o resultado no instagram :)
Agradecimentos ao William pelo envio do tweet que deu o gatilho pra essa edição <3
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Ay mulher, essa edição vai me fazer cometer um email e uma maratona com os filmes.
Não tinha ideia da história com a Amy, que triste, céus! Porém mais um lembrete de ir viver a p0rra da minha vida! <3
beijocas e ansiosa pelas próximas edições
Adorei suas observações. Sou apenas um jovem de 18 anos que se apaixonou por essa trilogia, e que sonha em viver um amor tão intenso quanto o de Jese e Céline, já maratonei diversas vezes essa trilogia, e a cada vez me apaixono mais. Estou feliz por achar esse blog e descobrir mais detalhes desses filmes que tanto amo. ❤️