Minha intenção era enviar esta edição no último domingo, mas com as andanças do feriado, acabei não conseguindo. Mas este passeio fora dos nossos dias costumeiros acabou sendo bom: esta edição está sendo enviada depois de eu ter assistido o episódio 3 desta nova temporada, que foi ao ar no domingo à noite na HBO Max - e que é para mim um dos melhores que eu já vi em séries de televisão. Que atuações, que sacada, que roteiro! Ele sacudiu todo o texto que eu já havia escrito e me colocou para pensar ainda mais sobre tudo que já estava aqui. Mas talvez esse seja o efeito de Succession na gente: as coisas dão voltas quando menos esperamos para nos tirar de qualquer lugar confortável que possamos ter entrado.
Aviso: essa edição contém alguns pequenos spoilers da quarta temporada.
Eu passei o último mês assistindo pela primeira vez as três temporadas de Succession (2018 - presente, criada por Jesse Armstrong). Durante esse tempo, não imaginei que um dia pensaria em trazê-la para nossos passeios. Isso porque Succession não é exatamente uma série andante ou, pelo menos, não nos moldes que estamos acostumados.
Se pararmos para pensar, nossos personagens estão o tempo todo circulando pela cidade (e em viagens curtas) enquanto tentam entender como navegar nesse mundo traiçoeiro onde estão, pensando nos seus próximos passos, sentindo muitas coisas que não entendem bem e sempre em busca das necessidades mais humanas que temos - amor, atenção, aprovação, cuidado. Olhando dessa forma, eles não parecem tão diferentes de nós e nem de tantos outros personagens andantes que já acompanhamos por aqui.
Só tem um detalhe: todas essas andanças são feitas em carros dirigidos por motoristas, helicópteros, jatos particulares, lanchas, iates - meios que os permitem evitar o contato com o mundo lá fora, protegidos da realidade que se desenrola nas ruas da cidade agitada e desigual ao seu redor.
E isso faz toda a diferença.
Nosso passeio de hoje continua na cidade de Nova York. Aqui acompanhamos os Roy, uma família bilionária proprietária de uma empresa no ramo da mídia e do entretenimento, que abrange desde parques de diversões até canais de notícias. Logan (Brian Cox), o pai, é a autoridade suprema da empresa e da família. Como herdeiros e possíveis sucessores, seus filhos Connor (Alan Ruck), Kendall (Jeremy Strong), Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin) estão sempre envolvidos, de uma forma ou de outra, nos negócios familiares. Há também os funcionários da empresa e os agregados da família, com destaque para Tom (Matthew Macfadyen), marido de Shiv, e Greg (Nicholas Braun), um primo distante.
Enquanto moradores de uma cidade densamente povoada como Nova York, os Roy não tem exatamente como fugir da multidão. Ela está ali, por todos os lados: prédios enormes em todo o horizonte, trânsito movimentado, calçadas lotadas, engarrafamento, protestos. Em uma cidade tão grande como essa, se distanciar da vida comum acontece subindo aos céus, nos andares mais altos dos prédios onde moram e trabalham. Os Roy estão constantemente vendo a cidade de cima, alheios ao que acontece lá embaixo.
Mas, quanto mais alto se sobe, mais se desconecta da rua - e da realidade e talvez até da própria humanidade.
“O que são as pessoas? São unidades econômicas. Eu tenho 30 metros de altura. Eles são pigmeus. Mas… juntos, formam um mercado. O que é uma pessoa? Ela tem valores e objetivos. Mas ela opera em um mercado. O mercado do casamento, do trabalho, do dinheiro, o mercado das ideias e por aí vai”
Nesta última sexta, li um texto do Literary Hub que já estava há um bom tempo salvo na minha pasta de links para ler no futuro. Foi indicação em alguma newsletter, mas eu não me lembro mais qual. Ele se chama An Ode to Women Who Walk, From Virginia Woolf to Greta Gerwig, escrito e lindamente ilustrado por Lizzy Stewart. Na última frase do texto, ela diz: “Walking is the clearest way for me to participate in life, I think, and that’s the best I can do.”, ou, em uma tradução livre, algo como: Eu acho que andar é, para mim, a forma mais clara de participar da vida e isso é o melhor que eu posso fazer.
Eu não poderia concordar mais. Acho que há uma forma de se conectar com o mundo que só é possível no nível do chão, sobre a terra firme e viva que nos conecta a tantas outras pessoas vivendo ali também. Na rua, estamos entranhados com tudo que está ao nosso redor e vivemos a vida de nossas cidades como ela é: cheia de surpresas maravilhosas, mas também de uma infinidade de problemas que nós mesmos criamos - e ter consciência disso é fundamental para entendermos o lugar que ocupamos nesse todo e a proporção dos danos que podemos estar causando com nossos estilos de vida.
O que, no caso dos Roy, é um dano considerável.
Nessa mesma linha de raciocínio, talvez passar tanto tempo nas alturas e atravessar o mundo somente dentro de bolhas protetoras tire das pessoas um pouco da possibilidade de viver a experiência humana em sua plenitude. Falta uma conexão e um pertencimento que a vida no alto da torre não tem como proporcionar. Falta uma participação na vida, no coletivo. Falta autoconsciência e responsabilização pelos próprios atos. Não é preciso ser bilionário para isso: dadas as devidas proporções, todos podemos citar pessoas que parecem ter se descolado da realidade em montanhas de dinheiro e poder que não são capazes de lhes trazer aquilo que mais querem, aquilo que o dinheiro não tem como comprar. E os Roy - principalmente os filhos, que já nasceram com essa riqueza - confirmam essa teoria: mesmo tendo absolutamente tudo, algo de muito primordial sempre lhes falta.
Em comparação ao tamanho da andança que fazem em seus carros e helicópteros, vemos nossos personagens andando muito pouco pelas ruas. Sua conexão com o entorno é sempre limitada, mediada e selecionada. A rua é um lugar de passagens rápidas quando necessário e de experiências exóticas que eles não podem ter em nenhum outro lugar.
Ainda assim, é na rua e no anonimato da multidão que vão buscar refúgio, clareza e estratégia quando precisam. Os vemos caminhando sempre que algo crítico está acontecendo ou para acontecer. Nesses episódios da quarta temporada, isso já aconteceu algumas vezes. Talvez porque agora, no caminho de um desfecho, a situação esteja mais complicada do que jamais esteve e, em algum nível, entendem que é só fora da sua bolha protetora que poderão encontrar o que precisam naquele momento. Logan larga a festa de aniversário no alto de seu apartamento na 5ª avenida e sai para caminhar no Central Park. Connor, em um momento de crise, tristeza e solidão, só quer ir até um bar de “pessoas comuns”.
Mas mais do que andar, é preciso se envolver com a cidade à sua volta. Ocupá-la e se deixar ser ocupado por ela, vivê-la em toda o seu caos e complexidade.
O dinheiro compra sim a felicidade - ou melhor, os meios que tornam a nossa vida mais confortável, segura e tranquila -, mas talvez ter à disposição uma quantidade tão exorbitante e ultrajante de dinheiro desde sempre crie uma apatia com o mundo ao redor que não deveria fazer parte de quem somos como pessoas. Estamos vendo os estragos que isso causa, tanto na ficção (dos clássicos como Gatsby até os inúmeros filmes e séries a la eat the rich maravilhosos que temos), quanto na realidade (alô Musk).
Me identifico com as palavras que Lizzy escreveu no artigo do LitHub, mesmo que moremos em cidades tão diferentes, com culturas e histórias tão distintas e sejamos pessoas completamente diferentes. Há algo que nos une nessa experiência terrena de viver o nosso entorno em seus altos e baixos. Talvez seja isso também que faz nos identificarmos com tantos personagens andantes que já vimos aqui e uns com os outros, com nossas similaridades e diferenças. Nos sentimos ouvidos quando lemos e vemos algo assim, como se aquela pessoa pudesse muito bem estar falando especificamente com a gente, naquilo que nos toca, emociona, incomoda e machuca mais profundamente. É o que faz até com que uma pequena identificação com os Roy aconteça: é difícil não torcer para que - pelo menos alguns - personagens encontrem o que precisam e se tornem pessoas melhores - se é que isso é possível.
É andando que buscamos respirar um pouco do caos que se instala dentro de onde estamos. É se misturando na multidão caótica que procuramos as respostas que não conseguimos encontrar onde não somos anônimos. E é no chão que nossos personagens se mostram perdidos tanto quando nós nesse mundo gigante que não sabem bem como navegar, pequenos em comparação com todas as estruturas da cidade e exatamente do mesmo tamanho - e na mesma altura - que todos os outros seres humanos que caminham ao seu redor. Talvez essa seja uma perspectiva que eles precisam ter com mais frequência. Nenhuma pessoa é capaz de ter 30 metros de altura, apesar do que Logan diz. Nenhuma. No alto ou no chão, a vida corre e passa para todos. E o que fica de nós depois que a gente vai?
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Você pode assistir Succession na HBO Max.
Links extras
- Já falei antes dos vídeos do PH Santos por aqui. Agora ele também está fazendo vídeos semanais analisando os episódios de Succession e está um melhor do que o outro.
- Os personagens ricos de hoje provam que o dinheiro não pode salvá-los, um vídeo analisando vários personagens super ricos do cinema e da tv (em inglês).
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Adorei! Eu to na segunda temporada e to amando. Seu olhar - como sempre - captou tudo com muita riqueza.
Perfeita sua análise! O subtítulo acabou me lembrando do documentário "Um lugar ao sol"(dá para assistir aqui: https://www.youtube.com/watch?v=cgGa6iwFJMo), dirigido pelo Gabriel Mascaro, e que traz uma amostra de ricos e suas coberturas, que toparam ser entrevistados, e o resultado é um belo soco no estômago.