Você já deve ter ouvido ou lido o verbo “flanar” em algum momento. Uma pesquisa rápida nos dá a definição de que flanar é: “andar ociosamente, sem rumo nem sentido certo; flanear, flainar, perambular”. A primeira vez que eu ouvi falar sobre flanar foi em alguma aula do ensino médio e a imagem que guardei na minha cabeça eram de majestosos senhores parisienses, andando por avenidas cheias de vitrines com cartolas e bengalas (mais ou menos parecido com essas imagens que aparecem quando procuramos o termo no Google). Flanar, portanto, não era algo da minha realidade. Naquela época, eu ainda não sabia que já era, há muito tempo, uma flâneuse.
A escritora norte-americana Lauren Elkin fala algo parecido no primeiro capítulo do seu livro Flâneuse: de que virou flâneur antes mesmo de saber o que significava, enquanto andava pelas ruas de Paris quando estudou lá nos anos 90. Paris certamente propicia a flânerie - o ato de flanar -, mas não é preciso ir tão longe para isso. Penso em todas as vezes que, criança, fui a pé com minha mãe até o centro da cidade simplesmente por ir. Nem sempre havia algo específico a se fazer: a magia do passeio era estar lá, andando nas ruas estreitas de um centro histórico, vendo as vitrines e o que era novidade em nossas lojas favoritas (ela tinha as suas e eu as minhas), observando as pessoas e como se vestiam, terminando o passeio sempre na mesma confeitaria, onde eu fazia sempre o mesmo pedido. Aquele era o nosso momento, e não digo só em termos de uma relação entre mãe e filha, mas também individual de cada uma. Era o seu momento de se conectar consigo mesma e o meu momento de explorar o mundo. Ela já era flâneuse, mas não sabia. Eu só iria me descobrir flâneuse depois de muitas andanças por aí. Continuamos ambas flâneuses ativíssimas.
E são por esses caminhos da flâneuse - a mulher que caminha curiosa explorando a cidade - que seguiremos. Nosso passeio de hoje é também por Paris, mas alguns anos antes da Paris de Elkin, no final da década de 80. Em As 4 aventuras de Reinette e Mirabelle (4 aventures de Reinette et Mirabelle, 1987, dirigido por Éric Rohmer) nossas personagens também são estudantes universitárias e gosto de pensar que a Paris que vejo na tela não é tão diferente daquela da qual Elkin fez suas andanças descritas no primeiro capítulo de seu livro.
São também por esses ruas de Paris que surgiu a concepção moderna do que é flanar e os seus flâneurs (lembrem da imagem dos senhores de cartola da minha aula no ensino médio). Walter Benjamin chamou o flâneur de uma “espécie de botânico do asfalto”, uma figura que ganhou proeminência com a criação das passagens na Paris do século 19. Como um intermediário entre a rua e o espaço privado, eram nas passagens, protegidos do trânsito de veículos variados das ruas estreitas, que os flâneurs puderam exercer com louvor sua flânerie: seu vagar despreocupado, explorando a cidade em seus mínimos detalhes. Com a reforma urbana de Haussmann, a flânerie se estendeu aos grandes e recém-construídos bulevares. A rua parisiense era a casa do flâneur.
A figura do flâneur do século 19 foi sempre, entretanto, um homem. E não um homem qualquer: apenas aqueles com posses suficientes poderiam se dar ao luxo de passar o dia vagando pela cidade, apenas observando a movimentação das outras pessoas ao seu redor, sem nenhum rumo ou objetivo definido. Mas mesmo as mulheres com posses pertencentes à alta sociedade, que também teriam tempo e recursos de sobra, não tinham a mesma liberdade. Elkin conta como a mulher burguesa desse período tinha várias limitações em sua movimentação: sair sozinha em público era um atentado à sua reputação e essas mulheres só podiam caminhar acompanhadas e em lugares que o decoro permitisse.
Se pensarmos que a forma desse flâneur é a única possível de vivenciar a cidade poeticamente, estamos lascadas. A maior parte das mulheres comuns sempre trabalhou e sempre esteve nas ruas, entre idas e vindas, trabalhos e crianças a cuidar, buscar e levar. Nos relacionamos com a cidade à nossa maneira e com intensidade, mesmo diante das restrições do dia-a-dia, ou dessas limitações sociais que as mulheres tiveram que driblar como podiam durante tantas décadas. Como diz Elkin:
“[…] sem dúvida, sempre houve montes de mulheres em cidades e muitas delas escrevendo sobre cidades, falando da vida, contando histórias, tirando fotos, fazendo filmes, envolvendo-se com a cidades de todas as maneiras possíveis […].
A alegria de andar pela cidade pertence igualmente a homens e mulheres. Sugerir que seria impossível existir uma versão feminina do flâneur é limitar as formas de interação das mulheres com a cidade ao modo como os homens interagem com ela. Podemos falar de restrições e costumes sociais, mas não há como negar que as mulheres estavam lá […].
Se voltarmos no túnel do tempo, veremos que sempre havia uma flâneuse passando por Baudelaire na rua.” (p. 22)
Reinette (Joëlle Miquel) e Mirabelle (Jessica Forde) vivem a cidade, mas não necessariamente seguem em andanças sem rumo nem itinerário certo, nem hora para chegar ou partir, o que talvez seria o significado mais estrito da palavra aos moldes do flâneur masculino do século 19. Pelo contrário: há momentos de esperas, atrasos, encontros marcados, lugares para se estar em um horário determinado - o tempo da vida cotidiana atravessa sua experiência, assim como para a maior parte das pessoas. Há sempre um lugar para ir ou voltar, mas isso não as impede de estarem atentas ao que acontece ao seu redor, como boas observadoras urbanas que desbravam a cidade com os pés. O que observam vira tema de reflexões e debates acalorados entre elas, às vezes ali mesmo na rua, e elas frequentemente se deixam envolver pelas situações sem pressa, nem que seja só para saciar a curiosidade de ver onde aquilo vai levar. A cidade se torna seu universo da mesma forma que o seu apartamento e elas fazem dessa Paris também uma casa - são ambas flâneuses. E flâneuses da forma que dá, assim entre uma aula e outra, um compromisso e outro. Explorar a cidade no tempo que cabe entre as obrigações da vida não nos faz menos flâneuses.
E isso não torna a experiência menos válida, menos aventuresca. O que define uma aventura na cidade e quem pode ser esse aventureiro? A resposta de praxe já está aí no gênero da palavra. Essa é uma crise que nossas personagens também atravessam:
“ - Meu pequeno problema pessoal é que, na vida, hoje em dia, não vejo acontecer nada. Na nossa vidinha cotidiana. Quando se sai na rua, nada acontece. Não se vê nada engraçado.
- Nada engraçado! Quando se sai, não para mais. Tudo é engraçado! Pode acontecer qualquer coisa. Quando saio de casa, vejo o sol, os pássaros. É só olhar!
- Estou falando em aventuras, naquilo que você lê nos livros. Eu queria sentir um calafrio […]”
Se o que lemos nos livros é somente a versão masculina do que seria uma aventura pela cidade, dificilmente conseguiremos nos identificar com elas. Elkin fala sobre como os grandes escritores da cidade são sempre homens, que também reforçam o trabalho um do outro, se estabelecendo como referências do que é ser um escritor-caminhante: “Como se o pênis fosse um acessório indispensável para andar” (p. 31).
Os homens da cidade com quem Reinette e Mirabelle eventualmente interagem são, inclusive, sempre um estorvo: atrapalham seus planos, não param de falar, não sabem dar direções corretas - mas sempre estão muito certos do seu conhecimento sobre a cidade.
Essas idas e vindas do cotidiano são também uma forma poética de vivenciar e ocupar a cidade. O fato de nossa experiência não ter sido elevada à condição de aventura da mesma forma que a dos homens foram não as fazem, todavia, menos aventuras. Há muito o que olhar e tudo pode acontecer, como disse Reinette. O cotidiano é também uma aventura. Ou várias aventuras que podem acontecer a cada passo, a cada encontro. Cada dia oferece uma infinidade de possibilidades. O que vemos no filme são apenas quatro aventuras do dia-a-dia de duas jovens mulheres, mas podemos pensar que existiriam muitas mais. São aventuras que poderiam acontecer em outros formatos em qualquer lugar: podemos olhar para a nossa vida real e elencar várias aventuras parecidas que aconteceram aqui e ali entre uma ida até a faculdade, um encontro com alguém ou um ônibus que perdemos. Nossa vida é cercada de coisas interessantes acontecendo o tempo todo.
E nossas aventuras nas ruas serão sempre diferentes daquelas dos homens - e que bom. Precisamos lutar ainda, infelizmente, para que possamos ter a oportunidade de vivê-las com segurança e respeito. Mas há um universo inteiro a ser desbravado por nós do nosso jeito, assim como tantas fizeram antes de nós, abrindo as trilhas dos caminhos que podemos seguir hoje. De perspectivas masculinas normativas nós já estamos cheias: queremos outras perspectivas e não só de mulheres, mas de todos que ficaram à margem da representação masculina privilegiada do que é uma cidade e uma aventura nela.
Isso me faz lembrar a famosa primeira frase de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf: “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”. São aqueles pequenos atos cotidianos que rendem grandes e pequenas histórias - ou então apenas mais um dia nessa grande aventura que é estar vivo.
“Todos os camponeses temem essa hora. Por isso dizem: ‘Amanhã será outro dia!’. E é verdade. Aconteça o que acontecer, nada impedirá que um novo dia surja.”
As citações de Elkin estão com as páginas especificadas e a referência completa do livro utilizado aqui é: Elkin, Lauren. Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022.
A referência de Benjamin é: Benjamin, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
Rohmer é um dos diretores da nouvelle vague e um dos meus favoritos de todos os tempos. Personagens andando por cidades francesas em crise existencial não faltam em seus filmes: obviamente, ainda falaremos sobre vários deles aqui.
Você pode assistir As 4 aventuras de Reinette e Mirabelle no Mubi, junto com vários outros filmes do diretor.