Andanças #40: Orgulho e esperança
Sobre lembrar - e uma história maravilhosa para você conhecer
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Orgulho e esperança (Pride, 2014, dirigido por Matthew Warchus) é incrível por si só e um filme essencial se você busca um pouco mais de cinema LGBTQIAP+ nesse mês de junho, em que celebramos nosso orgulho de sermos quem somos. Mas, quanto mais eu leio sobre a história que o inspirou, mais eu me empolgo. Minha vontade é de já contar tudo, comentar todos os detalhes e dar todos os spoilers, mas vou me conter. Hoje eu me sinto um pouco como aquelas pessoas que vão guiando grupos andantes pelas ruas mostrando coisas escondidas na cidade e contando as inúmeras histórias por trás delas, completamente animada com tudo.
Nosso passeio de hoje começa em uma livraria independente chamada Gay’s the Word, localizada no número 66 da rua Marchmont, em Bloomsbury, Londres. E já começamos assim, com tudo: a Gay’s the Word foi fundada em 1979 e é a livraria LGBTQIAP+ mais antiga do Reino Unido. Mas ela nunca foi apenas uma livraria: o local também era um dos pilares da comunidade queer, onde era possível encontrar acolhimento e informações em uma época em que isso não era assim tão fácil de achar. Além disso, foi (e continua sendo) ponto de encontro de diversos grupos, que faziam ali suas reuniões. Entre esses grupos, na década de 80, esteve o Lésbicas e Gays em Apoio aos Mineiros (LGSM na sigla em inglês).
Sim, eu sei. Como assim mineiros?
É 30 de junho de 1984. É dia da Parada pelo Orgulho Gay no centro da cidade e as ruas estão movimentadas tanto pelos que marcham, quanto por aqueles que fazem questão de demonstrar sua desaprovação nas calçadas. Enquanto isso, longe da cidade grande, diversas pequenas cidadezinhas habitadas por mineiros e suas famílias já vinham se organizando em uma grande greve contra as políticas neoliberais de Margareth Thatcher. Esses dois grupos são, a uma primeira vista, completamente diferentes e até incompatíveis. Mas as coisas não estão tão distantes quanto parecem.
Vendo como os mineiros estão sendo rechaçados pela opinião pública, Mark (Ben Schnetzer), um dos líderes da comunidade gay, tem uma ideia: arrecadar dinheiro para os mineiros e suas famílias, em suporte à greve que estão fazendo.
“- É um sinal de solidariedade. Quem odeia os mineiros? Thatcher. Quem mais? A polícia, o público, a imprensa. Soa familiar?”
De início, a ideia não é recebida com tanta animação pelos seus colegas. Vários daqueles jovens que agora moravam em Londres vinham de cidadezinhas como aquelas, lugares onde sofreram preconceitos de todas as formas e para onde nunca mais voltaram. Um pequeno grupo se forma, ainda meio cético. Mas a ideia também não é tão bem recebida pelos mineiros: os sindicatos, quando ouviam o nome do grupo nas ligações, desconversavam ou recusavam o apoio. Eles continuam tentando até que são aceitos por um pequeno vilarejo no País de Gales e, alguns dias depois, o líder local da greve, Dai (Paddy Considine), os encontra em Londres. E é nesse primeiro encontro que tem início uma amizade completamente inesperada para ambos os lados.
“O que eu quero dizer a vocês é ‘obrigado’. Se você é uma das pessoas que colocou dinheiro no balde, se você apoiou a LGSM, obrigado. Porque o que você doou é mais do que dinheiro, é amizade. Quando se está em uma batalha, contra um inimigo muito maior e mais forte que você, descobrir que se tem um amigo que nem sabia que existia, é o melhor sentimento de todos. Então, obrigado.”
O grupo de gays e lésbicas é formado por Mark, “Bromley” (George MacKay), Jeff (Freddie Fox), Jonathan (Dominic West), Gethin (Andrew Scott), Mike (Joseph Gilgun), Reggie (Chris Overton), Ray (Joshua Hill), Steph (Faye Marsay), Stella (Karina Fernandez) e Zoe (Jessica Cave), que, a convite de Dai, partem em um pequeno ônibus em uma grande andança até o vale de Dulais, no País de Gales. A viagem é feita mais de uma vez ao longo daqueles meses. Na cidade, quem os recebe são os membros do conselho, formado por Dai, Cliff (Bill Nighty), Hefina (Imelda Staunton), Siân (Jessica Gunning), Margaret (Liz White), Gwen (Menna Trussler) e Gail (Nia Gwynne), que, junto com outros jovens da cidade, também fazem visitas à Londres cheias de andanças.
O grupo descobre que tem muito mais a oferecer aos mineiros do que apenas dinheiro e doações. As informações que possuem sobre como lidar com a violência policial são essenciais para que os moradores descubram que algumas coisas feitas com eles são ilegais. Eles também tem experiência na militância, sabem que se manter motivado é fundamental para a luta, e trazem ânimo e esperança para os mineiros. A acolhida dos moradores, por sua vez, fazem os jovens de Londres refletirem também sobre a própria relação com a família e se sentirem em casa, sem que precisem fingir ser o que não são. Nem tudo são flores, é claro. Mas, ainda mais do que tudo isso, ambos os grupos tem a oferecer uns para os outros uma janela para outra vida, completamente diferente da sua - e todos só tem a ganhar com isso.
Aqueles foram anos difíceis. As políticas neoliberais ganharam força e estão aí até hoje corroendo o que sobrou de nossos direitos enquanto trabalhadores. Também foram anos em que a AIDS explodiu e ainda tiraria precocemente a vida de milhares de pessoas em todo o mundo. Essas coisas parecem muito distantes do mundo que vivemos hoje, mas não estão: apenas 40 anos nos separam. É tudo muito recente. A luta travada lá, por ambos os grupos, ainda é a mesma que travamos hoje. Avançamos muito desde então, mas o preconceito ainda continua, a violência ainda continua, a precarização continua. A gente precisa lembrar sempre que, se podemos viver nossas vidas bem hoje, amando quem amamos, é porque milhares de pessoas percorreram uma longa trajetória antes de nós. E saber que, mesmo assim, talvez esse conforto faça parte de uma bolha de privilégio que nos rodeia e que há inúmeras outras lutas que também nos incluem e afetam, seja individualmente ou socialmente. Tudo está intimamente conectado e há muito o que lutar ainda.
“- Eu cresci na Irlanda do Norte. Sei o que acontece quando as pessoas não conversam. Por isso nunca entendi o sentido de lutar pelos direitos dos gays e não pelo dos outros, entende? Ou pelo direito dos trabalhadores, mas não pelos das mulheres. Não tem lógica.
- Há uma faixa guardada na sede, com mais de 100 anos. Nós a usamos em ocasiões especiais. Vou lhe mostrar um dia. É um símbolo, como esse [apertam as mãos]. Duas mãos. O movimento dos trabalhadores deveria significar isso. Você me apoia, eu te apoio, quem quer que você seja, ou de onde quer que venha, lado a lado, de mãos dadas.
Diversos personagens que vemos na tela são baseados em pessoas reais e, ao fim do filme, sabemos um pouco do que aconteceu com elas. Nesse artigo do The Guardian, escrito por Kate Kellaway, ela se encontra com algumas delas em 2014, que contam sua perspectiva sobre os eventos e o processo de envolvimento com a produção do filme. Uma das coisas mencionadas é o medo de que aquela história morresse com eles. A ação da LGSM é lembrada pelos mineiros e também pela comunidade LGBTQIAP+ britânica como lendárias e diversos registros foram feitos e mantidos em um arquivo institucional. Mas é preciso saber que eles existem para procurá-los. Com o filme, o alcance dessa história se multiplica exponencialmente. Ele permite que o grande público a conheça, que talvez jamais saberia dela de outras formas. O cinema também pode ser registro, preservação e difusão da história - também é lembrar.
E a gente precisa lembrar do que aconteceu para poder continuar. Porque, quando falamos em direitos, nada é garantido. Por isso a rua é tão importante. A rua foi o lugar de luta de ambos os grupos dessa história, mas foi também nela que eles gritaram a plenos pulmões suas causas e não deixaram suas existências passarem despercebidas. Foi na rua que eles deram as mãos, se abraçaram e, juntos, foram mais longe do que cada grupo conseguiria ir sozinho naquele momento.
Não tem como não se arrepiar em diversos momentos do filme. Mesmo já sabendo tudo que vai acontecer, eu vibrei, ri e me emocionei como se nunca tivesse assistido. Tenho vontade de abraçar forte vários personagens. Não dá para não ficar com olhos cheios de lágrimas, mesmo vendo algumas cenas pela terceira vez. Claro, a gente sabe que é um filme e tem um roteiro e histórias fictícias feitas para isso. Mas tudo que eu li até agora sobre a história real só reforça ainda mais essas emoções. A gente sabe também que, na vida real, todo grupo tem as suas desavenças, os seu problemas, suas contradições. Mas mesmo assim. Mesmo assim. Só o fato de essa história toda ter existido um dia, de alguma forma, já é o suficiente para encher o coração. E ele enche também sabendo que ela não será esquecida, porque agora vive na memória de milhares de pessoas no mundo inteiro.
A greve dos mineiros durou um ano e foi a mais longa da história do Reino Unido. A LGSM foi a associação que mais doou dinheiro para a causa, totalizando 11 mil libras até dezembro de 1984. A Gay’s the Word permanece firme e forte no mesmo local e a LGSM se manteve ativa até 2015. Desde a sua fundação, em 1984, diversos outros grupos se formaram a partir e inspirados por ela, apoiando causas de outros grupos minoritários. O restante dos desfechos, vou deixar para você ver no filme.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Orgulho e esperança está disponível na Mubi - e com esse link você pode acessar um período de teste gratuito de 1 mês no site :)
Links extras:
- Esse artigo maravilhoso escrito por Ernest Hole, um dos fundadores da Gay’s the Word, conta um pouco de como foi o processo de abrir a livraria e como as coisas funcionavam naquela época, além de ter várias imagens antigas lindas (em inglês).
“Gay's The Word está cada vez melhor. Deve ser a livraria lésbica e gay mais antiga da Europa, depois da Prinz Eisenherz em Berlim, com provavelmente a coleção mais abrangente de livros LGBTQ do mundo […]”
- A LGSM produziu, na época dos acontecimentos, um documentário chamado All Out! Dancing in Dulais (que você pode assistir aqui) contando sobre aquele ano e as imagens são maravilhosas. Ali dá para ver as pessoas reais que são interpretadas no filme falando elas mesmas sobre o que estava sendo feito. O documentário foi uma das principais bases para o filme, reforçando ainda mais a importância dos registros.
- Os filmes de Ken Loach são excelentes para entender um pouco melhor a corrosão dos direitos dos trabalhadores no contexto britânico atual. Indico principalmente Eu, Daniel Blake (disponível na Globoplay) e Você não estava aqui (disponível no Telecine).
- Esse texto da
para a gente pensar como andam os nossos diálogos hoje.Outros passeios
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Uma amiga havia comentado do filme, adorei vc ter falado dele, deu mais vontade de assistir. E viva nosso mês 🌈