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Olá! Tivemos muita gente nova chegando por aqui nos últimos dias: sejam muito bem-vindes às nossas andanças! Normalmente as edições são enviadas entre sexta e domingo, mas o passeio da semana que passou está sendo enviado hoje, excepcionalmente, por conta de algumas questões pessoais dos últimos dias :)
Na semana passada, entrei na brincadeira das figurinhas do Instagram de postar uma foto minha de cada um dos últimos 6 anos para ver o quanto eu mudei. Achei que me espantaria mais, mas isso não aconteceu. Fisicamente, mudei menos do que eu imaginava: desde 2018 não deixo meu cabelo crescer até ficar mais longo, meu estilo de maquiagem permanece mais ou menos o mesmo, o top que uso na foto daquele ano foi usado na semana passada. Aquela que me olha da cadeira do jardim da casa dos meus pais no natal de 2018 não fazia a menor ideia de tudo que ainda viria pela frente, mas os contornos da pessoa que eu sou hoje já estavam ali naquela época: os mesmos jeitos de se apresentar, se vestir, nos gostos, nos hábitos que eu cultivava, nas decisões que eu tinha acabado de tomar, naquilo que eu estava descobrindo sobre mim mesma e que permaneceu, e naquilo que eu deixei para trás.
Fiquei pensando em como seria uma retrospectiva que avançasse mais seis anos no passado, doze anos atrás. Quem eu sou sempre esteve lá também, mas eu ainda era uma mistura muito grande daquilo que estava ao meu redor, do universo ao qual eu tinha acesso, com todas as suas possibilidades e limitações. Eu tinha 17 anos há doze anos atrás e dava os primeiros passos para o mundo fora do meu casulo. Eu ainda vivia o auge da metamorfose que me traria até aqui.
E são por essas metamorfoses dos 17 anos que passa também a nossa protagonista em Pariah (2011, dirigido por Dee Rees).
“Uma borboleta, brevemente sufocada na mucosidade de sua própria metamorfose, aprisionada pela bainha membranosa de suas próprias asas subdesenvolvidas e apertada na escuridão do estreito casulo de sua própria criação, para, pensando que a morte é inevitável, e prepara-se para morrer na absoluta solidão da casca torcida.”
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Fort Greene, uma das regiões do Brooklyn, na cidade de Nova York. Aqui acompanhamos as andanças de Alike (Adepero Oduye), ou Lee, como também é chamada. Enquanto uma adolescente de 17 anos, o mundo de Lee ainda gira bastante em torno da vida escolar, onde é uma aluna com notas máximas, e da composição familiar tradicional de classe média de onde ela vem.
Mas a metamorfose de Lee já começou. Enquanto cresce, vai alargando os limites do mundo que a criou conforme descobre quem é. Ela já sabe algumas coisas: não dá tanta importância para as tradições e as aparências do mesmo jeito que a mãe; não é uma garota que gosta de se arrumar e pensar em bailes e namorados como a irmã; tem uma afinidade maior com seu pai, ainda que muitos silêncios envolvam essa relação; escreve poemas e recebe incentivos e orientações de sua professora no horário do almoço. Sabe também que sente atração por mulheres e vai desvendando como caminhar pelo mundo enquanto garota lésbica junto com sua amiga Laura (Pernell Walker).
Nesse processo de transformações que, muitas vezes, nem nós mesmos entendemos, é difícil traduzir a confusão que se passa aqui dentro para o lado de fora. O mundo que nos criou e o que queremos adentrar muitas vezes colidem, atritam. Como explicar que somos diferentes daquilo que esperavam que fossemos - e que isso não é uma coisa ruim? Lee não sabe muito bem como fazer isso e sustenta uma vida dupla: se veste de uma maneira que agrade a mãe em casa e troca para roupas mais largas e mais masculinas no caminho. Enquanto tenta fazer o malabarismo das identidades que moram todas ao mesmo tempo dentro dela, segue nas andanças com Laura pelo clube de strip do bairro e encontros arranjados, mas ela também não parece se encaixar muito bem nesse lugar. Um caminho do meio lhe surge quando sua mãe a obriga a ir e voltar da escola com a filha de uma amiga, Bina (Aasha Davis).
“Uma rachadura aparece, uma luz fina, irregular, que une o mundo interno com o externo, uma borboleta, brevemente paralisada pela iminência da morte, descobre que a vida é possível.”
Estamos todos mudando o tempo inteiro e tentando desvendar quem somos conforme as coisas acontecem conosco - nossa metamorfose nunca está totalmente completa e nunca somos apenas uma coisa só. Eu posso até ter entendido como prefiro que minha aparência externa seja durante esses últimos seis anos, mas fui muitas versões diferentes de mim mesma durante esse tempo - versões que nem sempre aparecem do lado de fora. E continuo descobrindo novas camadas dessa complexidade que é ser humano em um mundo que também se transforma o tempo todo. Talvez nosso sofrimento venha de esperar que as pessoas permaneçam sempre as mesmas que um dia conhecemos. Ou então, que elas serão aquilo que esperamos delas, a projeção do que achamos que elas fossem, a materialização das nossas crenças. É duro ver a homofobia escancarada nas ruas por onde Lee anda, assim como dentro da sua família e nas outras. Mas é bonito também ver como a percepção das pessoas pode mudar conforme se abrem para outras possibilidades de viver no mundo. Como as pessoas que amamos podem até não entender muito bem aquela pessoa que descobrimos que somos e os caminhos que escolhemos para nós, mas estão - e sempre estarão ali - conosco.
Além de mostrar a trajetória de auto descoberta de nossa protagonista, o filme também localiza as próprias buscas das pessoas com quem ela interage. Isso nos ajuda a entender porque elas reagem da forma que reagem, e o tamanho da dor que sentem - e que causam - parece proporcional ao quanto elas resistem a deixar que seu mundo se abale. Ainda que isso também aconteça em certa medida com seu pai, são as relações entre as mulheres que aparecem em destaque aqui: mulheres que fazem parte de uma comunidade negra, que enfrentam condições materiais de vida variadas, de diferentes gerações e crenças. Elas também estão tentando descobrir a totalidade de quem são e por quais caminhos seguirão dali em diante.
O filme é muito bonito, delicado e é difícil não se emocionar com o mergulho de Lee dentro das identidades que coexistem dentro dela nesse período de transição, assim como com as suas tentativas e descobertas do amor com outras mulheres. A maneira como se veste é só uma camada externa daquilo que ela está buscando em si mesma - a real metamorfose ainda está acontecendo dentro, transbordando para as linhas dos poemas que escreve em seu caderno. Como uma borboleta que passou pelas mudanças dentro do casulo, ela reemerge outra conforme essa nova luz adentra em quem ela é, em quem ela sempre foi. É a mesma e não é. As mesmas fendas que permitem que luz entre também exalam o amor que ela sabe que pode dar e o desejo de ir mais fundo e mais longe. Ela também não sabe o que vem pela frente, mas segue pelas andanças de sua vida pelos caminhos que escolheu seguir. Muitas outras metamorfoses ainda virão, como elas sempre vem, e elas nunca serão fáceis. Mas agora ela está ali, completamente aberta, escolhendo explorar o desconhecido com suas novas asas.
Heartbreak opens onto the sunrise
For even breaking is opening
And I am broken
I’m open
Broken to the new light without pushing in
Open to the possibilities within, pushing out
See the love shine in through my cracks?
See the light shine out through me?
I am broken
I am open
I am broken open
See the love light shining through me
Shining through my cracks
Through the gaps
My spirit takes journey
My spirit takes flight
Could not have risen otherwise
And I am not running
I’m choosing
Running is not a choice from the breaking
Breaking is freeing
Broken is freedom
I am not broken
I’m free.”
Cada vez que eu penso ou leio algo sobre esse filme, vejo uma nova possibilidade de conversa, porque ele une de uma maneira muito incrível todos os aspectos do que é crescer, ao mesmo tempo que debate raça, gênero, sexualidade, classe, religião, preconceito, poesia. Tenho certeza que há muitas possibilidades de ver esse filme e o que eu trouxe aqui hoje é só uma. Se você já assistiu ele, me conta o que achou. Como sempre, nossa conversa continua nos comentários.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Pariah infelizmente não está disponível em nenhum streaming no momento. Se ele aparecer em algum lugar, atualizo essa edição.
Links extras
- Todos os poemas citados nesta edição fazem parte do roteiro escrito pela diretora Dee Rees. Optei por trazer o último em sua versão original porque achei que um pouco dos significados se perdiam nas traduções que encontrei. Fica aí aberto à interpretação e, se você quiser verificar traduções para o português, pode vê-las aqui ou aqui.
- Este artigo do Criterion Collection (em inglês), escrito por Cassie da Costa, é muito interessante e levanta outros tópicos sobre o filme, principalmente sobre a relação entre as personagens mulheres e as questões de sexualidade, raça e classe que o filme aborda, além de tratar um pouco da relação pessoal da diretora com a história e as referências na literatura escrita por mulheres negras. Vale muito a pena a leitura.
- Pariah nasceu primeiro como um curta metragem em 2007. Não consegui encontrar ele completo na internet, mas você pode ver uma versão um pouco mais curta no Youtube (faltam os 4 minutos finais).
- Outro filme muito bom da diretora Dee Rees é Mudbound, disponível na HBO Max.
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