Semana passada conversei com uma amiga sobre como as viagens que já fizemos nos ajudaram a fazer malas mais compactas. Isso me fez pensar na minha mala de mão cinza que carrego comigo já há alguns anos e o quanto ela já andou por aí. Não só dentro de carros, ônibus ou aviões: literalmente na rua, com as rodinhas já gastas seguindo meus passos enquanto eu tento me achar em terras desconhecidas. Eu olho para ela no canto do quarto e sei que já rodou por muitos chãos diferentes, estações movimentadas, lugares (bem) famosos, já viu coisas que eu, inclusive, não vi - nas andanças que fez emprestada para outras pessoas. Ela tem uma história, e uma história que se estende para além de mim.
Em um dos ensaios de Susan Sontag sobre fotografia, um trecho em que ela fala sobre objetos me chamou atenção. Nesse trecho, ela comenta o título de um dos livros da fotógrafa estadunidense Berenice Abbott (1898-1991), chamado Changing New York. Abbott é bastante conhecida por suas fotografias da cidade de Nova York durante a década de 30, período em que edifícios como o Empire State Building, Chrysler Building e Rockefeller Center foram finalizados.
“O livro de Abbott tem um título condizente, pois, em vez de erguer um monumento ao passado, ela simplesmente documenta dez anos da crônica capacidade autodestrutiva da experiência americana, em que mesmo o passado recente é constantemente corroído, varrido, demolido, removido, substituído. Um número cada vez menor de americanos possui objetos com pátina, móveis antigos, jarras e panelas dos avós - as coisas usadas, que trazem o calor do toque humano de várias gerações […]. Em lugar disso, temos nossas fantasmagorias de papel, paisagens transitorizadas. Um museu portátil e peso pena.” (p. 83)
É justamente a algumas quadras dessa foto de Abbott, na região do Dumbo no Brooklyn/Nova York, onde acontece o nosso passeio de hoje. Lucy (Geraldine Viswanathan) é uma acumuladora compulsiva de souvenirs de relacionamentos passados. Nick (Dacre Montgomery - lembra dele de algum lugar?) está reformando um pequeno prédio antigo para transformá-lo em um hotel, mas passa por dificuldades financeiras. As coisas não andam muito bem para cada um quando os dois se encontram por acaso em A galeria dos corações partidos (The broken hearts gallery, 2020, dirigido por Natalie Krinsky).
Lucy, que trabalha com exposições de arte em galerias, está com dificuldades de se desfazer de suas coisas. Surge então a ideia de montar uma galeria dos corações partidos, no qual as pessoas são convidadas a levar para o hotel em reforma aqueles objetos que guardaram de relacionamentos amorosos que não deram certo. O hotel é então inundado de todo tipo de objetos, dos mais bizarros aos mais emocionantes - e todos com ótimas histórias. De quebra, as contribuições para a exposição também dão o gás que Nick precisava para continuar as obras do hotel e nossos dois personagens seguem nessa saga para mudar suas histórias. O filme é uma comédia romântica levinha e engraçada, mas que traz uma reflexão interessante sobre as coisas que guardamos, as coisas que deixamos para trás e as coisas que andam conosco por aí.
Lá no texto #0, falei que as cidades por onde nossos personagens andavam não eram meros cenários, mas sim participantes ativas das histórias. Isso não poderia ser mais verdade aqui. A cidade de Nova York é, em si mesma, esse delírio que concentra o velho e o novo, a história e a novidade, a construção e a destruição incessantes, como disse Susan Sontag. Uma contradição plena da modernidade em carne viva, pulsando todos os dias sob e sobre milhares de pessoas.
Como uma metrópole norte americana, a cidade também concentra fortemente os ideais e a cultura do país em que se localiza. E sabemos que o consumo, especialmente de mercadorias, é uma característica marcante deste país em específico. É a autodestruição a que se referia Sontag: o passado é facilmente varrido para fora e seus novos substitutos rapidamente adquiridos em um clique e entregues dentro das próximas 24 horas. Isso é uma verdade para objetos e, no caso de Nova Iorque, também para edifícios e bairros inteiros. Nesse vai e vem constante, não são só as (muitas) coisas que ficam para trás, mas também as histórias daquilo que foi um dia.
A história contada nesse filme poderia acontecer em qualquer lugar, mas essas características de Nova York trazem um toque especial às reflexões que nossos personagens fazem sobre memória, histórias de vida, apego e desapego, lembrar e ser lembrada, o que guardar e o que esquecer. O que vemos aqui não é o que foi destruído e nem o que o substituiu, mas aquilo que ficou, aquilo que resiste. Os vestígios de um relacionamento, de uma vida anterior à nossa, de uma mudança, de um prédio abandonado, de uma vizinhança, de uma outra era, de uma cidade que já não é mais a mesma.
Vemos essa reflexão em suas conversas, mas também pelos lugares por onde passam. Sua caminhada pelas ruas do Brooklyn atrás de objetos de decoração passa pelo famoso mercado de pulgas abaixo da Manhattan Bridge, por lojas que existem na vizinhança a gerações, por inúmeros objetos deixados para trás nas calçadas durante as mudanças das pessoas e por oficinas de artesãos. Exemplos de resistência às fantasmagorias de papel citadas por Sontag - aqueles objetos descartáveis e lugares transitórios, tudo feito para não durar.
Enquanto durarem, os objetos podem sempre seguir além de nós para criar novas histórias em outras andanças. Mas o que fica, principalmente, é a memória. E a memória pode seguir viva não somente em coisas, mas no trabalho constante das inúmeras pessoas que se empenham para manter vivas artes, histórias, lugares e ofícios - que colocam suas forças em preservar, em dar continuidade.
Os objetos são símbolos do que já foi, são a materialização das nossas memórias. Tê-los à vista é uma forma de não esquecer: de guardar para nós em uma forma material, palpável e fora de nós aquilo que já fomos, que já vivemos. Não é à toa que, quando queremos esquecer algo ou alguém, nos desfazemos dos objetos que nos lembrem aquela situação ou pessoa. E guardar nem sempre significa somente celebrar o que foi: às vezes só estamos apegados a um passado que não volta e ainda não estamos prontos para deixá-lo ir. A história que cada objeto carrega nos preenche e às vezes isso é justamente o que precisamos, mas às vezes é justamente isso que nos sufoca. Há momentos em que só precisamos deixá-los tomar um rumo em outras avenidas, como fazem os vários personagens secundários do filme ao doar seus objetos para a galeria de Lucy.
O filme inteiro é uma verdadeira ode aos objetos que carregam em si uma história: aqueles que foram usados brevemente pelas pessoas que amamos e nos fazem lembrar delas, aqueles que serviram a alguém (ou vários alguéns) antes de nós, e aqueles que trazem a energia daqueles que os fizeram em um minucioso trabalho manual. Mas não são somente os objetos que trazem essas emoções.
Os lugares também são formas de nos lembrarmos, são espaços que também trazem o calor do toque humano. Também carregam uma vida ou gerações de histórias em suas paredes, em cada pedrinha de seu asfalto, o suor e a dedicação daqueles que o construíram, que o fizeram acontecer com suas próprias mãos. É, inclusive, o que nos atrai em determinadas cidades: quantas histórias são feitas naquelas ruas todos os dias? Quantas grandes e pequenas histórias já passaram por aqui? O filme também celebra essas ruas cheias de possibilidades - ruas em que encontramos não só tesouros materiais, mas também pessoas que abrirão caminhos para as histórias das nossas vidas.
Os objetos que nos cercam também são uma forma de arte e a arte “conta histórias sobre pessoas, lugares, movimentos, momentos no tempo”, como nos diz Lucy. Todos nós temos pelo menos uma coisa ao qual nos apegamos, aqueles objetos que despertam nossas memórias ou nossa imaginação, que tem um valor ínfimo no mercado capitalista das coisas, mas que são imensamente caros a nós.
Se você está em casa enquanto lê essas palavras, olhe ao seu redor: eu tenho certeza de que pelo menos uma coisa no seu campo de visão tem uma história para você. E eu tenho certeza de que alguma emoção passou por você ao olhar para ele. Gosto da ideia de pensar as coisas usadas - por nós e pelos outros - como objetos que trazem o calor do toque humano. E penso que esse calor não vem somente do toque direto de outras pessoas, mas também dos lugares onde esses objetos já estiveram, as histórias que contam. Assim como a história dos próprios lugares. A nossa história. Somos humanos. Apenas humanos. Construímos significados, criamos símbolos para nos lembrar, para não esquecer, para preservar - queremos o calor daquilo que representa o que a vida significa para nós.
Até o próximo passeio :)
Você pode assistir A galeria dos corações partidos na Amazon Prime.