Olá! Desde que a Andanças começou, as edições sempre chegaram até você entre sexta e domingo de cada semana, com pouquíssimas exceções ao longo desse um ano. Mas ultimamente esse cronograma não tem mais funcionado muito bem por aqui como antes. Então, a partir desta semana, nossos passeios acontecerão sempre nas quartas-feiras. Este ainda é um período de teste e, se alguma coisa precisar mudar de novo, avisarei por aqui :)
O centro de Curitiba é relativamente grande e cada um de seus cantos tem suas próprias particularidades. Na parte dele onde eu moro, tenho como vizinhos a Reitoria e o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. É uma região agitada. De segunda à sexta essas ruas recebem o mar de pessoas que vem e vão nas suas andanças rotineiras ou só de passagem por um destes dois prédios. O movimento se intensifica um pouco mais quando há jogo ou algum grande show no estádio do Coritiba, outro dos meus vizinhos. Nesses dias, a multidão é quem toma conta das ruas do bairro.
Mas não é só nas andanças que a movimentação é grande. Como todo o centro, essa é uma região cheia de prédios. Grandes ou pequenos, antigos ou novos, sua própria existência escancara que um número enorme de pessoas mora ao meu redor imediato. Cada uma delas desce dos seus prédios e sai para se misturar na agitação cotidiana que essas ruas tem. É difícil saber quem mora por aqui e quem está só de passagem. Há muitos que moram de passagem também - só até o contrato acabar, só até o semestre acabar. Pode ser que a gente passe anos na mesma vizinhança sem saber da existência de outras pessoas com quem compartilhamos a rua por todo esse tempo.
Mas a cidade é um lugar peculiar, onde não podemos subestimar nem a coincidência e nem o improvável. De uma forma ou de outra, estamos sempre conectados ao que acontece ao nosso redor. Somos como os fios de uma grande teia invisível que, eventualmente e de forma completamente aleatória, se juntam.
“Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita. É uma cidade superpovoada num país deserto. Uma cidade onde se erguem milhares e milhares de prédios sem nenhum critério. Ao lado de um muito alto, tem um muito baixo. Ao lado de um racionalista, tem um irracional. Ao lado de um em estilo francês, tem um sem estilo. Provavelmente essas irregularidades nos refletem perfeitamente. Irregularidades estéticas e éticas. Esses prédios, que se sucedem sem lógica, demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida… que construímos sem ter a mínima ideia de como queremos que fique.”
Nosso passeio de hoje é na vizinhança da rua Santa Fé, perto de onde ela se encontra com a movimentada Avenida 9 de Julio, no centro de Buenos Aires. Por ali, duas pessoas que moram em prédios vizinhos se cruzam na rua onde moram com uma certa frequência. A teia invisível está sempre a conectá-los sem que percebam, assim como o faz com todos nós. Ele, Martín (Javier Drolas), é um desenvolvedor de websites que trabalha de casa e mora sozinho com sua cachorrinha Susu em um apartamento cheio de pequenas coisas. Ela, Mariana (Pilar López de Ayala), é uma arquiteta que trabalha decorando vitrines de lojas e mora sozinha no apartamento onde um dia já morou e para onde acabou de voltar. Ao seu redor, uma mudança inacabada e partes de manequins.
Um acidente acontece na rua e lá estão os dois, cada um em uma ponta do mesmo infortúnio. Ele passa e para em frente à vitrine que ela acabou de organizar. Ele compra uma cadeira nova e deixa a antiga no lixo da calçada, ela passa pela rua e leva a cadeira para casa. Os dois estão inscritos na mesma academia de natação, mas ele nunca vai. Coabitam a vida urbana da mesma vizinhança, como fios que se ligam aos mesmos pontos e que se aproximam o tempo todo sem nunca se tocar realmente. Estão perto - perigosamente perto, absurdamente perto - sem fazer a menor ideia da existência um do outro.
Medianeras (2011, dirigido por Gustavo Taretto) mergulha na cabeça e no cotidiano de seus dois protagonistas, que estão tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Enquanto acompanhamos seus desencontros, vemos como cada um lida com suas próprias questões. Eles são adultos vivendo na cidade grande em um país em crise. Cada um tem seu próprio conjunto de fobias, ansiedades, expectativas frustradas, bagagens de amores despedaçados que ainda ocupam as caixas do apartamento. Solidões. Avançam por aí sem planejamento certo, assim como a cidade ao seu redor. Procuram incessantemente pelo que nunca encontraram e que esperam, um dia, achar - no meio da multidão da página do livro ou daquela que se desenrola nas ruas vistas da janela. Mas como encontrar aquilo que nem sabem o que é em meio a tantos rostos anônimos que cruzam seu caminho todos os dias? Como agarrar a oportunidade quando nem sabemos identificá-la? Como encontrar a janela certa na imensidão de pequenas janelinhas luminosas que inundam o horizonte?
“Então, me pergunto… se, mesmo sabendo quem eu procuro, não consigo achar, como vou achar quem eu procuro se nem sei como é?
Vemos também os seus pequenos prazeres, os pensamentos mais superficiais e profundos que os acometem conforme andam por aí, as maneiras que encontraram para ser quem são nas irregularidades de concreto que os cercam. Quanto mais os conhecemos, mais torcemos para que se encontrem.
Medianeras fala muito sobre o quanto aquilo que mais precisamos pode estar muito perto de nós, mas que, nesse caos da cidade grande, se perde na infinidade das distâncias modernas que levantamos com a desculpa de que elas nos deixaram mais próximos. Compramos essas justificativas porque, no fundo, tudo que queremos é estar mais próximos - dos outros, da movimentação, das possibilidades, daquilo que nos entretém e nos deixa em paz. Acho que há duas formas de ver o filme, dependendo de onde a gente foque: nos quão distantes eles estão apesar de próximos, ou no quão próximos eles estão apesar de distantes. Parece a mesma coisa, mas não é.
Lembrei do tanto de coisas aleatórias que eu já vi da janela de casa e de todos os encontros inesperados que tive nas calçadas e nos comércios da vizinhança. Talvez eu já tenha, sem querer, influenciado no dia de alguém assim como várias pessoas anônimas influenciaram no meu. Os fios se juntam, eventualmente. E talvez quanto mais conexões comuns eles tiverem, mais forte a possibilidade de um dia eles se encontrarem, mais cedo ou mais tarde. Aquela série de coincidências que aproximam sem que consigamos nos dar conta de como. O improvável. O olhar pela janela certa na hora certa, ou também o chat certo na hora certa, porque a internet também tem esse potencial de nos aproximar sim, apesar de tudo. A vida sempre dá um jeito de se esgueirar pelas barreiras materiais e invisíveis que criamos, como a planta que cresce forte e teimosa no meio do concreto.
“Todos os prédios, todos mesmo, têm um lado inútil. Não serve para nada, não dá para frente nem para o fundo. A ‘medianera’. Superfícies que nos dividem e lembram a passagem do tempo, a poluição e a sujeira da cidade. As ‘medianeras’ mostram nosso lado mais miserável. Refletem a inconstância, as rachaduras, as soluções provisórias. É a sujeira que escondemos embaixo do tapete.”
Talvez, às vezes, tudo que a gente precisa fazer é se permitir deixar a luz entrar com mais força pelas rachaduras dos nossos lados esquecidos. Limpar a sujeira que deixamos se acumular embaixo dos tapetes que nos prende a algo que não existe mais. É abrir aquela janela e deixar que a mágica aconteça.
Medianeras ainda fala de muitas outras coisas e daria para desdobrar esse filme em várias edições diferentes. A discussão da arquitetura e urbanismo que ele tem, da vida millenial nas cidades grandes, do caos emocional em que nos encontramos, da tecnologia e das relações virtuais. No momento do filme, elas ainda se resumiam à mensagens de texto de poucos caracteres digitadas nas teclas de 1 a 0 do celular e provavelmente esse seria um filme muito diferente (será?) se fosse refeito hoje - só isso já dá uma outra edição. Quem sabe ele ainda volte por aqui.
Na medianera do meu prédio, já foram abertas duas janelas. Quem sabe a nossa seja a próxima, algum dia.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Medianeras está disponível na Reserva Imovision, que é um dos canais da Amazon Prime. Se você possui uma assinatura no Prime, pode assinar um período de teste gratuito de 7 dias lá. Você também pode assistir uma versão dublada em português aqui.
Links Extras
- Esse post mapeia todas as ruas e lugares por onde Martín e Mariana passam em Buenos Aires e ainda coloca todos em um mapa se você quiser checar quando estiver de andanças por lá :)
- Mais que amigos, vizinhos: edição de hoje da
que dialoga bastante com essa edição!Uma pausa no cinema: O porteiro
Em um condomínio do Rio de Janeiro, um grande assalto acontece e o porteiro, coitado, é apontado como o principal suspeito. Durante o interrogatório na delegacia, Waldisney (Alexandre Lino) vai contar todos os eventos que aconteceram no prédio até aquele momento e a gente vai poder ver o caos que é essa dinâmica com os moradores e o quanto cada um dos apartamentos é um mundo próprio com segredos que a gente nem imagina. O porteiro (2023, dirigido por Paulo Fontenelle) veio originalmente de uma peça de teatro que conta com um monólogo montado a partir de entrevistas com diversos porteiros nordestinos que deixaram sua cidade natal em busca de oportunidades de trabalho nas cidades do Rio de Janeiro ou São Paulo. É uma comédia gostosinha pra gente rir demais dessa loucura que é ter dezenas de pessoas morando em um mesmo lugar - e a importância daqueles que conectam tudo isso com seu trabalho cheio de dedicação e cuidado. O filme estreou nos cinemas no último dia 31 de agosto e eu o assisti em uma cabine promovida pela Imagem Filmes, distribuidora do filme.
Outros passeios
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já tinha assistido há muitos anos e agora reassisti inspirada no seu texto e numa viagem a Buenos Aires que farei em breve. que delícia que foi rever! adorei as referências millenials e tech anos 2000. podem dizer que isso deixou o filme datado de certa forma, mas acho que foi no bom sentido. abraço! e obrigada pelo ótimo texto.
Eu adoro o cinema argentino, e esse foi o primeiro filme que eu vi dos hermanos. Eu tinha uns 18 anos na época, recém terminado um namoro de 3 anos, vivendo em uma cidade maior para estudar em um prédio que nunca conversei com ninguém. Chorei largada kkkkkk preciso rever esse qualquer dia desses!