Olá! Muita gente nova chegou por aqui nos últimos dias! Se esse é o seu caso, seja muito bem-vinde às nossas Andanças :)
O filme de hoje é cheio de camadas e pequenos detalhes que fazem toda diferença na interpretação da história. Foi um pouco difícil escrever essa edição sem falar um pouco mais do que acontece no filme, então fica o aviso de que esse texto pode conter alguns pequenos spoilers.
Lord, I'm five hundred miles away from home
A distância nem sempre é uma grandeza literal. O sentimento de estar perdido, de ter saído do eixo, de não conseguir alcançar aquilo que parece estar muito além de nós - todos eles envolvem alguma forma de distância. Estamos longe de onde achamos que deveríamos estar e sabemos disso. Mas como chegar lá por essas estradas tortuosas que parecem ser as únicas que se apresentam à nossa frente?
Em nossas andanças pelas ruas apinhadas, também procuramos por nós mesmos. Buscamos o caminho - não tão literal - de volta para casa.
O ano é 1961. Pelas ruas do Greenwich Village, em Nova York, um homem solitário avança com menos casacos do que deveria, um violão na mão e um gato laranja embaixo do braço. Vemos ele circulando pela cena da música folk na cidade, que logo começaria a tomar outras proporções no palco do The Gaslight Café, o mesmo lugar onde começam as andanças de nosso herói - herói? E é também aqui que começa o nosso passeio de hoje.
Inside Llewyn Davis (2013, dirigido pelos irmão Coen) nos conta a história de Llewyn (Oscar Isaac), um músico e compositor folk de Nova York, que anda pela cidade tentando fazer as coisas darem certo. Tentando. De novo e de novo. Mas a sorte não parece estar do lado do nosso protagonista e os problemas se acumulam como um bola de neve que o segue pelas ruas geladas. Poderíamos pensar que Llewyn se distancia cada vez mais conforme seu mundo se desmorona. Ele avança de sofá em sofá e conforme deixa de ser bem-vindo entre os que estão mais próximos, se movimenta na direção de lugares e pessoas mais distantes.
“- Vai dormir aqui?
- Não planejava nem jantar aqui.
- Llewyn não é um cara do Upper West Side. A gente só se vê quando…
- Quando já rodei entre todos os meus amigos no Village.
- Somos o último refúgio.”
Mas eu diria que é exatamente o contrário: quando mais longe ele vai, mais envolvido está, de alguma forma, com a tentativa de voltar para casa. De novo e de novo.
O que significa casa pode ter conotações diferentes para cada pessoa. Para alguém que teve uma infância estável e feliz, casa pode ser a construção onde crescemos e as pessoas que ali estão. Para alguém que viaja muito, casa pode ser a cidade e o país onde estão nossas raízes. Casa pode ser uma ou mais pessoas, podem ser os bichos de estimação que esperam você chegar. Para Llewyn, casa é a música e o tanto que ele acredita nela e no seu potencial de fazê-la.
Mas seu mundo está abalado. Uma perda o tirou do eixo, as portas que insistem em se fechar o cansam cada vez mais. Embora esteja lá no palco cantando, de certa forma ele está longe do que considera casa, daquilo que o faz ser mais profundamente o que é. As dores e amarguras que carrega já criaram a distância que ele não sabe mais como transpor. Como encontrar o caminho de volta se as coisas só parecem piorar?
“Estou muito cansado. Achei que só precisava de uma noite de sono, mas… É bem mais do que isso.”
Esse sentimento de estar perdido é algo muito complicado de lidar. A gente pode achar que o problema está do lado de fora, nos outros, nesse lugar, nessa cidade, mas ai vamos para longe e vemos nossos problemas seguirem conosco. Por outro lado, se distanciar também pode oferecer perspectiva e nos fazer ver nossos limites e possibilidades de outras formas. Às vezes, a dor e a amargura que carregamos conosco sempre continuarão ali e o caminho da volta envolve entender como conviver com elas. Envolve entender o que nos prende e nos confunde. Claro, um acompanhamento profissional faz toda a diferença nesse processo, mas essa não é a realidade de nosso protagonista - aqui, ele não tem outra saída a não ser achar o caminho de volta por conta própria. Resistindo, tentando. De novo e de novo.
Nada nesse processo é bonito, fácil e muito menos romântico. Llewyn acredita fortemente na sua música e na forma como acha que deve fazê-la, mas se agarrar a isso o faz passar por maus bocados. Desgasta, cansa. Ele, que já é arrogante, transborda sua amargura pra pessoas que não tem culpa de nada. É difícil defendê-lo, fácil se irritar com ele. Mas ele também apanha, literal e metaforicamente. E de tanto apanhar, de insistir, de tanto tentar, talvez em alguma medida ele também esteja mais perto agora - ou, pelo menos, mais perto do que já esteve.
Em um dado momento, Llewyn para na rua em frente ao cartaz do filme The incredible journey, que diz: “Um fantástico drama da vida real. Nada pode pará-los - apenas o instinto os guiando através de 200 milhas cheias de perigos da floresta canadense”. O filme conta a história de um gato e dois cachorros que, assim como gato laranja de nossa história, se perdem e precisam atravessar sua odisseia para então finalmente encontrar o caminho de casa. O nome do gato laranja não é a toa. O mal entendido no telefone de que Llewyn é o gato, também não.
Existe alguma parte de Llewyn que muda no caminho de ida e volta de Chicago, para onde vai por impulso em sua busca já meio desesperada. Ele vai ao extremo para apostar todas as suas fichas em algo e também se vê em situações extremas que demandam dele tomar decisões sem olhar para trás. Ele está em suas próprias 200 milhas cheias de perigos - não só na estrada, como dentro de sua própria cidade. É o instinto (meio doido, meio impulsivo) que o guia também. Ele vai longe para aprender como voltar.
No fim das contas, a gente nunca sabe o que vem pela frente. E se continuar insistindo é justamente aquilo que precisamos continuar fazendo? Talvez esse mar de azar seja só parte dessa grande odisseia que estamos travando no caminho de volta para casa, seja ela o que for. Talvez a esperança de conseguir encontrar aquilo que mais buscamos é o que faz com que a gente levante todas as vezes, todos os dias. Talvez, quando menos esperamos, o caminho apareça aos nossos olhos cansados de tanto procurar.
Em uma primeira assistida, o filme pode parecer pessimista e nosso protagonista pode parecer não ter saído do lugar. A mensagem pode ser de desesperança se a gente não prestar atenção, mas os detalhes estão ali. Os pequenos sinais de que talvez, e só talvez, dessa vez seja diferente. E se a gente olhar para a história real daquelas ruas cinzentas do Greenwich Village, realmente foi: do fundo do bar, Llewyn vê um jovenzinho de cabelos enrolados subir no palco com um gaita e ninguém ali podia ter noção, naquele momento, do tamanho que aquele Bob Dylan ainda teria. A cena folk explodiria nos anos seguintes e esse Llewyn insistente provavelmente acharia o seu lugar. Seu caminho para casa.
Com Inside Llewyn Davis, encerramos nossa saga de andanças invernais. A partir de semana que vem, é a primavera que dá o ar de sua graça nos nossos passeios.
Te espero lá :)
Onde assistir
Inside Llewyn Davis entrou recentemente no catálogo da Mubi. Com esse link você pode acessar um período de teste gratuito de 1 mês no site :)
Links extras
- O personagem de Llewyn Davis é baseado no cantor de música folk Dave Van Ronk, que conta sua história no livro The Mayor of Macdougal Street. A capa do disco de Llewyn, inclusive, é diretamente inspirada no disco Inside Dave Van Ronk, de 1963. Outras conexões do filme com a vida real podem ser vistas nesse post, como o famoso The Gaslight Café (que também aparece em Mad Men e A maravilhosa Sra. Maisel) e os diversos músicos, canções e lugares reais que aparecem no filme.
- Esse post faz um levantamento super detalhado de como era a rua Macdougal nos anos 60 e localiza no mapa os locais das capas dos discos de Van Ronk e de algumas das cenas do filme. A rua também era bastante frequentada pelos escritores da geração beat. Tem muuitas fotos de como eram os lugares antigamente e de como estão hoje, muito bom para ver como algumas coisas mudaram e outras nem tanto.
- Esse é um filme que abre uma possibilidade enorme de interpretações e essa foi só uma delas. Dois vídeos (ambos em inglês) que me ajudaram a entender melhor o filme e construir esse texto foram: 1) Uma interpretação de Inside Llewyn Davis com o Mito de Sísifo e o conceito de absurdo de Albert Camus e 2) Outras duas teorias de interpretação do filme a partir do gato.
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Eu gosto muito de filmes sobre músicos desde "Cadilac Record". As aventuras e buscas de suas vidas nem sempre acabam como se espera, mas é bom ver o aspecto humano de pessoas que lidam diretamente com a arte e fazem da vida uma expressão dela.
Obrigada por compartilhar mais um que vai pra lista.
Incrível sua percepção, já está na lista pra assistir :)
"Talvez, quando menos esperamos, o caminho apareça aos nossos olhos cansados de tanto procurar."