Nosso passeio de hoje é uma grande andança que começa por uma Inglaterra vitoriana, vai até Lisboa e segue por diferentes cidades em uma viagem de navio. Mas não é exatamente o mundo do século 19 que estamos acostumados a ver por aí. Em Pobres criaturas (Poor things, 2023, dirigido por Yorgos Lanthimos), é como se estivéssemos imersos em um universo paralelo, que espelhasse o nosso, mas que tivesse uma boa dose de fantasia e de absurdo envolvida. Um mundo onde certos experimentos não só são possíveis, como dão certo.
E é nesse lugar em que é criada - em uma cirurgia que envolve o cérebro vivo de um recém-nascido, o corpo morto de sua mãe e muitas descargas elétricas - nossa protagonista Bella Baxter (Emma Stone).
Bella não é a adulta que um dia fora, apesar de estar naquele corpo. Ela também não é a criança que poderia ter sido, apesar de ter nascido daquela mente. Ela é uma coisa totalmente nova: uma criatura. E assim sendo, não podemos projetar nela nossas concepções de mundo, porque vivemos uma realidade em que alguém como ela não seria possível. Bella simplesmente é: uma criatura que existe em todo o seu esplendor e vontade de viver e experimentar o mundo.
Acompanhamos o desenvolvimento de Bella e as experiências que ela vai fazendo ao longo do processo. Fiquei pensando em todas as mudanças de percepção e de pensamento que eu tive ao longo da vida, todas as coisas que um dia, de alguma forma, eu aprendi. Elas sempre envolveram dois fatores: o contato direto ou indireto com as pessoas e com os lugares. É quando a gente expande o nosso contato com o mundo que compreendemos novas partes de nós mesmos e conhecemos um pouco mais daquilo que existe para além de nós. Indireto, porque isso pode se dar também através dos livros, por exemplo, que nos transportam para outras formas de pensar, outras perspectivas e lugares distantes. Essa troca é sempre constante e está sempre se alimentando - ao descobrirmos o mundo, também transformamos um pouco dele e das pessoas com quem convivemos. E isso vai continuar acontecendo a vida inteira, em diferentes proporções.
Enquanto Bella está confinada nos limites de sua casa, é Max (Ramy Youssef) que lhe oferece a possibilidade de fazer novas perguntas e ter novas respostas. Depois que esgota todos os cantos daquele lugar, sabe que existe um mundo lá fora, um mundo que ela consegue ver do telhado. Os mapas na biblioteca lhe dizem que existe um universo ainda mais amplo além do que ela consegue ver e o exige para si. Aprende rápido, começa a se sentir segura para ousar mais, para testar os limites, para fazer experimentos com as coisas, com os outros e consigo mesma. Ela questiona, bate de frente, anseia e deseja profundamente.
A chegada de Duncan (Mark Ruffalo) transforma todas aquelas janelas em uma porta que ela pode atravessar. Uma porta para a rua, para o mundo - e ela agarra tudo, óbvio. Parte com ele para Lisboa e seu mundo se torna colorido. Bella não vê tudo, ela devora. Devora o mundo como devora os pastéis-de-belém e depois absorve tudo dentro do seu corpo. Os conhecimentos que adquire vindos de tantas situações novas por quais ela passa circulam por dentro dela e a fazem querer ainda mais. Vai fazer suas andanças sozinha e sente com os próprios pés a cidade que a fascina e que ela transforma em um grande laboratório de experiência da vida que lhe foi negada até então. Aprende ainda mais rápido ali e logo percebe o quanto consegue fazer sozinha e o quanto Duncan, que antes parecia o cavaleiro encantado que abriria e a guiaria para um outro universo, não só não é necessário, como a atrapalha e não é o suficiente.
Mas quando entramos em contato com as pessoas e os lugares, não conhecemos somente coisas legais que nos deixam maravilhados com a vida. Existe toda uma organização social que nos diz onde devemos nos encaixar, como devemos agir e como outras pessoas podem agir conosco. Muitas vezes, quando partimos de um lugar, estamos fugindo dos limites que ele nos impõe e das pessoas que nos forçam a um papel que não queremos. É ingênuo da nossa parte acreditar que existe um lugar ideal, mas às vezes a ingenuidade e o impulso é tudo que temos. Pode ser que o lugar de onde partimos fosse tão ruim, que qualquer outra coisa vale a pena. Pode ser que a gente só precise experimentar, testar por conta própria. Mas leva tempo e leva experiência para alcançar uma compreensão mais ampla das coisas.
Bella pode ser essa criatura que não vê amarras na vida, mas a maneira como esse mundo a vê já é uma outra história.
O que nós acompanhamos na tela não é só a maneira como Bella reage às coisas que acontecem com ela e como vai crescendo e se desenvolvendo linda e estranhamente conforme encontra novas pessoas, novos lugares e novas situações. Vemos também como as outras pessoas a tratam e encontramos os sinais de alerta muito antes dela, porque o filme até pode ser uma grande fantasia muito louca, mas tem algumas coisas nele que são bem parte da nossa realidade.
Quantos Duncans já tentaram fazer a gente mudar de ideia? A gente provavelmente já se questionou muito e sem motivo, principalmente nessa época em que a nossa compreensão própria da realidade ainda era tão nova. Pagamos para ver e nos ferramos, assim como Bella. Não dá para romantizar esse aprendizado: é nesse lugar que muitas de nós param - com o fim da vida, literal ou metafórico, pelas mãos de homens que acham que sabem como a vida deve ser. Acho que Pobres criaturas é um filme que mostra uma criatura livre aprendendo e a forma como os homens dessa sociedade a manipulam e aprisionam, como moldam a sua experiência dentro das caixas que a colocaram. E é importante notar que independente de quem a criatura seja, o raciocínio é o mesmo: esses homens manipulam e aprisionam mulheres, crianças, animais e qualquer ser que seja considerado diferente deles, qualquer ser sobre o qual eles se achem no direito de exercer poder. E vivemos em uma sociedade inteira pautada nisso.
Bella nos entrega situações divertidíssimas nos seus questionamentos ingênuos, mas ela também é altamente explorada por essa mesma ingenuidade. E explorada principalmente na ingenuidade de seu desejo sexual, algo que faz totalmente parte da experiência humana que ela está experimentando, da descoberta do seu corpo e tudo o que pode fazer com ele para o próprio prazer.
É no contato maior com uma mulher que já viveu muito mais que ela e que já não se importa com mais nada que Bella começa a ver as coisas de outra forma e a questionar o que Duncan lhe apresenta como verdade. É também Martha (Hanna Schygulla) que apresenta os livros e a filosofia para Bella e ali ela encontra uma outra janela - uma que satisfaz desejos que ela ainda nem sabia direito que tinha: a sua fome intelectual.
Já em Paris, é no bordel que Bella tem a sua primeira socialização em um ambiente feminino e onde descobre muitas coisas sobre o mundo e si mesma. É uma nova cidade, uma nova realidade, uma nova linguagem. Ela está em uma classe social que não é a sua de origem, não pode explorar o prazer como bem entende, não tem poder de ação como sempre tivera. Mas vai encontrando ali também outras coisas: uma liberdade de pensamento, a amizade e o prazer de Toinette (Suzy Bemba) e o questionamento de sua origem, além de ver em primeira mão o que essa sociedade faz não só com elas, mas também com todos os homens que vem procurá-las. Homens que veem ali o único lugar possível para ter algum poder, ou para conseguir mostrar todas as suas fragilidades. Houve todo um mundo que os criou também, que talvez tenha lhes infligido atrocidades antes que eles fossem lá cometer as suas próprias, como a relação de Godwin (Willem Defoe) com o pai.
E aí talvez a gente possa se perguntar qual sentido de criatura é exposto aqui e quem são realmente as criaturas. Se estamos o tempo todo nos criando a partir do que aprendemos, somos criaturas de nós mesmos. Mas esses lugares e essas outras pessoas também nos moldam, também somos resultado do mundo que encontramos. Somos criados e também criamos o mundo ao nosso redor. E talvez sejamos pobres criaturas enquanto ainda não temos elementos para quebrar o ciclo das maldades que nos foram feitas.
A Bella que volta para Londres está longe de ser aquela que saiu. O acúmulo de lugares e pessoas e conhecimentos lidos e vividos construiu a pessoa que ela se tornou - uma parte do que ela quis se tornar, e uma parte do que ela fez com aquilo que recebeu. O final de Bella é emocionalmente satisfatório, mas fica o questionamento se um dia ela irá se arrepender de ter também brincado de deus e criado uma nova criatura - no sentido grotesco da palavra -, assim como foi criada por Godwin e ele por seu pai. Ela ainda reproduz a maldade que aprendeu (se não para o ex-marido horroroso, pelo menos para a cabra que não tem nada a ver com isso, tadinha) e talvez leve um tempo para entender isso, para fazer diferente, para quebrar o ciclo.
Mas esse é o trabalho de uma vida inteira, que vai ter altos e baixos, alguns acertos e muitos erros pelo caminho. A criatura que Bella fez de si mesma já causou um bom rebuliço na pequena sociedade ao seu redor e ela transforma aquela casa em um lugar melhor do que aquele que ela herdou. Ela é a heroína da própria história e da história de muita gente que passa pelo filme - uma heroína completamente imperfeita, como deve ser. Cuidando de si ela acabou, sem querer, mostrando uma nova realidade para todas as pessoas com quem interagiu, uma nova possibilidade de ser no mundo.
Talvez cuidando de nossas feridas e nos curando nós conseguimos criar uma versão melhor de nós mesmos. Talvez assim a gente mude um pouco da vida ao nosso redor e crie criaturas melhores do que aquelas que fomos. E quem sabe um dia a gente deixe o mundo um lugar muito melhor do que aquele que encontramos.
Sobre toda a representação do sexo no filme as polêmicas que isso gerou, concordo 100% com essa análise excelente da Isabel Wittmann. Ela fala sobre sobre a agência de Emma Stone no processo, sobre o incômodo com o desejo feminino que ainda persiste e sobre como o olhar masculino não necessariamente acontece só porque o filme foi feito por um homem.
“O que deveria ser claro é que a política do olhar da composição de um olhar masculino busca a criação de uma imagem-objeto para o prazer visual de quem olha. A mulher, despida de agência, é feita imagem como o receptáculo passivo do desejo alheio. Uma lógica bem distante daquela apresentada por Bella, que não é uma personagem que se mostra para o prazer de quem olha. Bella provoca o estranhamento e busca tudo o que o mundo tem a oferecer para si.”
Ainda sobre isso, assisti Oppenheimer nessa semana e não me lembro de ter ficado tão incomodada com uma cena de sexo em um filme há tempos. Na verdade, toda a forma como a existência da personagem Jean Tatlock (interpretada por Florence Pugh) foi colocada me incomodou, e as cenas de sexo dela com Oppenheimer são algo que eu gostaria de desver. Não vi quase nada de discussões sobre essa representação do sexo na época de lançamento do filme no ano passado e só encontrei agora porque fui atrás. Por que é que a gente está se incomodando tanto com Bella e tão pouco com Jean?
Com toda e absoluta certeza eu não envolvi aqui todos os aspectos desse filme. Esse é um trabalho incrível de toda a equipe e Emma Stone está completamente maravilhosa - vê-la mudando ao longo do filme é uma coisa absurda. Foi lindo vê-la no palco recebendo o reconhecimento por esse trabalho. Acho que Pobres criaturas me deixou sem palavras e em choque de maneiras que eu vou levar muito tempo para digerir, senti mil coisas que eu não sei como distinguir, e sei que vou ficar com coisas que vou demorar para entender - e está tudo bem assim.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Pobres criaturas está em exibição nos cinemas brasileiros.
Links extras
- Bella nas ilustrações de Erika Lourenço e Sabrina Barbosa <3
- Pobres criaturas teve vários ensaios fotográficos lindos, mas eu gostei especialmente desse.
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muito interessante a análise que você fez de "pobres criaturas". eu gostei do filme, só me incomodou um pouco alguns recursos estéticos que o diretor usa e que, ao meu ver, pouco contribuem para a história.