Tentei ao máximo não dar spoilers nesse texto, mas se vale a recomendação, eu diria que esse é um daqueles filmes em que é melhor a gente ir sem saber quase nada a respeito. Considere e, se preferir assistir primeiro (ele acabou de entrar na Star+!), te espero aqui para quando o filme acabar :)
“- Você vivia fugindo, lembra?
- Lembro.
- Uma vez, chegou à estação de trem, mas perdeu o dinheiro e não pôde comprar a passagem. Se lembra disso? Para onde você esperava ir?
- Não sei. Londres, eu acho.”
Quem um dia veio para a cidade grande sempre partiu de algum lugar. Talvez um lugar pequeno demais, apertado demais ou sufocante demais. Doloroso demais.
Talvez, quando criança ou adolescente, você sonhou com tudo que poderia ser e fazer quando estivesse nos meio daqueles arranha-céus cintilantes. Talvez você pudesse brilhar também, de uma forma que nunca foi possível onde estava. Talvez daria para deixar para trás tudo aquilo que te fez mal junto com a paisagem que passava veloz pelas janelas. Crescemos com a expectativa de que o espaço imenso da cidade grande iria nos dar a lufada de ar que tanto precisávamos. E ele dá, muitas vezes. Mas é quando percorremos nós mesmos aqueles vários quilômetros de ruas asfaltadas todos os dias, que percebemos que as coisas não são tão simples, que elas não mudam como em um passe de mágica.
E ali, no silêncio daquelas cidades gigantes barulhentas, a gente percebe, eventualmente, o que sempre carregou por dentro.
Maybe I didn't treat you
Quite as good as I should
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Londres e também pelos subúrbios residenciais ao redor da cidade. Em Todos nós desconhecidos (All of us strangers, 2023, dirigido por Andrew Haigh), acompanhamos Adam (Andrew Scott), um escritor que mora sozinho em um pequeno apartamento em um prédio aparentemente novo, ainda com pouquíssimos moradores. Um dia, Adam nota e é notado por seu vizinho Harry (Paul Mescal). Depois de não aceitar uma das investidas de Harry, Adam volta atrás e os dois estabelecem um romance com muito afeto e cuidado. Nas suas várias conversas no apartamento, conhecemos um pouco mais da vida de cada um, o que os trouxe até ali e como se sentem nesse momento. Eles proporcionam um ao outro uma escuta atenta e carinhosa e podem se abrir de formas que, talvez, não tinham a oportunidade já há um certo tempo. Ambos vivem sozinhos e, de certa forma, sozinhos também naquele prédio impessoal e vazio, parecido com tantos outros que a gente vê por aí.
Maybe I didn't hold you
All those lonely, lonely times
A cidade grande pode ser um lugar ambíguo. O anonimato pode ser uma dádiva ou uma maldição e a gente sempre anda na corda bamba entre um e outro. É preciso uma rede de segurança, mas nem sempre a gente consegue ter tempo suficiente e sorte o suficiente pra isso. No fundo, temos medo - um medo sólido, profundo, entranhado na existência do nosso ser e que cresceu com a gente.
Temos medo do que fomos para nós mesmos e para os outros. Medo do que nós queremos ser e daquilo que seremos, o que na maioria das vezes não é a mesma coisa. Nós temos medo de sermos os únicos nos sentindo dessa forma. O único estranho no ninho cercado de pessoas muito melhor posicionadas, acostumadas, enturmadas. E nós aqui, nos sentindo sozinhos na cidade cheia de gente, todos desconhecidos.
Nós temos medo do que podemos encontrar - mas também daquilo que nós possivelmente nunca encontraremos. Mas se aquele lugar foi sempre o pote de ouro no fim do arco-íris que perseguimos nossa vida inteira, e todas as outras cidades grandes possivelmente serão a mesma coisa, para onde mais podemos ir?
Às vezes, é preciso parar de correr e fazer o caminho de volta - literal ou metaforicamente.
Little things that I should have said and done
I never took the time
Adam está no processo de escrever um livro sobre seus pais e retorna às suas memórias de infância. Descobrimos que ele é filho único e que seus pais morreram em um acidente de carro quando ele tinha apenas 12 anos. Adam remexe as lembranças, as fotos e, um dia, decide pegar um trem e ir até a sua velha casa, fora da cidade. Lá, ele dá uma volta pelas ruas e pequenas lojinhas, até que encontra seu pai (Jamie Bell), que o leva até em casa para jantarem junto com sua mãe (Claire Foy). Mas essas são as versões jovens de seus pais, como eles eram quando morreram. A gente sabe que está vendo algo que não é exatamente concreto, mas não sabemos exatamente o que é - e, honestamente, isso não importa. Um Adam adulto está ali de volta conversando com seus pais, também adultos e jovens. Eles comemoram o reencontro, dançam e tudo está de volta como era antes. Mas todos ali sabem o que aconteceu, sabem que o tempo passou.
Adam segue em suas andanças, pegando o trem sempre que pode e retornando para a casa, ora encontrando somente o pai, ora somente a mãe, e às vezes os dois juntos. Suas conversas são sobre o que aconteceu em seguida e as atualizações, mas também sobre as faltas. Adam faz perguntas que nunca teve tempo de fazer. Seus pais dão respostas que não tiveram a oportunidade de dar antes. E a gente pensa aqui em todas as palavras não ditas, em todas as ações que não aconteceram, em tudo aquilo que a gente deixa para mais tarde. E em como tudo que é dito e não dito, feito e não feito, como cada pequeno detalhe tem um efeito gigantesco em nós.
Falam bastante também sobre a sexualidade de Adam e entendemos melhor como foi sua infância e como ele se sentia naquelas pequenas ruas de um subúrbio tradicional, tão perto e tão longe de Londres.
“- Foi há muito tempo atrás.
- Eu não acho que isso importa.”
Tente retornar para algum lugar da sua infância e adolescência que você nunca mais viu e não sentir um nó na boca do estômago. Uma sensação estranha que vem mesmo quando você viveu ali tempos felizes: são tempos que não existem mais e o lugar escancara na sua mente os fantasmas do que um dia foi, do que poderia ter sido e daquilo que jamais será.
As cenas da casa de Adam foram filmadas na própria casa de infância do diretor Andrew Haigh, casa em que ele morou e de onde saiu com 8 ou 9 anos e para onde nunca mais retornou. A foto que Adam usa para procurá-la é a foto original do diretor, que ele também precisou usar para achar a casa exata onde morou. Em uma entrevista para o TimeOut ele conta que, durante as filmagens ali, desenvolveu novamente um eczema de pele que teve quando era criança. Os fantasmas estão sempre ali e pulsam para fora quando essas memórias encontram novamente o seu traço material de existência. Pode ser um choro, um riso, um ataque de pânico. Uma doença de pele adormecida que a gente nunca mais teve.
Quando falo de fantasmas, não falo apenas da memória de pessoas queridas que já se foram, mas também daquelas crianças que um dia fomos e que não somos mais. Dos sonhos que tivemos que abandonar, das imagens de nós mesmos que não cabem mais na vida de hoje. Talvez seja uma casa, que também não será mais como você se lembra. Tudo aquilo que perdemos pelas voltas incontroláveis da vida. Talvez os fantasmas sejam a sombra dos nossos traumas, na verdade. Todo tipo de pequenas e grandes coisas que ficaram marcadas em nós e a forma como guardamos esses traumas conosco, como afirma o diretor quando fala sobre o que é o filme.
Adam foi forçado a deixar o mundo como conhecia para trás por conta de um acidente que levou a vida de seus pais cedo demais. Mas vemos que Harry também teve, de certa forma, que deixar algo para trás por sentir que não pertencia à família em que nasceu, por ser diferente. Aqui, entendemos que a homossexualidade de Harry foi um fator determinante para a sua partida, mas algo parecido também acontecia com Adam, se não por seus pais, pela cidade onde morava. Adam cresceu em um período muito mais complicado para ser um homem gay - os preconceitos muito mais cristalizados, a AIDS nos noticiários encadeando ainda mais preconceitos. Harry vive um período em que andar pelas ruas não é mais um perigo constante, mas isso não torna as coisas mais fáceis de se entender aqui dentro. A solidão de ambos está ali e encontram um no outro alguém que o entende, apesar da diferença de suas experiências. Mas saber que essa identificação existe, mesmo depois das décadas passando, também é muito triste.
“- É engraçado. Tudo está melhor agora, é claro. Mas não é preciso muito para fazer você se sentir como se sentiu. De novo com a carne em pele viva.”
Quando falo de fantasmas, falo também daquilo que a gente teve que deixar para trás pra permitir que outra parte nossa vivesse. Porque perder uma parte de quem somos é doloroso mas, quando sabemos que não há outra saída a não ser escolher, optamos por aquela sem a qual a existência seria insuportável.
Carregamos também os fantasmas das versões de nós mesmos que nunca tivemos a oportunidade de viver.
Às vezes é só voltando que a gente consegue amarrar as pontas soltas. Fazer as devidas despedidas do que quer que signifique “fantasma" para você. Mas nem sempre a gente pode voltar e, mesmo quando pode, voltar não vai tirar a dor do peito. Talvez nada consiga realmente tirar a dor, não de verdade. Ela já faz parte de quem somos, do conjunto de experiências que tivemos.
A gente pode até tentar fugir dela, e a cidade grande oferece uma imensidão de possibilidades para isso. A música alta demais abafa os sons que vem de dentro, o álcool ou as drogas fazem a gente esquecer momentaneamente do que nos aflige, a sobrecarga de trabalho afasta a atenção do que não é urgente. Com quais fantasmas você anda apressado pelas avenidas agitadas? O que você vê quando vê o próprio reflexo na janela do metrô, enterrado na escuridão embaixo da terra, correndo a toda velocidade pelos bastidores da cidade luminosa que um dia você achou que resolveria todas as suas mágoas? Que preencheria todos os seus vazios?
Tell me, tell me that your sweet love hasn't died
Give me,
One more chance to keep you satisfied
O máximo que a gente pode fazer é entendê-las e transformá-las em outro estado de matéria, um que não pese tanto, que seja suportável. Cada dia um pouquinho mais. É o que Adam está tentando fazer, ao voltar para um período tão difícil de sua vida e escrever sobre seus pais. Relembrar. Perceber o quão profundamente amado ele foi, sentir esse amor pulsando dentro do seu ser. O amor cresceu junto com ele também, se expandiu. E encontrando essa força dentro de si ele pode dar amor a outra pessoa, a alguém que também precisa ser amado. Relembrar e lembrar o outro de que não é só a dor e o medo que ficam, esse amor nunca vai embora também - e de que eles precisam se agarrar a isso para continuar.
Continuaremos lembrando de como as coisas costumavam ser, daqueles que amamos e não estão mais aqui, de quem éramos e de como nos sentíamos. Mas nem tudo é ruim. Nesse emaranhado de todos nós que é a cidade, é nas lembranças que a gente se fortalece também e essa força está por todos os lados: naquele bar que permanece ali por 50 anos, nas fotos e recortes de jornal que alguém ainda se preocupa em colecionar e encher as paredes. Está em cada uma das histórias felizes desses apartamentos minúsculos que um dia você já morou enquanto tentava encontrar a si mesmo nessas malditas cidades. Está nas fotos que você ainda carrega, na textura da porta por onde um dia você entrava e saía o tempo todo. Está em cada pedra que você conseguiu levantar para seguir em frente.
Eu devo me localizar temporalmente em algum lugar entre Adam e Harry. Assistindo o filme, às vezes eu só queria abraçar Harry, e dizer para ele que vai passar, que pode não ser da forma como ele esperava, mas que é possível, espera só, você vai ver. Às vezes eu também só queria abraçar Adam e chorar. Chorar por tudo que ele passou, por tudo que lhe aconteceu quando ele ainda nem tinha idade suficiente para entender. Chorar por tudo que ele aguentou depois, por todo o mergulho que fez. Pela sua coragem de se entregar, ainda que com cautela. Segurar as mãos dos dois e velar junto por seus fantasmas, desatar os nós e deixá-los ir.
You were always on my mind
Mas talvez, bem lá no fundo, eu queria também abraçar as versões de mim mesma que vi em cada um deles. Velar meus próprios fantasmas - aqueles que eu percebi ter enquanto via suas andanças por Londres para lembrar e para esquecer. É um trabalho que nunca acaba. Mas é sempre importante lembrar que nunca estamos sozinhos, não importa o tamanho da cidade. Há sempre alguém que nos amou muito um dia, e há sempre alguém lá fora que ainda pode nos amar profundamente. Talvez tudo que precisamos fazer é nos agarrar nesse amor que pulsa no peito e com ele continuar, um dia após o outro.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Todos nós desconhecidos entrou hoje no catálogo do Star+ e ainda está em exibição em alguns cinemas. Aproveite, você não vai se arrepender.
Links extras
- Os trechos em inglês no texto são da música Always on my mind, que faz parte da trilha sonora do filme, na performance do Pet Shop Boys.
- A entrevista com o diretor Andrew Haigh que comentei no texto é muito interessante não só por contar mais sobre a relação pessoal dele com o filme, mas também os motivos que o levaram a escolher determinadas locações em Londres (em inglês).
- “O rosto do Andrew Scott já é ele um cinema” Isabella Boscov falando de Andrew Scott em outra produção nova em que ele é protagonista: a série Ripley, que eu estou ansiosíssima para assistir.
- Neste mês fez 30 anos que o Kurt Cobain faleceu e a carta que sua filha Frances escreveu para ele é lindíssima.
- Outro filme que entrou no catálogo do Star+ recentemente é The Greatest Hits. O filme também trata de temas bem complicados, como o luto e o trauma, tem bastante romance e é cheio de músicas ótimas.
- Se sentir sozinho é algo muito complicado e é sempre melhor de lidar quando temos não apenas pessoas por perto, mas também acompanhamento profissional. A
, que é psicanalista, está fazendo um conjunto de edições com respostas ótimas e didáticas para as principais perguntas que recebe sobre a psicanálise.Outros passeios
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Tenho visto todos! Demais! Obrigada
Que honra aparecer em mais uma edição tão caprichada e bonita <3 Assistir através das suas palavras é uma experiência e tanto. Obrigada, Luisa!