Atenção: Como essa série já está por aí faz um tempo, escolhi escrever esse texto com spoilers. Caso você não tenha visto, fica o aviso :)
É um gênero de filme bem conhecido e você já deve ter esbarrado com listas recheadas deles em algum momento: estar perdido aos 20 anos. São filmes com personagens cheios de esperanças, arrogâncias, idealismos e paixões, que passam por um processo formativo que os leva de um lugar a outro na trajetória da vida. Possuem finais normalmente otimistas e com uma perspectiva de que, depois de todas as transformações pelas quais passaram, agora eles estão mais prontos para o que vem adiante.
Mas os filmes sobre estar perdido aos 30 não tem a mesma doçura. Nem o mesmo tom de aventura, a mesma sensação de empatia com os personagens - pode até ser que a gente não tenha tanta paciência para eles. Eu entendo: nós realmente já não somos mais tão jovens assim e o apelo da história não é mais tão grande. Não somos mais inocentes: não podemos mais dizer que não sabíamos que é preciso tomar a responsabilidade pelas coisas que nos envolvem e por nós mesmos. Provavelmente já temos uma boa consciência do tanto de questões e traumas mal resolvidos que temos acumulados. Mas talvez a gente ainda não saiba exatamente o que fazer com isso, nem como fazer e nem para onde ir.
E os medos? E a insegurança? E as contas? E a culpa?
“Ou todo mundo se sente assim um pouquinho e não falam sobre isso, ou eu estou completamente sozinha”
Bem-vindos à Fleabag (2016-2019, criada, escrita e protagonizada por Phoebe Waller-Bridge).
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Londres, onde acompanhamos Fleabag (Phoebe Waller-Bridge), uma mulher de 32 anos tentando segurar as pontas da sua vida - e não se saindo lá muito bem. Seu negócio vai mal, sua vida amorosa também, o relacionamento com a família só piora, faz escolhas ruins e acaba causando problemas por onde passa, mesmo sem querer. Mas por baixo das camadas de proteção do sarcasmo e do humor existem questões mais profundas que mexem com ela e que vamos descobrindo e entendendo aos poucos. Fleabag está vivendo, eu diria, três processos de luto: de sua mãe, que morreu precocemente por conta de um câncer 3 anos atrás; de sua melhor amiga e sócia, recentemente, uma morte pela qual ela sente uma imensa culpa; e o luto pela vida que ela tinha antes e que não é mais possível de existir. Essas duas pessoas que se foram pareciam trazer um equilíbrio que ela não consegue mais encontrar em lugar nenhum. Esse terceiro luto envolve não só a ausência dessas pessoas, mas a obrigatoriedade de atravessar uma passagem marcante da vida sem elas. Dos 20 para os 30, de uma juventude para uma adulteza cheia de responsabilidades. Ela não consegue encontrar esse apoio em si mesma, nem em seu pai que não sabe muito bem como lidar com as filhas e nem em sua irmã fria e racional. Ela sente demais, apesar de esconder. Fala com a gente e não as pessoas ao seu redor. Foge, se isola, brinca com o que não devia, alivia comicamente o próprio sofrimento e solidão.
Em algum momento, tudo explode.
Na maioria das vezes, o que queremos é algo extremamente simples. Mas há tanta coisa no meio do caminho, tanto ruído, tantas coisas que achamos que devemos ser, que achamos que devemos parecer, coisas as quais achamos que devemos ser fiéis. Acumulamos uma bagunça e a carregamos conosco. Uma bagunça bem visível quando temos que nos mudar de um canto para outro, mas outra nem tanto: está ali no olhar meio triste ou preocupado que levamos quando andamos por aí. Fleabag anda a série inteira pelas ruas da cidade carregando esse caos interno em que se encontra. Ela caminha e chora com o rímel todo espalhado na cara, anda meio de ressaca depois de uma noite exagerada, vai embora triste e com medo por não acreditarem nela. Corre para resolver os problemas que aparecem e aqueles que ela mesma criou. Erra. E quem é que nunca se viu em uma sequência desenfreada de erros assim? De novo, e de novo e de novo. Até começar a ficar difícil demais falar sobre isso. Difícil demais pedir desculpas. Difícil demais voltar atrás. E aí a gente se fecha.
Eu gosto de pensar as duas temporadas da série como uma coisa só, duas etapas de um mesmo processo. Primeiro, Fleabag precisa lidar com a bagunça imensa dentro de si e se cuidar com amor, carinho e paciência. Ela só consegue chegar nisso quando tudo desaba. Na segunda temporada, que se passa um ano depois do fim da primeira, ela já tomou o caminho de volta e está em um processo de cura e de reorganização. Se cuidar não quer dizer que todos os problemas estão resolvidos, longe disso. Continuamos vendo aqui os flashes do passado, que aparecem mais ou menos dependendo da situação. Ela ainda se fecha, entretanto. Mas o casamento do pai que irá acontecer em breve a puxa de volta para os dramas familiares e a faz conhecer um padre (Andrew Scott) que a enxergará por trás de toda essa muralha de proteção.
O roteiro que nos foi dado na vida é extremamente engessado: estudar, trabalhar, casar, ter uma casa e filhos (de preferência nessa ordem). Daria para dizer que se espera que façamos a maior parte disso antes dos 30 e tudo antes dos 40. Os 20 se tornam então o momento de ir atrás e os 30 de consolidar e resolver o que ainda está solto. Como se tudo fosse uma imensa corrida em que a gente tem que chegar até o final com várias missões cumpridas. Só que a vida não é um video-game. Racionalmente, a gente até sabe disso, mas a cada ano que passa o peso parece ser maior. E, muitas vezes, nem importa tanto se várias outras coisas estão indo super bem: se alguma dessas “missões” ficou para trás (sem que isso tenha sido nossa escolha), a sensação é de que não conseguimos nos resolver. Que há ali uma eterna bagunça e que não fazemos a menor ideia do que fazer com ela.
A versão do roteiro de hoje também não é nada fácil, mesmo se a gente nem considerar a parte do casamento e dos filhos. Está para além de ter um emprego, conseguir pagar as próprias contas e estar bem física e mentalmente - coisas básicas que não andam lá muito fáceis de conseguir nesse momento do mundo, convenhamos. Você também precisa ter uma carreira respeitada e de sucesso que te faça realizada, ganhar bem, ter uma aparência saudável e dentro do padrão, ir para a academia ou para o pilates para fortalecer os músculos, estar constantemente estudando e adquirindo novos conhecimentos, ter hobbies legais, estar com todas as redes sociais em dia, escrever posts (e newsletters) profundas, tirar fotos ótimas com o celular da última geração. Cabelo em dia, unha em dia, pele em dia, sobrancelha em dia. Tem que usar ácido rosto e mais um monte de nome difícil que ninguém falava alguns anos atrás. Tem que ir em todos os shows internacionais que aparecerem aqui. Tem que ter os dentes brancos e alinhados, a casa limpa com móveis e plantas caras. Morar em uma cidade legal. Ir para Paris nas férias e para a Bahia no final do ano. Tem que ter um carro, ou ser cool o suficiente para justificar não ter um. Ser cool, inclusive, é a pedida. Ser cool e riquíssima então, o ideal. E conseguir o máximo disso antes dos 30 para só aprimorar depois.
Talvez a gente tenha se apegado tanto à imagem dos “30, a idade do sucesso” de Jenna que a projetamos no mundo e é ela que a gente vê toda vez que abre as redes sociais.
Me diz se tem como não se sentir perdida.
Desde o primeiro episódio, Claire (Sian Clifford), irmã de Fleabag, é apresentada a nós como o seu oposto. Ela também tem 30 e poucos anos, mas sua vida está com tudo no lugar conforme manda o roteiro: é casada, tem uma carreira de sucesso que a faz ganhar muito bem, tem uma casa bonita, se veste impecavelmente com roupas de grife, é metódica, objetiva e pragmática e, diferente de Fleabag, está no controle de tudo, tem as rédeas da própria vida em suas mãos. Mas a gente vai vendo que não é bem assim já na primeira temporada. Na segunda, quando Fleabag está mais equilibrada, Claire está completamente afogada nos sentimentos que ela também enterrou dentro de si, nas várias coisas que ela escolheu não ver e pelas quais passou por cima. Ela está explodindo também.
Há uma cena em que, depois de um dia caótico de premiação na empresa onde trabalha, Claire está em seu escritório imenso junto com Fleabag, que trabalhou com os aperitivos da festa. Claire queria que a irmã não falasse com ninguém, não aparecesse (o que obviamente não dá certo) e pode parecer que isso era um controle de danos. Mas lá no fundo, Claire não queria ser ofuscada pela irmã: ela diz a Fleabag que ela, com seu jeito engraçado e despreocupado, a faz parecer que fracassou. Enquanto Fleabag parecia estar o tempo todo perdida em comparação à irmã, Claire também se sentia perdida na mesma comparação: ela acha que a sua vida não é tão interessante, que ela não é tão facilmente sociável e impulsiva e se sente insegura tendo a irmã ao seu lado em seu ambiente de trabalho, mostrando tudo aquilo que ela não é e nunca vai ser - tudo aquilo que falta nela.
E não é só Claire. O padre também fica completamente perdido quando percebe que está se envolvendo com Fleabag e que isso bagunça todas as escolhas de vida que ele fez antes. O pai se esconde no próprio casamento. Tem a madrasta, perdida no próprio personagem sem nem se dar conta e o cunhado que não presta para nada. Fleabag pode até ser essa pessoa de 30 e poucos anos que se vê perdida em todos os aspectos da vida no início dessa história, mas quando essa poeira baixa e a gente olha com mais atenção ao redor, vê que todos estão perdidos em, pelo menos, alguma coisa em diferentes momentos da vida.
A gente se sente perdido quando se compara - com os outros, com nós mesmos, com o que já fomos ou com o que achávamos que seríamos. Se sente perdido quando acha que não conseguiu alcançar tudo, não importa o quanto já temos. Mas quem disse que dá para ser e fazer tudo (e ao mesmo tempo, ainda por cima), mentiu.
“Quero alguém que me diga o que vestir toda manhã. Quero alguém que me diga o que comer, do que gostar, odiar e ter raiva, o que escutar, qual banda gostar, do que comprar ingressos, com que fazer e não fazer piada. Quero que me digam no que acreditar. Em quem votar, quem amar e como dizer. Acho que quero alguém que me diga… como viver a minha vida, padre, porque até agora, acho que eu só errei. É por isso que as pessoas precisam de você na vida delas. Porque você diz como fazer. Você diz o que precisam fazer… e o que vão conseguir no fim. Apesar de não acreditar nas suas besteiras e saber que cientificamente nada que eu faço faz diferença no fim, eu continuo com medo. Por que ainda estou com medo?”
No último dia 27, fiz 31 anos. Entrei oficialmente nos 30 e poucos. Não sei exatamente o que sentir com relação a isso. Há um certo senso de urgência, acho: não dá mais para levar as coisas como antes, esse prazo de validade já expirou. Eu não sou mais uma jovem de 20 e poucos anos meio perdida na vida. Pode ser o retorno de saturno que já foi embora e deixou a mesa virada me dizendo: vai lá agora, arruma. Arruma do jeito que você quer viver a sua vida daqui em diante. É algo que parece ser extremamente libertador e também fonte de uma bela crise de pânico: e se eu não souber como eu quero viver a minha vida daqui em diante? Será que eu consigo me desvencilhar do que eu aprendi que eu deveria querer? Será que eu consigo me sentir digna do que eu quero, ou eu acho que não mereço por qualquer razão?
Será que eu consigo sustentar o que eu quero?
Tem uma bagunça aqui também. Uma que eu já arrasto comigo há muito tempo e que só agora, com a análise me acompanhando toda semana, estou conseguindo começar a ter uma dimensão do tamanho dela. Eu acredito que ter consciência dos próprios problemas é sempre um bom primeiro passo para que a gente possa ser melhor, mas é inevitável olhar para tudo isso e, lá no fundo, não achar que a gente fez ou está fazendo tudo errado. E talvez a gente tenha errado mesmo, faz parte. Como é falado várias vezes na primeira temporada, as pessoas comentem erros - é por isso que temos borrachas nas pontas dos lápis. A gente não sabe tudo, não tem como prever nem controlar tudo, nem sempre consegue entender e traduzir bem o que estamos sentindo. Criamos bagunças para nós, criamos bagunças para os outros, espalhamos bagunças por aí. Às vezes estamos melhor, às vezes estamos pior, e isso é algo que vai continuar a vida inteira.
Conforme as interações com o padre vão furando a muralha que Fleabag constriu tão solidamente ao seu redor, ela começa a se perder nessa fala constante conosco, do outro lado da tela. Ao mesmo tempo, ela vai percebendo o quanto as pessoas ao seu redor também estão perdidas e que ela pode ser alguém que as ajuda e que se deixa ser ajudada. Ela finalmente encontra um equilíbrio novamente e não precisa mais de nós como cúmplices, alimentando sua bagunça. A nossa presença não faz mais sentido e por isso ela se despede.
Ela retirou o imenso esparadrapo que colocou em cima de suas duas feridas abertas: a ferida ainda está ali, exposta e doendo, mas agora aberta, limpa e em processo de cicatrização. E nessa abertura, ela encontra no lugar mais inusitado o que jamais esperava encontrar. É um final dolorido, mas ela chega no fim desse ciclo do seu processo de cura e de formação. Ela vai continuar tentando, como tantos outros personagens da série e como a gente do lado de cá, que com certeza não saiu dali ileso.
I just kept hoping, I just kept hoping
The way would become clear
I spent all this time
Tryna play nice and fight my way hereSee, I've been having me a real hard time
But it feels so nice to know I'm gonna be alright
Que a gente consiga cuidar das nossas bagunças, cuidar das nossas feridas, viver o agora sem se comparar e encontrar o caminho onde quer que tenhamos nos perdido.
Até o próximo passeio :)
E essa edição tem um agradecimento à leitora Erika Madureira, que lembrou de Fleabag como uma série andante em um comentário algumas edições atrás! Você também pode sugerir filmes e séries que se encaixam no nosso tema deixando um comentário ou respondendo este e-mail <3
Um agradecimento também à pelas conversas sobre estar perdida aos 30 <3
Onde assistir
As duas temporadas de Fleabag estão disponíveis na Amazon Prime.
Links extras
- Uma lista de filmes sobre se sentir perdido ao 20 anos e outra, aos 30 anos.
- Porque nunca poderia haver uma 3ª temporada de Fleabag: uma análise ótima de como todo o padrão da série muda no dia que Fleabag passa com o padre <3 (em inglês).
- O que a raposa representa? Outra ótima análise de um elemento misterioso na interação entre Fleabag e o padre (em inglês).
- A música que toca na última cena da série (citada acima, no fim do texto) é This feeling do Alabama Shakes, que me fez lembrar o quanto eu gostava de ouvir as músicas deles anos atrás <3
- Saiu a edição #2 das críticas de filmes na Andanças, e dessa vez foi sobre o filme Tuesday - O último abraço, que estreou hoje nos cinemas.
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Amei essa edição, Lu. E é muito doido como a gente vai aprendendo que as fases da vida que a gente ainda vai viver são muitas, apesar de os 30 trazerem consigo essa ideia de um certo tipo de fim. E que, em cada uma delas, a gente pode escolher de novo, mudar tudo, deixar tudo como está, seguir adiante ou voltar, de alguma forma, atrás. Um beijo e um novo ano lindo pra você.
Suas newsletter sempre trazendo boas reflexões! Li prestes a completar 31 anos! Obrigada por isso ❤️