Nós procuramos por coisas distintas em diferentes momentos da vida. Talvez, se você é alguém bem jovem, esteja procurando uma forma de sair desse lugar, de se distanciar do passado que lhe foi dado enquanto crescia. Você ainda não teve muita escolha até aqui, ainda não pode caminhar direito com as próprias pernas, sentir o gosto das próprias decisões tomadas, do impulso e do caos que é dar conta de si mesmo no mundo. Talvez, se você é alguém que já passou dos 30, esteja procurando uma forma de se estabelecer. Você já sabe quem é, já sabe - mais ou menos - o que quer, já começou algo, já criou uma vida para você. Talvez o que você procura agora seja companhia, mais conforto e segurança. Mais condições para poder florescer tudo aquilo que você já sabe que é capaz de fazer e encontrar maneiras de proporcionar tudo isso aos outros ao seu redor. Mas talvez, se você é alguém que já caminhou um certo tempo nessa vida, talvez você já tenha feito tudo que podia e agora a vida tenha te colocado na posição de começar a olhar para trás com outros olhos. Você não sabia antes o que sabe hoje. Não havia passado pelo que passou, ainda não havia mudado como mudou. Você já sabe que não pode voltar no tempo. Mas talvez… talvez seja possível reparar o que ficou para trás.
Talvez seja possível encontrar o que se perdeu.
Nosso passeio de hoje começa na Geórgia e segue até Istambul, na Turquia, por onde nossos personagens fazem uma grande andança em Caminhos cruzados (Crossing, 2024, dirigido por Levan Akin). Lia (Mzia Arabuli) é uma professora aposentada que fez uma promessa no leito de morte da irmã para atender seu último desejo: encontrar a sobrinha e a trazer de volta para casa.
Lia vai até o último lugar onde soube que a sobrinha estava e ali, descobrimos que ela é uma mulher trans que se chama Tekla. Lia é uma mulher dura, direta e objetiva nas suas ações. É com essa dureza que ela começa a sua busca, nitidamente ainda reprovando os caminhos tomados pela sobrinha. Nesse lugar, o caminho de Lia cruza com o de Achi (Lucas Kankava), um jovem que diz saber onde Tekla está e ter um endereço dela em Istambul. Ele convence Lia a levá-lo consigo e os dois partem juntos, cruzando as fronteiras entre os países vizinhos.
O endereço leva a um lugar específico da cidade, com pequenos prédios antigos e ruas estreitas onde funcionam diversos pontos de prostituição. Enquanto procuram, o caminho dos dois se cruza com o de Evrim (Deniz Dumanli), também uma mulher trans, que trabalha em uma ONG e atua como advogada na região, ajudando as mulheres com a polícia e com os problemas legais que possam ocorrer no distrito.
Todo mundo busca alguma coisa, mesmo que a gente não tenha uma consciência tão clara disso o tempo todo. Andamos por aí com esse objetivo em mente, avançando devagar (ou aceleradamente) na direção daquilo que queremos. Dificilmente pensamos que cada pessoa que anda ao nosso redor também está envolvida em uma procura própria. Vamos deixando rastros por onde passamos, como se cada passo dado traçasse uma linha que atravessa tantas outras linhas de diversas pessoas o tempo todo.
De quantas linhas dessas se faz uma cidade? Quantos rastros se embrenham pelas calçadas abarrotadas, quantos pés desconhecidos se cruzam o tempo todo nesse e em tantos outros lugares do mundo?
Eventualmente, esbarramos com alguém e percebemos que buscamos a mesma coisa, e talvez então continuaremos essa procura juntos - às vezes, a gente só quer alguém do nosso lado mesmo, com quem compartilhar essa grande andança caótica da vida. Ou então, percebemos que podemos oferecer algum tipo de auxílio àqueles que cruzam o nosso caminho, ajudar com algo que já descobrimos e talvez, ser ajudados também na nossa própria busca. São os encontros mais inusitados, talvez, que oferecem as maiores transformações. Aqueles que nos tiram daquilo que era conhecido, confortável. Qual a probabilidade de justamente esses caminhos se cruzarem? Há sempre algo que virá disso, sempre alguma nova informação sobre nós mesmos. Algo que jamais imaginaríamos, ou algo que nunca conseguiríamos decifrar sozinhos.
“Parece que Istambul é um lugar onde as pessoas vem para desaparecer”
Istambul é uma parte essencial dessa história, talvez até mais protagonista do que Lia, Achi e Evrim. A cidade cruza o caminho deles também, revelando aos poucos seus segredos escondidos e se abrindo conforme eles se abrem. Tudo parece muito caótico no início, com o mar de gente que chega ali e que se perde facilmente na multidão tão caótica vista de longe. Para onde ir? Onde começar? Lia e Achi vão cruzando a cidade tentando entender quem são nesse lugar novo, onde se fala uma língua que eles não entendem. Essa Istambul parece realmente um lugar onde é muito fácil desaparecer. Deixar para trás qualquer que fosse o caminho que trilhamos antes e começar de novo.
Será que é possível encontrar a linha que define o caminho de alguém que já não vemos há muito tempo? Alguém que seguiu para outra direção, outro rumo, outras histórias? A cidade que andam é a mesma, mas também é completamente diferente para cada um. Um outro planeta que se apresenta igualmente sob diferentes pés. Qual a probabilidade de um reencontro repentino e aleatório?
“Você tem certeza que ela quer ser encontrada?”
Tekla foi até ali buscando alguma coisa também. E a Istambul que vemos se revelar é uma cidade de alianças inesperadas que talvez jamais aconteceriam assim em outro lugar. De famílias construídas onde a família de sangue faltou. Se de início a cidade imensa e super populosa parece ser esse grande conjunto de pessoas sozinhas, vamos percebendo que isso está bem longe de ser verdade.
Nossos três personagens se unem para procurar Tekla, mas no decorrer dessa andança vemos que cada um deles segue em uma busca própria e pessoal. Uma busca que talvez já fosse anterior ao encontro, mas que vai tomando formas e se materializando conforme convivem mais um com o outro. Foi o impulso que os uniu, afinal de contas. Aquele sim que a gente não sabe bem como explicar, aquela proposta que veio louca de repente como uma lâmpada que se acende na mente, aquela história que, quando vimos, já estava sendo contada para uma total desconhecida em uma festa qualquer.
A junção improvável dessas três pessoas, de gerações e experiências diferentes, oferece a cada uma delas uma perspectiva nova sobre a vida que elas talvez não tivessem de nenhuma outra forma. Lia vê um universo que ela desconhecia completamente e que, convivendo de perto, percebe o quão infundado era aquilo que aprendeu a pensar sobre como as coisas devem ser. Achi se envolve em um objetivo que nem era seu e encontra algo ali também, assim como Evrim. Acompanhando essa senhora que esconde um coração imenso atrás de tanta dureza, eles veem que é possível ser amado, ter alguém que procura por você, que se importa, que te acolhe como é. Que eles podem amar também e ser essa pessoa para alguém. Compreendem que podem e merecem procurar por uma vida melhor e que há um mundo inteiro para eles desbravarem e encontrarem o que procuram.
Os três percebem, no labirinto dessas ruas antigas, que apesar das feridas, da dor, dos erros do passado, dos caminhos errantes por onde seguiram até ali,
que a vida pode ser muito bonita também.
O título em inglês, Crossing, pode significar muitas coisas. É fronteira geográfica entre a Georgia e a Turquia que Lia e Achi atravessam e também a travessia de barco que eles precisam fazer para acessar o lugar do endereço de Tekla. É processo de atravessar a cidade, dos caminhos e pés que se cruzam nas ruas. Mas também representa muitas outras coisas metaforicamente. Atravessar uma burocracia que dificulta que você mesma defina quem quer ser no mundo. Atravessar as barreiras da linguagem para conseguir encontrar alguém. Atravessar um mar de preconceitos e todas as dificuldades que esse mundo insiste em colocar nos caminhos de alguns. Atravessar o passado e o que nos puxou para trás por tanto tempo. Atravessar a linha invisível do que existia antes e do que existe agora - de quem éramos e de quem somos. De quem queremos ser. Chegar no outro lado, começar mais um dia tudo outra vez.
Caminhos cruzados não romantiza nada, muito pelo contrário. Expõe as diversas dificuldades vividas pela comunidade trans turca e a mentalidade conservadora que faz a vida dessas pessoas ser tão difícil. Mas é também um filme cheio de esperança, que escolhe olhar para a riqueza que existe nas relações entre as pessoas, na generosidade que faz o dia-a-dia ser mais leve, na inocência e na alegria que ainda existem mesmo nas situações mais difíceis. Da música cantada com toda a emoção, dos momentos tão bonitos de dança onde os corpos se soltam e simplesmente são. Dessa cidade que pode ser dura, mas que também acolhe tanto.
Esse foi, de longe, um dos filmes mais bonitos que eu vi neste ano.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Caminhos cruzados estreia na Mubi nesta sexta-feira, dia 30. Já anota na agenda!
Com esse link você ganha um período gratuito de 30 dias na plataforma (e eu também!).
Links extras
- Caminhos cruzados foi um dos filmes da Mostra Competitiva Internacional do Olhar de Cinema deste ano e levou o prêmio do público de melhor filme das mostras competitivas. Eu assisti ele na sessão de estreia brasileira em junho e já falei um pouquinho das minhas primeiras impressões sobre ele na edição #84.
- Esse trailer do filme é lindo demais e dá um gostinho de como ele é <3
- Nesta entrevista (em inglês), o diretor Levan Akin fala um pouco mais sobre o processo de produção do filme e da sua relação pessoal com a Turquia (inclusive do caminho feito pelos personagens!), além das conexões deste com o seu filme anterior E então nós dançamos (2019), que é maravilhoso.
- Correr no cinema, vídeo lindo com uma montagem maravilhosa ao som de Modern love, indicação da
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Depois dessa edição primorosa, vou assistir correndo! ♥️
Também assisti esse filme no Olhar de Cinema e achei de uma delicadeza muito tocante. Um dos meus favoritos do ano.