Com a popularidade que Pobres Criaturas (sobre o qual falamos aqui) teve nas premiações e nas salas de cinema no início deste ano, Tipos de gentileza (Kinds of Kindness), o novo filme do diretor Yorgos Lanthimos já era bastante esperado há um certo tempo. O filme estreou em Cannes em maio, então talvez você já tenha ouvido falar algo a respeito dele, mas ele chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 22. Esta crítica está livre de spoilers, mas se você quiser chegar no filme sem saber absolutamente nada (o que é uma experiência bastante interessante), indico retornar para o texto depois.
Tipos de gentileza é uma antologia que apresenta três histórias distintas, com o mesmo conjunto de atores interpretando personagens completamente diferentes e sem conexão entre si. Na primeira história, Robert (Jesse Plemons) é um funcionário de uma empresa que vê as coisas desmoronarem quando nega algo a seu chefe Raymond (Willem Dafoe). Na segunda, Daniel (Jesse Plemons) é um policial cuja esposa Liz (Emma Stone) desapareceu durante um trabalho de campo no mar e, quando ela retorna, as coisas parecem meio estranhas. Já a última história traz Emily (Emma Stone) como membro de uma espécie de culto liderado por Omi (Willem Dafoe) e Aka (Hong Chau) que tem uma missão: encontrar uma jovem que, supostamente, é capaz de trazer os mortos de volta à vida.
Esse é um filme que traz os diversos elementos já bem conhecidos do cinema de Yorgos Lanthimos: a estrenheza, o body horror, o exagero e as metáforas. Mas eu achei que Tipos de gentileza se aproxima muito mais de trabalhos como A lagosta (2015), do que de outros filmes mais conhecidos, como o próprio Pobres Criaturas e A favorita - que alcançaram uma presença bastante significativa nas grandes premiações. O elemento do absurdo é bem forte aqui e o uso da ficção como uma metáfora bastante exagerada da realidade também, o que faz com que esse não seja um filme muito fácil de assistir, de entender e nem de digerir. Enquanto eu assistia, em diversos momentos eu tentava juntar as peças sem sucesso e eu não consegui dizer se gostei do filme imediatamente após sair da sessão. Ele traz umas sensações esquisitas que não dá para saber dizer bem o que são e nem porquê estão ali. Foi só depois, pensando com calma e lendo mais a respeito que eu fui absorvendo melhor o filme e foi possível ter um panorama mais amplo do que significava cada um desses elementos absurdos que eu havia visto - e com isso, também apreciar ele melhor. Tudo se encaixa, nada é por acaso e é incrível a quantidade de reflexões possíveis que a gente pode tirar dessas histórias tão inusitadas.
Há uma temática que as conecta as três histórias: em todas elas há alguém que tem o poder de controlar e alguém que está no outro lado, sendo controlado. Na primeira história, esse controle se dá em uma relação de trabalho, em que Raymond controla absolutamente todos os aspectos da vida de Robert. Na segunda, essa relação é um pouco menos óbvia e se dá no contexto da intimidade de um casamento. A terceira traz esse controle na relação do líder do culto religioso e seus seguidores, mas também vai além disso. Na minha opinião, essa história está um passo à frente das demais e é a mais complexa e também a mais triste das três.
O filme nos convida a observar as regras que nos cercam e constituem. Exagera as estruturas que a gente quase nem vê mais e que ditam a forma como vivemos. Moramos de uma determinada maneira, vestimos certas roupas, temos apetites e crenças específicas conforme esses protocolos em que nos encaixamos. Pode ser um cargo, um casamento ou uma religião, todas instituições às quais insistimos em nos apegar e usamos para que nos digam como devemos viver. Pode até ser que cheguemos a pontos de rebeldia em algum momento, questionando os fundamentos, cometendo pequenas infrações, negando o que está estabelecido e o que se espera de nós. Mas será que sabemos viver sem elas? Será que conseguimos lidar com a liberdade de fazermos nossas próprias escolhas? Será que conseguimos aceitar a mudança das coisas e das pessoas? Será que não saímos de um controle simplesmente para entrar em outro, com outra cara?
O filme estica os limites do que somos capazes de fazer para manter as coisas como estão, mesmo quando já percebemos que elas nos fazem mal. Que máscaras colocamos para manter aquilo tudo no lugar? (os pôsters do filme acenam diretamente para isso). E aí, é claro, as coisas escalam em níveis totalmente insanos em cada uma das histórias. Há uma crítica latente às estruturas que estabelecem essas relações, mas também ao quanto nós mesmos a alimentamos para sentir a segurança que nos sustentou até então - o que, eventualmente, nos leva a nosso destino.
Todo o elenco aqui está fenomenal. Principalmente Jesse Plemons, Emma Stone e Willem Dafoe, que interpretam personagens com mais tempo de tela em cada uma das histórias - é como se eles mudassem completamente e se transformassem em outras pessoas. É uma diferença que vai além do figurino, maquiagem e cenário: tem uma fisicalidade nova em cada personagem que eles interpretam, com expressões faciais que os levam para um outro lugar. É interessante perceber também pequenos detalhes inseridos no roteiro, quase como Easter Eggs para o espectador atento, como as menções ao emagrecimento do personagem de Jesse Plemons (que realmente emagreceu na vida real e foi alvo de muitas especulações e críticas quanto a isso) e os pequenos trejeitos de Bella Baxter que Emma Stone traz apenas na segunda história, em que ela interpreta a esposa que voltou diferente, o que na minha opinião não é nem um pouco sem querer.
Gostei muito mais do filme depois desses dias e de ler e ouvir interpretações e fazer as minhas próprias conexões com os detalhes que eu percebi. É daqueles filmes que dá para passar horas falando a respeito. Mas no geral, é melhor a gente ir precavido (até porque são 2h44 de filme), sabendo que pode gostar ou odiar profundamente. Ele vai dar um nó na sua cabeça dentro da sala de cinema, mas depois de alguns dias com ele em mente, pode ser que as peças irão se encaixar até dar aquele nossa, sim! ou pode ser que ele só piore. Yorgos está longe de ser um diretor unanimemente gostável e tudo bem. Se você já sabe que esse é o seu estilo ou está apenas de braços abertos para experimentar, vale muito a pena dar uma chance. O filme vai te fazer pensar em muitas coisas.
Diferente de Pobres Criaturas, em que o filme se passava dentro de cenários construídos, Tipos de gentileza acontece todo do lado de fora, por diferentes lugares da cidade de New Orleans, que por si só já acrescenta muitos elementos interessantes no filme como um todo. Se você quiser ler um texto mais elaborado, com spoilers e a minha interpretação das histórias, me avisa aqui nos comentários :)
Tipos de gentileza estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta, dia 22 de agosto. Veja o trailer aqui.
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Meus dias são cercados de muitos livros e sua resenha me atiçou enorme vontade de ir assistir esse filme. 🥰
Aqui onde moro já está há um tempo em cartaz, inclusive essa é a última semana em exibição no cinema de rua que frequento, mas ainda não fui. Tua crítica me animou a ir assistir, sobretudo pelas reflexões que o filme pode render, pelos pôsteres (!) e por New Orleans, que ainda quero conhecer um dia!