Crítica #5: A Substância
Sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes do ano
Primeiro, um ovo comum esparramado que se multiplica perfeitamente depois da injeção de uma substância desconhecida. Depois, a trajetória de uma estrela da calçada da fama de Hollywood: de sua construção até os passantes que andam sem fazer a menor ideia de quem é pessoa cujo nome estão pisando em cima. Se essa não é uma introdução que nos deixa morrendo de curiosidade com o que está por vir, eu não sei qual seria.
A substância (The Substance, 2024, dirigido por Coralie Fargeat) é um daqueles filmes em que é melhor chegar sem saber muita coisa, então não vou me prolongar demais em sua sinopse. Aqui, acompanhamos Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma estrela de Hollywood nos anos 80, que se estabeleceu em sua carreira apresentando um programa de ginástica aeróbica na televisão, algo que ela faz até hoje. Quando chega aos 50 anos, Elisabeth é “convidada” a se retirar do programa, que busca a renovação trazendo alguém mais jovem para substituí-la, o que obviamente a deixa muito abalada. No estado de vulnerabilidade em que se encontra, Elisabeth recebe um bilhete misterioso, apresentando uma substância que promete o impossível: tornar-se a versão mais perfeita de si mesma.
“Você já sonhou com uma versão melhor de si mesma? Mais jovem. Mais bela. Mais perfeita.”
Coralie Fargeat é uma diretora francesa que teve seu longa de estreia em 2017, Revenge, um filme que trata da objetificação feminina e da violência contra as mulheres. A substância é o seu segundo longa metragem e garantiu a Coralie o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes deste ano.
Aqui, Coralie ataca diretamente os padrões de beleza em nossa sociedade, mas não só isso. A substância escancara o quanto essas exigências são diametralmente opostas para homens e mulheres, o quanto o etarismo está altamente presente na nossa sociedade (e no cinema, principalmente) e a hipocrisia gigantesca daqueles que criam e fortalecem esses padrões para os seus próprios ganhos e entretenimento. Mas, como se isso tudo não bastasse, A substância ainda vai além: fala de todo esse sistema complexo e opressivo que é tecido entre indústria cinematográfica e farmacêutica, publicidade, redes de televisão, preconceitos, patriarcado, o culto incessante à imagem, padrões de beleza e as mais mirabolantes formas de tentar alcançá-los. Agentes que se isentam da culpa pelo que criam e promovem por meio das regras restritas e dogmas de que “é assim que as coisas funcionam”. A culpa é sempre direcionada para o indivíduo (e as várias postagens de instagram mostrando o antes e depois de famosas está ai só para reforçar tudo isso) e nunca para eles e para a dependência, perspectivas distorcidas de auto-imagem e manipulação emocional que geram há décadas.
O filme usa da ficção para criar uma história que exagera a nossa realidade e que nos faz pensar de início: até onde estamos dispostas a ir para alcançar um ideal de perfeição? Mas talvez o melhor seria inverter a pergunta e lançá-la de volta para o outro lado: até que ponto essa sociedade nos faz ir para continuarmos relevantes naquilo que fazemos?
Nesse sentido, Coralie é absolutamente genial na escolha do elenco principal desse filme. Demi Moore foi uma das beldades de Hollywood nos anos 80 e 90, explodindo em papéis grandes como Ghost (1990), e se tornando a atriz mais bem paga do mundo na metade dos anos 90, mas sua participação em filmes foi diminuindo de frequência dos anos 2000 em diante. A carreira de Demi foi cercada de controvérsias, com sua vida pessoal constantemente nas páginas de fofocas e inúmeras críticas ao seu corpo e procedimentos estéticos. Margaret Qualley, por outro lado, é a mais nova queridinha do momento, aparecendo em diversas produções recentes, com destaque para os dois últimos filmes de Yorgos Lanthimos. Aqui ela interpreta Sue, a jovem substituta de Elisabeth. Dennis Quaid, que interpreta o chefe de Elisabeth, Harvey, também é uma escolha perfeita: poucos anos mais velho que Demi Moore, Dennis vive no nosso imaginário como o par romântico e a figura paternal e inofensiva de vários dos seus filmes mais famosos desde os anos 80. A escolha dele para Harvey mostra o quanto, na realidade, não é preciso uma cara de estereótipo de vilão para ser um. Colocá-lo em um papel tão nojento é brilhante.
As interações que Elisabeth e Sue tem com Harvey são fenomenais. De um lado, uma Elisabeth maravilhosa sendo colocada de escanteio no trabalho de sua vida com o argumento de que sua aparência não é mais interessante para a audiência. Do outro, um Harvey com todas as suas rugas, poros abertos, dentes amarelos e sujos e más maneiras, detendo o poder de decidir o destino dela. O mesmo contraste acontece com Sue, conforme Harvey é todo sorrisos para a garota muito mais jovem do que ele. A diferença é gritante e a câmera faz questão de mostrar todas as manifestações físicas que envolvem os três.
A substância é filmado de uma forma que reforça todos esses incômodos. A câmera que dá um close grande no rosto dos atores, os cenários perturbadores e claustrofóbicos, o terror corporal, o exagero, a artificialidade e o estado extremo em que as coisas podem chegar. A fotografia faz um trabalho incrível em contrastar essa Los Angeles radiante e colorida dos corpos jovens idolatrados pelas ruas de Beverly Hills com a cidade sombria daqueles esquecidos que andam se escondendo por trás de armaduras de proteção, buscando o momento em que brilharão novamente.
Demi Moore está absolutamente fantástica. Elisabeth é um papel de muita coragem, de uma exposição física e emocional altíssima e que exige uma entrega imensa. Faltam palavras para descrever tudo que ela fez aqui, se colocando em um lugar vulnerável inúmeras vezes, com um amplo raio de manifestação de emoções do início ao fim. Essa foi uma das melhores atuações do ano para mim até agora.
Margaret Quelley também é fenomenal. Ela traz para Sue uma ferocidade que contrasta com a sua aparência inocente e inexperiente tão vangloriada pelos chefes da televisão. Ela consegue mostrar de uma forma espetacular a segurança frágil de um corpo jovem que é o tempo todo exaltado e o quanto o padrão da beleza inalcançável atinge também aquelas que são vistas como perfeitas. O padrão se alimenta da nossa constante insatisfação e insegurança, não importa a nossa idade, a firmeza da nossa pele e nem o quanto a gravidade ainda não nos atingiu.
Quando os créditos subiram, a euforia na sala de cinema era palpável. Esse é definitivamente um daqueles filmes que são incríveis de assistir na telona não só pela experiência visual, sonora e de imersão fantásticas que ele proporciona, mas também pela experiência de assisti-lo em conjunto com outras pessoas. A gente fica completamente atônito com tudo que está acontecendo. Se vê-lo em uma sala de cinema meio ocupada já causou tudo isso, eu não posso nem imaginar como deve ser vê-lo em uma sala lotada. Fazia muito tempo que eu não saía tão desorientada de uma sala de cinema e acho que esse é um dos melhores elogios que um filme pode ter.
A substância é um filme extremamente incômodo. Me contorci e retorci várias vezes na poltrona do cinema, fechando os olhos para não ver algumas cenas que me traziam angústia e exclamando em voz alta em alguns momentos em que o absurdo era tão grande que não tinha como não se expressar a respeito. Mas tudo isso de um jeito incrivelmente excelente, que só complementa e reforça a grandeza e a urgência da crítica que o filme traz: o absurdo pode até vir de elementos fictícios e metáforas exageradas, mas ele está perigosamente próximo da nossa realidade - tão próximo que, às vezes, nem o enxergamos mais.
Sair da sala escura direto para o shopping center com suas vitrines tão cintilantes quanto Sue foi como um choque de que a ficção não está tão longe da realidade. Na rua, uma mulher carregava duas sacolas aparentemente pesadas em cima de saltos altos que a obrigavam a andar bem devagar no calor escaldante dos últimos dias. Na frente de uma loja, uma manequim magérrima de pernas cruzadas e mãos na cintura com pose de top model veste o uniforme escolar azul e branco do colégio de ensino médio ali perto. Ouvi uma conversa sobre fazer progressiva nos cabelos - tudo isso nos poucos minutos de caminhada até em casa. Mais tarde, assisti um episódio de Sex and the City de 1999 em que Samantha conta às amigas que fará um procedimento estético que retira a gordura do seu quadril e o injeta nas suas bochechas, para fazê-la parecer mais jovem. Vinte e cinco anos depois, o padrão é justamente retirar a gordura das bochechas.
Enquanto isso, os homens andavam por mim aparentemente seguros, como os tantos homens comuns que ousam abordar as beldades imensas que são Elisabeth e Sue ao longo de todo o filme. Eles iam e vinham de seus trabalhos na hora do almoço, com os seus pés bem firmes no chão.
Demorou um tempo até eu me ajustar, porque a euforia com o que eu vi permaneceu comigo o dia inteiro. Esse é para mim, sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes do ano.
A substância estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta, dia 19 de setembro. Veja o trailer aqui.
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Ótima crítica! Assisti o filme há uma semana e sigo procurando mais dele por aí, tanto que vim procurar se você já tinha escrito a respeito.
É uma paulada, né? E tudo feito de uma maneira engenhosa e desmedida, nos colocando diante do sofrimento imposto às mulheres de maneira perturbadora.
Tem 3 dias que assisti e sigo pensando nele. Os minutinhos finais (com exceção da última cena mesmo), não consegui nem olhar. Acho que meu estômago já estava no limite, hahah, mas putz, que filme incrível.