
Queer é um livro de 1952 escrito por William S. Burroughs que faz parte de uma trilogia com o mesmo personagem, William Lee, alter ego do escritor beat estadunidense. Antes dele, escreveu Junky em 1949 e após, Almoço nu, em 1959. Todas as histórias acompanham Lee em sua trajetória frenética com as drogas, mescladas com as experiências do próprio escritor. Apesar da data de escrita, Queer só foi publicado nos anos 80 por conta de sua história explicitamente homossexual. Nos Estados Unidos, o primeiro estado a descriminalizar a homossexualidade foi o Illinois, em 1962 e a última lei contra a relação entre pessoas do mesmo sexo só foi abolida realmente em 2003. Na época de escrita do livro, em seu próprio país, Lee estaria completamente imerso em um mundo proibido.
Compreender este contexto ajuda a gente a ter um panorama maior dos conflitos internos que infligem nosso protagonista, nessa história que se passa nos anos 50. No filme, Lee (Daniel Craig) é um homem na faixa dos 50 anos, abertamente gay, que fixa residência na Cidade do México, onde mora em um bairro boêmio com vários outros expatriados - muitos deles homens gays como ele. Ali ele conhece Eugene (Drew Starkey), um novo rapaz na vizinhança, por quem se apaixona perdidamente à primeira vista. Os dois se envolvem e, em um dado momento, Lee convida Eugene para uma viagem à América do Sul em um busca de uma planta que, supostamente, permite a telepatia - a ayahuasca.
Queer é uma história de vícios e, de certa forma, de busca por respostas. A gente não sabe muito bem o que Lee procurava antes de o filme começar, mas imagina que ele considera que permanecer ali, no mínimo, o possibilita ser quem é em sua plenitude - mas o que fazer quando se está ali e se percebe que não sabe bem quem é? As coisas não parecer ir muito bem para ele. Como se encontrar nessa vizinhança pequena onde todos se conhecem e ele já é figurinha carimbada? As pessoas que vem, se vão tão rápido quanto vieram. O prazer instantâneo e a fossa longa que o acompanha. Os dias que se arrastam sem nenhuma informação nova, a decadência que vai entrando de fininho e se instalando enquanto corrói o que quer que fosse a esperança que o trouxe até ali. Lee espera, bebe tudo que pode, e procura.
No meio disso, surge Eugene. Um homem jovem, fresco e bem cuidado que contrasta enormemente com Lee - e o trabalho de figurino de exaltar esse contraste é esplêndido. Suas roupas são limpas e alinhadas, seu cabelo sem um fio fora do lugar. Ele é ambíguo: demonstra dar atenção e se afasta ao mesmo tempo. Lee fica obcecado. Eugene se torna um novo vício que ele quer consumir avidamente, mas isso não ofusca a relação sentimental envolvida nessa história. Eugene é um novo elemento naquela vida, uma nova janela que apresenta não apenas novos desafios a serem decifrados, mas também outras partes de Lee que ele ainda não conhecia - novas respostas, talvez.
É essa relação de vício e encanto que vai levar Lee a ir até o fundo de tudo que ele poderia procurar, só para ver que certos enigmas são indecifráveis mesmo. Ou então, talvez, que eles sejam enigmas que vivem dentro de nós e não no outro, objeto de nossa obsessão. E aí, qualquer resposta que esteja em nossa frente nunca é o suficiente, nem verdadeira, se não as buscamos em nós mesmos.
Queer é um filme lindo. Ele começa lentamente, no ritmo do flerte meio travado entre os dois personagens, e depois assume ritmos um pouco diferentes nas partes seguintes. Talvez essa mudança também simbolize o desespero: depois que Lee já tem Eugene, ele quer mais. O roteiro adaptado de Justin Kuritzkes faz um excelente trabalho em traduzir para a tela todas as emoções e a trilha de Trent Raznor e Atticus Ross mais uma vez nos envolve por completo na história.
Se em Rivais, Luca deixa a tensão sexual no ar sem que nada aconteça, aqui ele mergulha profundamente na relação física entre os dois personagens e o faz de uma das maneiras mais bonitas que eu já vi na tela. Há outros elementos nas entrelinhas aqui, no entanto: as intenções, os sentimentos, o que está por trás das armaduras construídas de cada um deles. A gente vai juntando as peças aos poucos para compreender a linha de raciocínio que as unia. É uma história para digerir com calma.
Talvez esse seja um dos filmes mais bonitos de Luca, na verdade. Bonito de uma forma melancólica. A fotografia é incrível, o trabalho com as cores e as luzes é lindíssimo e, em muitas cenas, a figura de Lee me lembrava uma pintura de Hopper - essa mescla de solidão urbana e melancolia. Há uma cena andante logo no início do filme, com uma música bem conhecida, que é linda demais, demais. As mudanças de cenário mantém a mesma preocupação com as luzes e cores, seja na cidade ou dentro dos ônibus e no meio da Amazônia. A preparação dos cenários, inclusive, é muito rica e a cena de abertura, que mostra vários objetos dos dois que são vistos ao longo de todo o filme, dá o tom do tamanho do cuidado com os detalhes.
A beleza triste da história vai se relevando aos poucos conforme a gente acompanha esse homem se agarrar àquilo que parece lhe trazer alguma resposta. A sua procura é genuína, apesar de tudo. Seus sentimentos também - e a música performada por Caetano Veloso coroa a história.
Se esse é um dos melhores trabalhos de Gaudagnino por um lado, do outro está também o seu protagonista. É incrível o que Daniel Craig faz aqui. Ele é visceral, se apresenta com uma vulnerabilidade tocante que não se costuma ver tão abertamente. Ele se joga por completo, consegue traduzir na tela todo misto de emoções de Lee de um jeito muito emocionante - todos os sentimentos e pensamentos transbordando naquilo que ele quer alcançar mas não consegue, não pode. Em vários momentos, faz a gente realmente lembrar de Burroughs não só no figurino, com o clássico sobretudo e o chapéu, mas também em sua aparência física.
Drew Starkey também está incrível aqui, com a medida certa entre entrega e frieza. A dinâmica entre eles deixa claro a aproximação de dois mundos: o de quem é jovem e acha que não precisa de ninguém; e o de quem já andou sozinho por tempo demais nessa vida. Quando Eugene dá algum passo, a performance de Craig traduz toda a espera, toda a felicidade, todo o desejo, toda a vontade de amar e ser amado acumulados, tensionados, controlados por tanto tempo. Eugene oferece algo que Lee já não sabia mais se existia - fazendo desta uma das histórias mais tristes e bonitas que chegaram aos cinemas nos últimos tempos.
Queer estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta, dia 12 de dezembro. Veja o trailer aqui.
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