#11 Andanças Especial, parte 2/4: Meu tio
A gente gosta mesmo é de pisar na grama, de cantar na rua e de fofocar na calçada
Oi! Antes de começarmos o passeio de hoje, uma palavrinha rápida:
Essa foi uma semana agitada para esta jovem newsletter. Que alegria receber tanta gente nova por aqui! Dá um calor no coração saber que o que eu escrevo do lado de cá ressoa, de alguma forma, para quem está do outro lado. Sejam muito bem vindos a essas Andanças! <3
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas, trilogias, são o tema de um diretor ou possuem vários filmes com um mesmo personagem. É o caso desse primeiro passeio especial que segue quinzenalmente até o começo de novembro. Falaremos da cidade a partir de 4 filmes do diretor Jacques Tati com o seu famoso personagem principal: Monsieur Hulot.
Há duas semanas atrás conhecemos Sr. Hulot (Jacques Tati) durante suas andanças de férias no litoral da França no início da década de 50. Nosso passeio de hoje avança para o final dessa década em Meu tio (Mon Oncle, 1958, dirigido por Jacques Tati), no qual somos apresentados à cidade onde nosso protagonista mora e a uma parte de sua família. A palavra-chave aqui é contraste: Hulot e sua irmã moram em bairros distintos que coexistem em uma cidade que começa a mudar e a se “modernizar”.
Se durante as férias de Sr. Hulot tudo era meio caótico, isso não deixa de ser verdade no bairro onde ele mora. Vemos moradores, pequenos comerciantes, feirantes, guardas locais, pessoas varrendo a rua, crianças correndo por todos os lados, cachorros soltos, um vai e vem no café local, muitos jornais, comida fresca, árvores e roupas no varal - tudo ao mesmo tempo. A imagem do bairro onde mora sua irmã, a sra. Arpel (Adrienne Servantie), é bem diferente: há asfalto por todos os lados e as casas são cinzentas, o único verde é da grama muito bem cortada e há um culto ao automóvel e a tudo que for automático - a cozinha da sra. Arpel podia muito bem ser um laboratório. Na vizinhança vemos as mesmas características: as casas são muradas e ninguém anda nas ruas, a escola tem a mesma aparência externa da fábrica e até o restaurante segue o mesmo padrão.
Pode parecer que tudo é meio exagerado e talvez seja um pouquinho, como é característico das cidades dos filmes de Tati. Há um tom de nostalgia no bairro antigo e uma certa caricatura da cidade nova que vai surgindo no outro bairro. Mas o exagero, se existe, é licença poética para explicitar a crítica. Tati brinca com os sons e as imagens para nos mostrar com mais clareza os contrastes que, se não prestarmos atenção, passam despercebidos na nossa vida e nas nossas cidades reais que mudaram tanto ao longo do tempo.
Às vezes a gente se perde no ritmo louco que essa vida capitalista nos faz ter e acabamos andando nos limites que ela nos impõe. No entanto, sempre sentimos um prazer ao usar a cidade da nossa forma e não da forma como foi planejado para que a usemos, às vezes décadas atrás e por pessoas que nem andavam nas ruas. A gente gosta de descobrir novos jeitos, de encontrar novos usos para coisas que não foram feitas, na teoria, para serem usadas daquela forma. O que a gente gosta mesmo é de pisar na grama (principalmente quando tem uma placa escrito “não pisar”).
Dentro do que nos é possível, estamos sempre tentando encontrar brechas para respirar, como fazem os operários da fábrica do sr. Arpel, conversando e relaxando quando ele não está, rebatendo o ritmo automático que tenta transformá-los em máquinas. Ali tudo tem um lugar certo, uma forma certa de ser feita, um tempo de ligar e desligar. Há um lugar para pisar, um botão para apertar, um sensor que abre e fecha alguma porta, uma flecha que indica o caminho, uma higienização opressora. É assim na fábrica, mas é assim também no bairro e na casa dos Arpel. Nesse mundo de eficiência, que opera no tempo e no ritmo da máquina visando o lucro, é preciso que as pessoas se adaptem para caber.
Mas nosso Sr. Hulot não se encaixa muito bem nesse mundo moderno e a sua presença trás um incômodo para aqueles que vivem nele em posições privilegiadas, tanto na casa da irmã quanto na fábrica onde o cunhado lhe dá um emprego. Ele escancara, sem querer, o desconforto generalizado daquele mundo. Por mais que a lógica industrial tente tomar conta, as pessoas sempre resistem como podem - é verdade no filme e é verdade para nós. A gente, que é de carne e osso, nunca vai ser máquina - e nem deveria.
A gente gosta mesmo é da comida gordurosa feita na hora, não do sanduíche plastificado que Gérard (Alain Bécourt), o sobrinho de Hulot, recebe em casa. A cozinha da sra. Arpel me lembra aquelas frutas cortadinhas em tamanhos iguais, totalmente limpas e embaladas em camadas de plástico, disponíveis por um preço superfaturado nos supermercados. Por mais cômodo que elas possam ser, não substituem a sensação de fartura e frescor que é andar por uma feira na rua, cheia de comidas e aromas por todos os lados; uma feira de produtos orgânicos, de produtos do MST. A gente gosta de pegar nas coisas, sentir a textura e o cheiro. A gente gosta mesmo é de provar, de lambuzar a mão e lamber os dedos comendo em uma mesa na calçada com um cerveja gelada, enquanto vê o caos da vida acontecendo ao nosso redor.
A gente gosta da cantoria que avança noite a dentro. Do mal-entendido que vira amizade, do café ou bar da vizinhança em que encontramos todo mundo, de cantar a plenos pulmões com desconhecidos. Eu moro perto de um campus universitário e há alguns bares na minha rua. No final da tarde, sempre tem alguém por ali tocando um saxofone. Daqui não consigo ver se a pessoa está na rua ou se é uma atração no bar, mas deve ser um pouco dos dois. Só sei que é uma delícia chegar em casa no final da tarde, abrir a janela e ouvir aquele jazz no fundo enquanto a coreografia caótica da cidade no fim do dia se desenrola na calçada. Nessa semana, a música da vez do saxofone foi da campanha do Lula, o que é uma delícia ainda maior de se ouvir nessa cidade em específico (Curitiba).
A gente gosta mesmo é de fofocar sentada na sombra, de rir descontroladamente. A gente gosta de ver aquela casa tão controlada dos Arpel sendo tomada pelas trapalhadas do Sr. Hulot. Mas ele não age sozinho: ele só desarma a pose dos outros que estão lá, que fazem a sua própria dose de trapalhadas.
Não é a toa que Gérard ama tanto o tio. Ele é uma criança, quer brincar com os outros, correr, se sujar. No auge da sua energia da infância, Gérard não quer estar no meio de tanta regra, de tanta limpeza, de tanto controle, de tanta solidão. São as crianças (e os cachorros) os que mais brincam com esse excesso de ordem ao seu redor: fazem chacota da pose dos adultos, atravessam as grades, brincam, se sujam, comem doces escondidos, fazem traquinagens e correm para não serem pegos. No fim das contas, até os Arpel acabam cedendo, mesmo que só um pouco, mostrando que também são caóticos por trás de toda aquela fachada.
A cidade que vemos em Meu tio é uma cidade menor, em que esse mundo “moderno” ainda está tentando ganhar espaço, demolindo (literalmente) o mundo do Sr. Hulot. Daqui a duas semanas, na edição #13, veremos como isso se dá em Paris em Playtime - Tempo de diversão. Na semana que vem, seguiremos nossas andanças por outras paisagens.
Te encontro lá :)
Os filmes de Tati com o Sr. Hulot costumam estar disponíveis para assistir na Mubi. No momento da escrita desse texto, entretanto, os filmes não estão mais no catálogo. Mas, se você estiver lendo esse texto em um outro tempo, vale a pena checar se eles voltaram para a plataforma :)
Ah! Se você curte desenhos da cidade, urban sketching e croquis rápidos em sketchbooks de bolso, estou fazendo no Instagram um projeto com 31 desenhos da cidade durante o mês de outubro. Vou adorar te receber nas minhas andanças cotidianas por lá também!
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