#13 Andanças Especial, parte 3/4: Playtime
As andanças viajantes, a cidade ultramoderna e o caos nosso de cada dia
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas, trilogias, são o tema de um diretor ou possuem vários filmes com um mesmo personagem. É o caso desse primeiro passeio especial que segue quinzenalmente até o começo de novembro. Falaremos da cidade a partir de 4 filmes do diretor Jacques Tati com o seu famoso personagem principal: Monsieur Hulot.
Quando essa edição chegar até você, eu estarei me preparando para ir para São Paulo. Já estou há dias entre roupas para escolher, malas por fazer e 50 mil coisas para deixar resolvido antes de sair, encaminhando o que der para os dias que ficarei fora. Talvez você esteja nessa empreitada por aí também, nessa sexta-feira tão longa e tão curta ao mesmo tempo.
E é por essas andanças viajantes que começa o nosso passeio de hoje, no aeroporto de Paris. Mas nossos personagens estão um passo na frente: já chegaram no seu destino e estão prontos para experimentar uma parte bem diferente da maior cidade da França.
Se você vem acompanhando os outros textos dessa edição especial, já conhece bem o Sr. Hulot (Jacques Tati). Esse senhor francês atrapalhado, peculiar, com um quê de ingenuidade e um ritmo próprio que diverge da loucura da vida moderna cada vez mais acelerada que se desenrola ao seu redor. Outra coisa que já percebemos é que as cidades são caóticas porque somos seres caóticos. Isso era verdade na pequena cidade litorânea durante as férias do Sr. Hulot, nos diferentes bairros da sua cidade natal, e é também verdade na região de Paris que Jacques Tati nos apresenta em Playtime - Tempo de diversão (Playtime, 1967).
Nessa parte da cidade, tudo é ultramoderno. É a região dos negócios, do mundo corporativo, das transações comerciais, é onde as inovações da indústria são expostas e vendidas, é para onde vão os turistas internacionais. Tanto para a cidade quanto para as pessoas, tudo é muito parecido, padronizado, higienizado, cinzento, controlado.
Enquanto o Sr. Hulot tenta falar com um contato de uma empresa de um lado (se perdendo por corredores de vidro e estações de trabalho), acompanhamos outra perspectiva desse lugar com Barbara (Barbara Dennek), uma jovem e sonhadora turista norte-americana que veio conhecer Paris junto com uma excursão de senhoras. Ela até tenta se deixar levar pelo o que lhe chama mais atenção, mas a velocidade daquele turismo express não funciona se alguém se desgarrar: as outras estão sempre a puxando de volta para o itinerário pré-estabelecido, controlado, cronometrado. São turistas que “se sentem em casa em qualquer lugar” - porque todos os lugares do mundo por onde passam são idênticos.
Eventualmente, os caminhos meio perdidos de Hulot e de Barbara se encontram e Playtime mostra aquilo que já aprendemos tanto em As férias do Sr. Hulot quanto em Meu tio: que a gente gosta mesmo é da cantoria, do caos que se instala onde menos esperamos, da bagunça que entra em ebulição naquelas lugares que apresentam o maior controle. A gente gosta de gente, de ver gente e se divertir junto com gente. Não há linhas retas, paredes envidraçadas, máquinas e botões que limitem o caos bonito e atrapalhado que nós somos - que são tantos seres humanos diferentes juntos em uma grande cidade.
Às vezes é preciso só um erro, um pequeno tropeço, para desmontar essa armadura de ordem que tenta ditar nossos caminhos. E aí então nós deixamos que a música nos leve pela cidade noite adentro até o sol começar a raiar nos blocos de edifícios refletores. Assim como em Meu Tio, vemos que não é somente o nosso Sr. Hulot que é um agente do caos com seu jeito meio deslocado: todos tem a sua parcela de confusão. Mas se lá ela acontecia na escala do bairro no quintal dos Arpel, aqui a confusão é na escala da grande cidade, que coloca todo mundo para dançar no restaurante chique recém-inaugurado. Esse vídeo faz uma ótima análise dessas duas cenas.
O mais interessante é ver os reflexos da “velha” Paris que surgem nos inúmeros vidros de vez em quando. Aquela Paris, que um dia já foi o auge da modernidade, que cavou à força seus boulevards com Haussmann, foi agora ultrapassada por si mesma. E aqui esse novo moderno são as rodovias, os inúmeros automóveis e prédios iguais, o vidro, os apartamentos que parecem mais vitrines do que casas (Tati construiu literalmente esse mundo: um orçamento gigantesco para a época foi utilizado para construir o set de filmagens do filme, conhecido como “Tativille”, o que torna o filme ainda mais grandioso e interessante também em termos arquitetônicos).
Estamos quase 60 anos à frente de Sr. Hulot e nossas cidades também não pararam de mudar, nessa modernidade que vai sempre fazendo a si mesma, destruindo o que foi e construindo sua nova versão. O que é “mais moderno” nas nossas cidades já é um pouco diferente: hoje andamos por nossas ruas cosmopolitas cheios de aparelhos que ainda não eram uma realidade no mundo de Hulot. Tudo é conectado à internet, a todo mundo e o tempo inteiro. Se antes o controle estava nos nossos passos, agora ele está também na nossa mente e na nossa atenção.
Mas a máxima permanece também para nós: quanto maiores as tentativas de controle, mais a nossa humanidade transborda pelos mundos artificiais que nos cercam.
E o caos se instala, não tem jeito. E com ele as nossas emoções e as nossas necessidades mais profundas: de conexões, de calor humano, de interagir com os outros, de ver e ser visto. As pessoas ao redor de Hulot são todas atrapalhadas e nós somos atrapalhados também. E está tudo bem: é nas trapalhadas que mostramos a nossa imperfeição, a nossa humanidade. É no caos que a gente se diverte.
Daqui a duas semanas, encerramos nossa edição especial com Trafic (1971). Na semana que vem, seguiremos por outras andanças.
Até lá :)
Onde assistir
Os filmes de Tati com o Sr. Hulot costumam estar disponíveis para assistir na Mubi. No momento da escrita desse texto, entretanto, os filmes não estão mais no catálogo. Mas, se você estiver lendo esse texto em um outro tempo, vale a pena checar se eles voltaram para a plataforma :)
Errata
Uma pequena correção da parte 2 dessa edição especial: No texto de Meu tio, chamei o sobrinho de Hulot de Gérald, mas o nome do menino é Gérard, com “r”.
News andantes
Neste sábado (dia 22/10) estarei em São Paulo para participar do evento de lançamento da coleção Charlas y Luchas da editora Tenda de Livros. Vem me ver na biblioteca, assistir às mesas e conhecer essa coleção que ficou linda demais. O evento é na sede da Tenda no Ipiranga e para saber o endereço certinho, é só mandar mensagem no instagram da editora.
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