Essa é uma edição especial de Natal da Andanças! No mês passado, organizamos um amigo-secreto entre várias newsletters no grupo super bacana que se formou a partir do evento O Texto & o Tempo. A proposta é que cada um dos participantes leia os textos da pessoa que sorteou e envie uma carta para ela na própria newsletter. A edição de hoje é a minha carta e você vai saber quem eu tirei no final dela :)
Curitiba, 16 de dezembro de 2022
Amiga secreta,
“O que levaria alguém a querer fugir com o circo?”
Você fez essa pergunta em um dos seus textos e a questão ficou rodando na minha cabeça por dias.
Eu não conhecia você e a sua newsletter antes e fiquei feliz de ter te sorteado. Li todos os seus textos de uma vez só e fiquei com gosto de quero mais. Cada um deles abriu muitas ideias sobre o que eu poderia te escrever, porque eu fui longe em uma viagem ao meu próprio passado. Por um momento, me vi de novo na mesa da cozinha da casa da minha vó, na hora do cafézinho com bolacha das 23h (sim), ouvindo todo tipo de histórias. Lembrei do som da máquina de costura, dos meus anos de ensino médio e dos diários que eu também destruí. Eu poderia te contar mil coisas sobre tudo isso, mas esse texto sobre o circo... ele me pegou de jeito.
Porém, anticlímax: não tenho nenhuma história com circo para te contar. Lembro de ter ido poucas vezes ao circo na infância e não tenho grandes memórias com elas. Eu tenho mais recordações da situação em si - com quem eu fui, a chegada até lá, etc - do que do espetáculo em si. Acho que o circo nunca causou um efeito muito grande em mim.
Fugir com o circo, por outro lado, já é outra história.
Ter um ar místico nisso, né? Embora muitos parques de diversões também sejam itinerantes, essa é uma magia que eles não têm. Talvez porque o parque é uma coisa moderna e o circo já é um negócio muito mais antigo e, pelo menos a meu ver, se baseia muito mais na habilidade, grandeza e majestosidade das pessoas do que das máquinas. No picadeiro, pessoas comuns se transformam em lendas e acho que isso faz com que ele toque de forma mais profunda nos nossos desejos e fantasias.
Romantizamos, claro. Estamos ali naquelas poucas horas de espetáculo para nos entregar ao entretenimento e esquecemos do que acontece nos bastidores. Fazemos assim com os filmes também. Imaginamos a comédia romântica de nossas vidas em outra cidade, muito maior e mais badalada que a nossa, e esquecemos os vários outros problemas que vem com elas. Talvez, como você escreveu no texto, a personagem que está na segurança de casa na cidade pequena queira fugir com o circo e andar por esse mundo, e aquele que está nessas andanças sem fim só queria o conforto de um lugar fixo para si. Será que estamos sempre querendo e fantasiando o que não temos?
Fiquei viajando em várias coisas sobre circos, histórias de fugas e a vontade do desconhecido. Talvez porque essa seja uma newsletter de andanças por aí e fugir com o circo parece uma daquelas histórias muito loucas que ouvimos quando crianças e que habitam o nosso imaginário aventureiro inocente. É sempre alguém conhecido da vizinha de um parente distante que um dia ousou pegar essa trilha para o desconhecido.
Ou talvez seja porque me vi na sua personagem. No começo do conto, você diz que Dora brincava, desenhava e se imaginava como uma agente secreta dos filmes que assistia sozinha. Acho que eu fui meio Dora na infância (e talvez não só na infância, confesso). Não podia assistir um filme de espiões kids que saía me esgueirando pela casa me imaginando como eles, inventando os meus próprios equipamentos secretos (Pequenos espiões era o meu favorito, e como não falar de Três espiãs demais?). Talvez em tempos em que os filmes não eram uma coisa tão comum como hoje em dia, o circo representava essa possibilidade de uma janela para outra vida. Um momento de magia em que se podia imaginar como seria ser a moça bonita acrobata, viajando pelo país em um trailer próprio, com um camarim cheio de lâmpadas no espelho e vivendo aventuras e romances nessas andanças por aí.
Me pergunto se a lenda dos que fugiram é verdade ou uma história inventada para encarar a dureza da realidade, das rupturas intencionais ou forçadas que aconteceram em épocas em que voltar não era tão simples. Nunca soube de ninguém que fugiu com o circo. Por outro lado, ouvi muitas histórias de pessoas que fugiram de casa para casar ou para fazer a vida em outros lugares. Tudo muito antes de eu nascer, em uma época que mudar de estado era quase uma ruptura permanente. Não sei se a vida delas foi boa, mas também não dá para dizer que seria se elas tivessem ficado. Acho que toda fuga não deixa de ser uma aposta - e toda permanência também.
Se eu tivesse nascido em outra na época, em que as mulheres tinham menos liberdade em todos os sentidos, será que eu teria fugido com o circo? Ou para casar? Acho que isso demandaria uma dose de coragem e desapego que eu não tenho, confesso para você. Aproveitei das possibilidades de andanças do meu tempo e tive a minha própria dose de “fugas”, desejos de liberdade e busca por magia nessas três décadas de vida, mas sempre me certificando de que haveria um teto e um mínimo de salário garantidos. Eu vivo no conforto de uma época e de uma condição que não demanda soluções extremas. Mudar de estado, de país, de profissão, de vida, de relacionamento não são sonhos tão distantes como já foram para outras gerações da minha família.
Olhando assim, talvez eu seja mais Dora do que imagino: desenhando e assistindo filmes sozinha, sonhando com as minhas aventuras de espiã, não indo no circo. E, dizem ainda, que entrou na faculdade em outras terras. E nunca mais voltou.
Não voltou para ficar, mas volta uma vez a cada dois meses e recebe visitas constantemente.
Se “fugir com o circo” significa ir atrás da magia e da liberdade, por mais ilusória que ela seja (o que só descobrimos depois, é claro), talvez ele esteja mais presente nos nossos dias do que parece. Talvez essa seja uma metáfora para as aventuras que queremos viver, nos tempos em que ainda somos inocentes para não ver os vários contras. Mas ficar também tem das suas armadilhas.
Enquanto isso, indo ou ficando, talvez nós só seguimos aqui tentando ganhar a vida com as habilidades que temos, como você disse. Seja domando os leões de cada dia, performando para um público ou sentada em um escritório improvisado do lado de fora da tenda, cuidando das licitações e da publicidade. Estamos sempre na busca pela magia, de uma forma ou de outra.
Fico aqui pirando, não repare. Lá fora cai uma chuva fina e faz uma ventania que nos faz usar casacos em pleno meio de dezembro (Curitiba tem dessas, zero magia). Há dois filmes andantes que o seu texto me lembrou, e vou deixá-los aqui como um presente para você. Como não nos conhecemos, não sei se é o tipo de filme que você gosta ou se você já os assistiu, mas achei que eles conversam muito com esse tema (e ficam também de indicação para quem está lendo esta carta).
O primeiro é Asas do desejo, um filme alemão dos anos 80 que mostra a vida em Berlim vista pela perspectiva de anjos que cuidam das pessoas e que vivem em um outro universo, paralelo ao nosso. Um desses anjos acompanha sempre uma jovem acrobata de circo em suas viagens para lá e para cá e acaba se apaixonando por ela. Enquanto ele quer ser humano de um lado, ela voa fazendo acrobacias pela tenda do circo com asas de anjo. É um filme muito bonito e dá para assistir aqui.
O outro é A vida invisível, baseado no livro da Martha Batalha, que conta a história de duas irmãs no Rio de Janeiro dos anos 50. Uma delas fugiu com um marinheiro e a outra ficou com a família, e história mostra o impacto dessas decisões em ambas ao longo da vida. Há muitas cartas escritas de uma para a outra no filme, o que me fez lembrar ainda mais dele enquanto escrevia esta. Ele é lindo demais e eu nunca na minha vida eu chorei tanto no cinema. Dá para assistir no Globoplay.
No mais, como está o seu final de ano por aí, Caroline? Por aqui o tempo passa rápido e me perco no que ainda gostaria de fazer antes do Natal, que já tá ali batendo na porta.
Quero ler mais textos seus no futuro e desejo a você um excelente Natal e final de ano!
Ps.: Eu também não iria em um reencontro da turma do meu Ensino Médio.
Minha amiga secreta é a Caroline Ribeiro, que escreve a newsletter Literaturês e você pode ler o texto dela sobre o circo aqui.
News andantes
Passamos a metade de dezembro e chega aquele momento em que as atividades cotidianas vão mudando e os planos de fim de ano já estão ali, virando a esquina. Não seria diferente com as nossas Andanças: é hora de descansar os pés e recuperar as energias para novos passeios no ano que vem.
Além de descansar, esses também são tempos de celebrar, refletir e agradecer o ano que passou. Faremos isso em duas edições nas nossas Andanças natalinas: a revelação do amigo-secreto hoje e uma pequena retrospectiva na semana que vem.
Te espero lá :)
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Luisa, pela sua carta, imagino que viemos do mesmo lugar. Um lugar em que moças fugiam para casar, um lugar em que beber café antes de dormir não implica em insônia. Fiquei apaixonada pela sua interpretação de que assistir um filme pode ser "fugir com o circo", ou qualquer outra coisa que nos faça ir atrás da magia. Ainda não vi os filmes que indicou, mas gostei bastante das sinopses (gosto de todo tipo de filme). Não conheço muito A vida invisível, mas sei que também é livro, e ele me soa como A hora da estrela, não sei porquê.
Amei a sua carta, muito linda, sério, me senti acolhida.
Estou apreciando os seus textos sobre Andanças. Lendo os antigos e aguardando os novos. É muito legal assistir um filme e ler sobre a experiência de outra pessoa sobre a mesma obra. (preciso rever Frances Ha, que nem lembro que idade tinha quando assisti, para relembrar o gosto agora que tenho uma idade próxima a da protagonista).
Uma última coisa: eu NUNCA fui ao circo.
Um beijo e sigamos conversando
que linda essa carta!
a partir de hoje sempre que eu quiser mudar de vida, direi que vou fugir com o circo.