Essa é mais uma das edições especiais de Natal da Andanças, com a revelação de um amigo secreto entre newsletters. A edição de hoje é a minha carta para meu amigo e você vai saber quem eu tirei no final dela :)
Ah, e se você ainda não viu, na semana passada tivemos a nossa retrospectiva com os favoritos no ano <3
Curitiba, 20 de dezembro de 2023
Tem alguns anos na nossa vida em que várias coisas acontecem ao mesmo tempo. Não apenas uma quantidade enorme de pequenas ou grande coisas, mas aqueles momentos que fazem tudo mudar, que nos fazem ter a certeza de que nada mais será como antes. Duas coisas aconteceram na minha vida pessoal neste ano que causaram essa sensação com mais força. Em certa medida, elas são diametralmente opostas:
a vida e a morte, o começo e o fim.
Em uma quinta feira no final de maio, eu e a minha companheira pegamos um uber até o apartamento de um casal de amigos. Lá havia um quarto, onde havia um guarda roupas, que tinha uma gaveta. Nessa gaveta, seis pares de olhinhos sonolentos e minúsculos nos encaravam de volta, num misto de medo, curiosidade e talvez irritação por termos os tirado do seu sono quentinho e escuro após o almoço. Sentamos no chão e esperamos. Dois daqueles parzinhos de olhos - os mais intrigados e mais corajosos diante de nós - saíram e vieram saltitando em nossa direção, se exibindo e nos convidando para brincar. Eram eles, não havia dúvida. O nome de um já estava definido antes de chegarmos; o da outra brotou na minha mente assim que olhei para ela, como mágica ou amor à primeira vista. Walter e Brigitte agora esparramam a sua personalidade felina por todos os cantos desse apartamento, mostrando como a vida sempre pode ser muito mais colorida do que imaginávamos.
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Em uma segunda feira no meio de agosto, uma ligação irrompeu o silêncio do dia que ainda não havia nascido direto. Acordei automaticamente no primeiro toque - eu sabia o que era, eu conhecia aquela ligação. Já havia recebido uma parecida, em uma hora parecida, há mais de quinze anos atrás. A diferença é que aquela veio de repente, sem nenhum sinal de que estava por vir. Essa não. Essa já vinha rondando nossas angústias por anos, décadas da minha vida. Um mês antes eu já havia pegado um ônibus correndo, já havia adentrado a madrugada nas cadeiras duras da sala de espera, já havia feito uma peregrinação diária até o hospital. Cada novo olá era seguido por um tchau com tom de último. As coisas melhoraram, voltei para casa e depois peguei o ônibus de novo, com menos pressa dessa vez. Horário de visitas, identidade, crachá, máscara e álcool gel. Vire à esquerda, depois à direita, suba as duas rampas, ande até o fim do corredor e dobre à esquerda - é o quarto à frente. Naquela semana, as coisas estavam instáveis. Pareciam piorar, pareciam melhorar, até que veio a sensação de que não havia mais volta. Naquela noite de domingo, minha vó me olhou e deu um “boa noite” travesso, com ar de criança que se acabou de brincar e que agora vai descansar, como se tivesse feito um acordo silencioso comigo: não conta para ninguém, tô saindo. Eu sabia ali. Mesmo que aquele não tenha sido o momento, mesmo que outras situações difíceis tenham vindo minutos depois, mesmo que as horas seguintes tenham sido de um sono silencioso, eu sabia. Assim como soube quando o telefone tocou às 5 horas da manhã. A vida foi indo aos poucos, na respiração cada vez mais lenta e - espero - cada vez mais leve e tranquila, naquela madrugada.
“A morte não encerra a vida, mas o seu prenúncio muda tudo”.
Você pode imaginar, meu amigo, o quanto seus dois únicos textos e, na verdade, toda a proposta da sua newsletter, tem a capacidade de mexer comigo. Eu não havia percebido o quanto até escrever esses parágrafos, na verdade. Teria sido diferente em qualquer outro ano e achei nada aleatório que eu tenha te sorteado justamente nesse - que nesse fim de 2023 nossos caminhos tenham se encontrado.
Vou dar um pouco de contexto para quem nos lê e que não te conhece ainda. Meu amigo secreto iniciou uma newsletter para registrar o que ele já sabia serem os últimos momentos de sua companheira por 16 anos: a cachorrinha Preta. No primeiro dos dois textos, ele conta todo o processo: a doença que chegou e foi vencida, novos problemas, a doença reaparecendo mais severa em outro lugar, um infinidade de consultas e exames e cuidados cada vez mais constantes e necessários. No segundo texto, de alguns meses depois, meu amigo conta como logo depois daquele primeiro relato, antes do que ele imaginava, Preta se foi. Menos de um mês depois, outro baque: sua gatinha Branca, com uma idade parecida, também.
Sinto muito por suas perdas.
“Observo essas mudanças todas dia a dia. Difícil um deles, no último mês, em que eu não tenha chorado. Na rua, na cama, no metrô, em qualquer lugar. Preta se despede da pior forma possível, uma lenta, dolorida e cheia de incômodos, expressos por olhares e lambidas cada vez mais cansados. Outro dia chorei pensando em um dia hipotético em que não vou mais lembrar do olhar dela, do cheiro, do peso no meu colo arregaçando a lombar no caminho até o veterinário. Besteira. Lembro do cheiro do meu pai até hoje.”
Eu leio suas palavras e lembro da angústia daquelas semanas. Nosso sentimento vem de acompanhar o fim da vida de espécies diferentes, com múltiplas particularidades diferentes, mas as emoções que envolvem tudo isso são parecidas. Leio você falando de quando a Preta era apenas uma filhote e penso nesses dois filhotinhos que apareceram na minha vida nesse ano também. Pela primeira vez eu sou uma das responsáveis diretas por outra vida e me lembro o quanto isso me assustou naqueles primeiros meses. Penso em como o tempo passa rápido e o quanto passa mais rápido para eles do que para nós.
Tudo isso aconteceu nesse ano para você e eu não consigo imaginar a avalanche de emoções diárias que aconteceram por aí. Também não consigo imaginar o quão difícil deve ter sido registrar e escrever tudo isso, mesmo que em apenas dois textos não muito longos. Daqui, eu escrevo para você com lágrimas correndo dos olhos e uma pilha de papel higiênico ao lado do computador. É difícil escrever. Mas, agora, escrevendo pela primeira vez sobre esses dois acontecimentos do meu ano, te entendo melhor: é como se a gente desse alguma forma aos sentimentos que ficam presos aqui dentro. Como se a gente pudesse traduzir minimamente em palavras as emoções que nos inundam e que nem sabíamos exatamente que estavam ali. Eu nem sabia que ainda tinha lágrimas para chorar, mas aparentemente sim.
“As lágrimas vieram quase na mesma hora, dessa vez acompanhadas da ficha terminando de cair. E eu percebi que, como em tantas outras vezes na vida, precisava escrever. Antes do fim, quero estar com a Preta o maior tempo possível. E, de tempos em tempos, refletir sobre a nossa convivência, os anos compartilhados, as intimidades.”
Talvez escrever, então, seja alguma forma de cura. Resgatar os acontecimentos da memória e despi-los das várias camadas de proteção que carregamos junto conosco na vida cotidiana. Removê-los das palavras hermeticamente protegidas que soltamos quando mencionamos o que aconteceu para alguém. Talvez essa escrita sincera tenha o poder de acessar lugares que nosso consciente ainda não havia tocado. E a partir dela, deixar as lágrimas virem, por que chorar é bom. Chorar faz o peso do luto ficar um pouquinho mais leve.
Resgatar as memórias também nos faz lembrar de todos os momentos incríveis, da certeza de uma vida cheia que foi vivida e acompanhada de perto por nós. Eu já ri muito lembrando de todas as histórias malucas da minha vó, da personalidade forte, das várias andanças que ela fez. Da mesma forma, absorvo o máximo que posso desses dois bonitinhos doidos que já não cabem mais juntos na palma da minha mão. Tenho certeza que você tem muitas histórias felizes com Preta e Branca e que elas aqueceram o seu coração e o da sua família nesses 16 anos. Me emocionei vendo a foto de Preta, já uma senhorinha, na praia pela primeira vez. São momentos que ficam para sempre conosco e eu acredito, do fundo do coração, que ficam guardados com eles também. De certa forma, e com um jeitinho próprio, tenho certeza de que eles cuidam de nós o tempo todo também.
“A palavra cuidado tem muito mais que 7 letras”
Tudo isso que aconteceu no meu ano e no seu me fez pensar que talvez uma das nossas principais contribuições para o mundo seja cuidarmos uns dos outros, de todos os seres e de toda a natureza que nos rodeia. Talvez isso seja mais importante do que nunca agora. Como você disse, as coisas não andam muito boas por aí. Eu sei que toda geração pensou que o mundo estava acabando, mas elas não tinham esse calor infernal que adentra os nossos ossos e bagunça a nossa cabeça. Eu tenho medo também. Medo do que está por vir. Mas isso também me faz pensar, assim como você, nas possibilidades da vida. Nesse mundo cheio de “vidas que teimam em desafiar o fim”. Nessa enorme quantidade de pessoas que levantam todos os dias e vão para as ruas seguir seu cotidiano. Na alegria de chegar em casa depois de um dia estressante e ter ali um (ou vários) amigo com o rabo abanando ou um miado baixinho, cheios de amor incondicional, nos esperando.
É o amor que faz tudo viver, no fim das contas.
Eu sinto que os acontecimentos desse ano mudaram muitas coisas aqui dentro de mim e esse lugar diferente na vida parece abrir novas percepções, novos sentimentos e novas vontades. Eu imagino que muitas coisas tenham mudado para você aí também. Achei muito nobre de sua parte decidir continuar o seu projeto, que começou no registro dos últimos dias de Preta, celebrando a vida e todas as pequenas alegrias cotidianas. Por favor, não deixe de continuar sua newsletter. Quero ler mais sobre Abigail e Jorge, seus outros dois bichinhos, e rir pensando que meus dois pestinhas são iguaizinhos. Quero ler as históricas de Preta e de Branca e sorrir com as suas memórias. Quero ler o que você tem pensado sobre essa vida futura não do ponto de vista apocalíptico, mas de resistência, como você mesmo disse. Não sei dizer para você se estaremos preparados para quando o fim do mundo chegar - acho que não tem como se preparar de verdade para isso, assim como não tem como se preparar para a morte, nossa ou dos outros seres. Mas se eu fosse dar um palpite, diria que, para onde quer que essa vida nos leve, o caminho só fará sentido com amor e cuidado.
Antes de ir, quero deixar como presente para você uma indicação. Talvez ainda seja muito cedo para ver um filme como esse, mas você pode avaliar e guardá-lo para algum dia. A Vida Eletrizante de Louis Wain (2021, dirigido por Will Sharpe) conta a história do artista inglês que dá nome ao filme, um homem considerando excêntrico que viveu na Inglaterra no final do século XIX. Um dia, ele e sua esposa adotam um gatinho que aparece em sua casa e Louis começa a desenhá-lo para presentear e distrair a sra. Wain, que passava por um momento difícil. Não era muito comum, naquela época (segundo o filme), que os gatos fossem considerados animais domésticos que conviviam de perto com seus tutores, como fazia a família Wain. Em um dado momento, para conseguir pagar as contas, ele passa a vender seus desenhos de gatinhos, que são impressos nos jornais. O amor “incomum” daquela família por seu gato manifestado nos desenhos - que se tornaram imensamente populares - acabou mudando a forma como a sociedade britânica enxergava os gatos. É uma história real muito interessante e que não fala tanto assim da vida do gatinho em si, mas da imensa capacidade dos bichinhos de mudar nossas vidas e do quanto esse amor pode mudar uma sociedade inteira. Tem para assistir no Telecine.
Me despeço de você aqui, Danilo. Espero que 2024 seja um ano que nos permita curar as feridas e seguir em frente nessa vida imensa e abundante que temos ao nosso redor.
Essa foi uma carta para o meu amigo secreto , da newsletter Antes do fim, comentando seus dois textos: Olhos de cão e Do luto (e das lutas).
Esta foi a última edição da Andanças de 2023! Um imenso obrigada a todos que caminharam comigo e todas aquelas que contribuíram financeiramente com a newsletter neste ano! Desejo a todos um feliz natal e um ótimo ano novo!
Teremos um recesso nessas próximas semanas e voltamos no dia 10 de janeiro. Te espero lá :)
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