Alguns anos atrás, eu me joguei nos filmes de Éric Rohmer, um diretor completamente andante, que virou um dos meus favoritos da nouvelle vague francesa e da vida. Ele tem um conjunto de filmes chamado Contos morais e em um deles, Minha noite com ela (1969), nosso protagonista está em uma crise, divido entre duas mulheres de personalidades muito diferentes que o atraem. Ali, um Jean-Louis Trintignant na casa dos 30 e tantos anos anda pra lá e pra cá na paisagem nevada em uma pequena cidade no interior da França, tentando lidar com seus desejos e emoções confusas. Alguns meses antes disso, eu tinha assistido Hiroshima mon amour (1959, dirigido por Alain Resnais) e lá está uma Emmanuelle Riva esplendorosa andando com toda a sua juventude pelas terras japonesas e vivendo uma história de amor.
Eu não prestei atenção no nome dos atores. Demorou uns bons minutos e a sensação de conhecer aquelas feições de algum lugar para eu entender que o casal de idosos de Amor (Amour, 2012, dirigido por Michael Haneke) eram a atriz estrangeira de Hiroshima e o homem confuso de Rohmer. No momento de estreia do filme, em 2012, eles tinham 85 e 82 anos, respectivamente.
Existe aquela sensação engraçada de ver atores idosos que conhecemos bem em algum filme antigo de sua juventude. Mas é diferente quando vemos os atores bem idosos depois de só os termos visto enquanto jovens. É como se alguém de repente assistisse algo novo do Harrison Ford, tendo o visto apenas em Star Wars em 1977. É um baque.
E é um baque porque somos confrontados, em poucos segundos, com a passagem do tempo e as marcas que ele deixa em nós.
Em Amor, Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são professores de música aposentados, vivem sozinhos em um apartamento confortável repleto de livros em Paris e tem uma filha que mora na Inglaterra (Isabelle Huppert) que os visita de tempos em tempos. Um dia, Anne tem um derrame e Georges decide cuidar dela em casa, atendendo ao desejo da esposa de não ser deixada aos cuidados de um hospital. Mas ele também é idoso e também tem suas dificuldades.
Amor não é um filme andante, muito pelo contrário: praticamente toda a história se passa dentro do apartamento do casal e o objetivo aqui é justamente esse. Mas esse é só um momento da vida deles, um recorte específico de um período em que a saúde ficou debilitada, os obrigando a permanecer do lado de dentro. Georges e Anne podem não andar mais por aí como a moça em Hiroshima e o homem confuso no frio das compras de Natal, mas tem uma vida bem ativa, dentro do que é possível. O filme nos dá uma pequena introdução, em seus primeiros minutos, de como é essa rotina normal deles: vão a concertos juntos e voltam para casa de ônibus, falam com alunos antigos e com os vizinhos, recebem pessoas e vão fazer as compras do mercado. Vivem lá fora também.
Embora não vivam o arrebatamento de uma paixão que tira o fôlego e os faz vagar pelas ruas pensando em seu par, como seus personagens de 50 anos atrás, Georges e Anne vivem a consolidação do romance, aquilo que o amor se torna quando passam os sentimentos rápidos e ficam aqueles profundos, carregados das marcas deixadas pelo tempo e todas as suas alegrias e dificuldades enfrentadas juntos. É romance o que eles vivem também - não do tipo que nos tira do rumo, como na juventude, mas justamente do tipo que dá um rumo. E esse amor estará aqui passando por alguns dos limites mais complicados que ele poderia passar.
Eu não sabia muito sobre o que Amor se tratava - é o tipo de história em que é melhor a gente não saber tanto antes de assistir. O filme é excelente e vai destruir o seu coração e tirar o seu chão, com toda certeza. Tem mil e uma reflexões que seriam possíveis de fazer sobre ele, principalmente sobre os temas da morte e do amor, que dá título ao filme. Mas fiquei pensando sobre como tudo isso está, no fim das contas, completamente entrelaçado com a vida e com a rotina dos nossos dias. Sobre como vivemos o máximo que podemos até que as coisas fiquem mais difíceis e sejamos forçados a nos recolher.
Nessa semana, minhas duas avós fariam aniversário, uma em um dia e a outra no dia seguinte - dessas coincidências do destino. Esse é o primeiro aniversário em que uma delas não está aqui. Da outra, já fazem muitos anos, quase duas décadas, mas não sei o número ao certo. Minha cabeça de criança guardou muitos detalhes daqueles dias, mas não a passagem do tempo e qualquer informação mais detalhada sobre ele. É sempre algo que eu acho peculiar. Nesse caso mais recente, acontece o oposto: lembro do dia exato, da hora exata e talvez até dos minutos. O tempo ficou marcado em mim junto com todo o resto.
Talvez uma das maiores expressões do que é ser adulto é que a gente lembra. Lembra de tudo, até do que gostaria de não lembrar. A gente pode até esquecer das coisas mais básicas e simples, se perder com compromissos importantes quando a vida está uma loucura, mas de certas coisas, aquelas que nos impactaram de alguma forma, nós sempre lembramos. Guardamos as imagens, os cheiros, as texturas, a sensação que o ar fazia quando entrava nos pulmões e quando o vento tocava na pele. Sabemos as horas, como estava o clima lá fora. Registramos consciente e inconscientemente no corpo e na mente. Conforme o tempo passa, todos esses registros se transformam em marcas, independente da nossa vontade.
Eu passei toda a minha infância com essas avós, ora com uma ora com outra. Andei um bocado com elas - andando literalmente ou de carro por aí. Elas eram mulheres andantes, cada uma a sua maneira. Cada passo que davam carregava uma imensidão de histórias felizes e tristes que deixaram nelas as inúmeras marcas que traziam consigo. Histórias das quais eu não soube - e nem teria como saber - nem a metade, tenho certeza. Ali comigo elas formavam novas histórias andantes também, encontravam novas formas de caminhar junto com toda aquela energia infantil infinita que eu tinha. Sem marcas, ainda. Sem uma noção clara do tempo e do quão rápido tudo aquilo passaria. Mas elas sabiam. Já haviam vivido o suficiente para saber.
Assisti Amor uns meses depois do falecimento da minha avó, no ano passado, e foi difícil. O baque de ver os atores franceses bem velhinhos trouxe a lembrança do quanto eu a vi envelhecer rápido nos últimos meses e nos últimos anos. Há ainda todas as dificuldades pelas quais eles passam, as decisões que tomam e suas formas de pensar que vem de um lugar de quem já viveu muito - tudo isso trazia de volta muitas coisas.
Pensei que eu tenho hoje mais ou menos a idade que Emanuelle Riva tinha em Hiroshima e isso traz uma certa perspectiva: a de quão jovem a gente ainda é com 30 e poucos anos, apesar do que a sociedade faz a gente pensar. De como nossos músculos são fortes, de como somos ágeis pelas calçadas lotadas, de como nossa pele ainda tem poucas marcas, apesar de alguns cabelos brancos meio precoces. De como a gente sabe muito pouco ainda. Nessa sociedade obcecada com a juventude, é fácil a gente se perder no horizonte do que existe aqui e agora e buscar uma vida sem marcas que não faz sentido. Estamos incessantemente tentando apagar, tentando o impossível que é voltar a um estado anterior que não necessariamente era melhor. Agora é agora, lembra? E a gente nunca mais vai ser tão jovem e tão inexperiente quanto é hoje, independente da idade que temos.
Na minha cabeça de criança, minha avó já era muito avó quando faleceu, mas ela não era tão mais velha do que Hirayama, nosso protagonista de semana passada. Talvez fossem também as marcas do tempo em alguém que viveu outras épocas e outras demandas. Já a minha outra avó se aproximava agora mais da idade de Georges e Anne, quase nos 90 anos. Ela já não podia mais ser tão andante quanto antes há um certo tempo e isso a angustiava. Mesmo assim ela ia sempre que alguém convidava e levava, ansiosa por coisas novas, envolvida até o fim em viver tudo que podia.
Porque a verdade é que a gente nunca sabe quando esse fim vai chegar, seja qual for a nossa idade hoje. Todo novo dia é um pouco mais e acho que, quanto mais o tempo passa, mais a gente tem consciência disso - mais a gente lembra. Cada marca é a prova de tudo pelo qual já passamos até estarmos aqui e, por mais que a gente possa sempre cuidar ao máximo, não tem como controlar tudo. Cada dia é perfeito então, como vimos semana passada. E, neles, vamos continuar sendo quem somos e fazendo o que sempre fizemos, independente do que nos falam por aí. As histórias andantes podem até ser dominadas por jovens como a Emmanuelle de Hiroshima e o Jean-Louis de Rohmer, mas isso não quer dizer que a rua pertença só a eles. Se a gente não vê outras histórias, se perde na nossa própria construção do que é a realidade. A verdade é que continuaremos lá fora, buscando, vivendo, admirando e experimentando, até que não possamos mais. Sentindo profundamente até que o coração pare para sempre, mesmo que a gente não consiga mais ter plena consciência disso.
E assim talvez, a melhor forma de honrar aqueles que já foram é viver, aqui e agora, tudo é possível viver, com toda a energia que temos hoje.
Até o próximo passeio :)
Alguns links antes de ir
- Amor está disponível para assistir na Mubi, Hiroshima mon amour no Telecine e Minha noite com ela não encontrei em nenhum streaming no momento de envio desse texto.
- Tá tudo mundo tentando: Pensar a morte, edição ótima da
(apenas para assinantes) que dialoga muito com nosso cafezinho de hoje.- O roteiro de Hiroshima mon amour é da escritora francesa Marguerite Duras. Já faz um tempo que eu quero ler seu livro de ensaios Escrever, publicado quando ela tinha 80 anos. Nessa semana, comprei um livro surpresa na nova livraria da cidade e foi justamente o Escrever que veio no pacote! Fiquei feliz <3
- Quando penso em filmes andantes na terceira idade, os que me vem com mais força à mente são os de Agnès Varda, em que ela mesma é a nossa personagem principal. Já falamos sobre As praias de Agnès e um pouco sobre o tema do envelhecimento na edição #26.
- Dois parisienses, um look: um compilado de filmagens de pessoas andando pelas ruas de Paris com roupas parecidíssimas (ou até as mesmas!). O que eu achei mais interessante é ver as mesmas roupas sendo usadas de formas diferentes por jovens e idosos <3
- Esse casal maravilhoso e os seus looks do dia.
- Um perfil cheio de vídeos da vida cotidiana nas ruas de Paris.
- A vida depois que eu fiz 30 - quadrinho maravilhoso da Sarah Andersen.
- Em Paris com Rohmer: um vídeo lindo que traz um compilado de cenas dos filmes de Rohmer, mostrando a rotina de seus personagem ao longo de um dia em Paris. Em francês com legendas em inglês, mas dá pra ficar só apreciando as cenas das andanças nas diferentes décadas em que os filmes se passam <3
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Que lindo texto! O filme Amor é mesmo muito potente, mil reflexões veem à mente. Assisti com o Léo há um tempo e ficamos muito, muito tocados. O longa é um inspiração. É isso, sabemos pouco, mas também vivemos o nosso amor.
Seus textos ou aumentam minha watchlist ou me dão vontade de rever os que já assisti, rs
Amor eu vi muitos anos atrás, e agora te lendo, penso que seja um bom momento pra lembrar.
Do Rohmer, só assisti O Raio Verde, e vira mexe lembro dele, de tão "diferente" que achei :)