Nisso de não ter uma rotina definida já há muito tempo, virei a louca da organização da agenda, principalmente nesses anos de doutorado. Testei todo tipo de formato, horários e abordagens com relação a como eu organizaria o meu dia. Várias delas tiveram vida curta: é difícil prosperar quando a gente tenta se encaixar em algo que vem pronto, ao invés de criar uma organização que parta das tendências que já temos. Mas alcançar isso é difícil. Não sei dizer se a rotina que eu tenho hoje é a mais ideal, mas é a que tem durado mais tempo. Eu me perco com bastante frequência ainda, é claro. Volta e meia alguma coisa externa acontece e bagunça o que eu tinha planejado. Às vezes, as questões são internas: os ciclos que me envolvem todos os meses fazem com que eu não funcione da mesma forma em todas semanas e esse é um embate frequente: aceitar que, não importa o que eu faça, não haverá constância, que a minha energia sempre oscila. Por outro lado, nessa bagunça de ter dias tão diferentes o tempo todo, eu já percebi que gosto de seguir uma rotina, uma maneira de fazer as mesmas coisas repetidamente e vê-las assumindo formas, serem aprimoradas com o passar do tempo e registradas, de certa forma, mesmo que seja apenas na minha mente, me permitindo ver todo o caminho já traçado até aqui.
E se você também é uma dessas pessoas, eu aposto que vai, assim como eu, se maravilhar com Dias perfeitos (Perfect days, 2023, dirigido por Wim Wenders).
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Tóquio, pelas quais somos guiados por Hirayama (Kôji Yakusho), um homem na casa dos 60 anos que trabalha na limpeza dos banheiros públicos da cidade. Aqui vamos acompanhando a rotina bem específica desse homem silencioso, tranquilo e gentil. Seus dias começam sempre do mesmo jeito, um ritual de todas as suas manhãs. Na pequena van a caminho para o trabalho, escolhe uma de suas fitas cassete para ser a trilha sonora de seu trajeto. Ele almoça todos os dias em um mesmo parque e, depois de passar pelos vários banheiros e finalizar seu trabalho, Hirayama segue outra sequência de ações dentro e fora de casa, até terminar o seu dia com uma leitura antes de dormir. Aos finais de semana, sua rotina muda e podemos observá-lo fazendo coisas mais pessoais e, com isso, conhecê-lo melhor. É o momento de manutenção da sua vida durante a semana: faz limpezas, escolhe um novo livro, leva seus filmes para revelar, descansa e socializa - e tudo isso feito de bicicleta em uma andança que acontece nos arredores de onde mora.
Se a gente fosse resumir muito friamente o filme, é basicamente isso. A rotina de um homem comum e os acontecimentos que, aqui e ali, o tiram dela. Um típico filme andante, mas silencioso, em que acompanhamos mais a sequência de ações do protagonista do que necessariamente seus pensamentos. Mas, assim como todo filme andante com conversas ou não, a gente sabe bem que não é só isso - que nunca é só isso.
Passei muito tempo, depois de assistir Dias perfeitos no cinema, me perguntando o que exatamente mexeu comigo. Aquilo que eu vi me fez acordar no dia seguinte querendo mudar as coisas, olhar para a minha rotina, para as coisas que eu tenho ao meu redor e para aquilo que eu faço todos os dias. Não é exatamente um questionamento profundo, no sentido de reavaliar as minhas escolhas de vida. É algo mais sutil, mais do detalhe. O que é que esse filme tem que me fez querer mudar algo, repensar, fazer de outra forma?
Minha conclusão é que não é necessariamente sobre o que Hirayama faz ao longo do seu dia, mas como ele faz: a maneira como cada pequeno elemento da sua rotina preenche a sua vida, como cada pequeno objeto que possui tem um significado e uma importância. A sensação é de que tudo que está ali foi pensado, considerado. De que tudo que faz parte de sua vida hoje está ali por um motivo, por alguma escolha que ele fez um dia na vida. O sentimento que fica é de que aquela foi uma vida cuidadosamente lapidada ao longo do tempo com muito cuidado e carinho. E aí a gente percebe que na verdade tudo que Hirayama faz é com muito cuidado e carinho, incluindo o seu trabalho nada glamuroso de limpeza dos banheiros, uma dedicação que o seu colega de trabalho, mais jovem, não entende. Não tem uma ação que ele faça no seu dia que seja de qualquer jeito, apressada, sem atenção, sem considerar que aquilo é importante. O que parece é que sua vida hoje possui o formato que lhe proporciona a maior liberdade para ser e viver todos os dias aquilo que é mais essencial para ele.
Tem uma coisa muito delicada e muito difícil de colocar em palavras sobre essa maneira de fazer as coisas. É por isso que eu poderia mencionar aqui minuciosamente toda a rotina de Hirayama e isso nunca seria um spoiler sobre o filme. Não é sobre o que ele faz, mas os sentimentos que coloca em cada uma dessas coisas e as sensações que ele transmite para a gente nesse processo. E quando vemos alguém fazendo as coisas dessa forma, vem uma paz tão grande que eu não pude deixar de me perguntar:
por que é que eu estou correndo mesmo?
Acompanhando a rotina de Hirayama por alguns dias, eu tenho certeza que ele não tem uma meta de leitura ou de qualquer outra coisa. Ler X livros em um mês, assistir X filmes por semana. Tenho certeza que ele não fica ali quantificando o que ele quer fazer, se cobrando para alcançar aquilo. A gente tem metas e prazos no trabalho, é claro, isso faz parte. Mas sinto que eu já levei essa cobrança para tudo, mesmo quando não há ninguém além de eu mesma me cobrando qualquer coisa. Por mais tranquila que seja a minha rotina, minha cabeça está sempre dois passos adiante, se preocupando com o que mais eu tenho para fazer naquele dia, com o que ainda vai vir na semana. A cabeça no futuro paralisa, agita, confunde. Faz com que não aproveite bem o que agora e sofra com antecipação por medos que, na maior parte das vezes, nunca se concretizam.
E quando a cabeça funciona dessa forma, vem a necessidade de controle. Cada minuto está ali sendo monitorado na agenda. Me irrito e me angustio quando as coisas não saem como planejei, quando a rotina que tento religiosamente seguir todos os dias se quebra por algo pequeno. Estou sempre correndo, tentando colocar mais coisas em um dia do que ele pode comportar - do que eu posso comportar. Me sinto mal se não tive cabeça para fazer aquilo que esperava fazer, me cobro, dia após dia, para cumprir um cronograma que eu mesma inventei. E eu nem sei direito onde eu quero chegar.
Tanta cobrança e controle tem seus efeitos rebote também, como não podia deixar de ser. Me canso das horas que eu tanto tentei controlar e me entrego a passar o dedo no celular por horas, para me perder em vídeos fofinhos, regados a mais informação do que seria prudente para o meu cérebro cansado carregar. Deixo tomar conta o impulso de comprar algo que eu não preciso, alegando uma urgência que não existe de verdade. Olho para a casa tão simples e tão cheia de significado de Hirayama, e lembro de tudo que eu trouxe para casa e esqueci em um canto, de tudo que eu guardei só para jogar fora mais tarde. De tudo que eu tenho e não cuidei, das plantas que eu insisti em trazer e deixei morrer. Pensei em todas as coisas que eu acho que tenho que ter, que eu acho que tenho que fazer.
“A próxima vez é a próxima vez. Agora é agora.”
E aí então, em uma sessão de cinema de um domingo agitado, aparece esse homem. Embora seus dias sigam mais ou menos um mesmo roteiro, as coisas dão errado aqui e ali. Na convivência com os outros e com a cidade ao nosso redor, imprevistos acontecem, coisas mudam de lugar, surpresas surgem de repente. Acompanhamos Hirayama por mais ou menos duas semanas e, de certa forma, nenhum dia é igual ao outro. Ele se cansa, coloca seus limites, intervém quando necessário, mas mais do que tudo, entende que aquele é apenas um dia: dali a algumas horas ele acordará de novo e terá outra oportunidade de viver essa vida que tão cuidadosamente criou para si. Ele não é uma daquelas pessoas que segue à risca seu ritual e não quer que nada o atrapalhe. Mesmo quando a sobrinha chega de repente, ele adapta o que for necessário sem grandes problemas - se existe uma preocupação, é com os motivos de a sobrinha estar ali e não com a sua rotina modificada.
Se a próxima vez é a próxima vez, o que passou também passou. O agora é que importa - e nesse agora, ele olha sempre maravilhado para mais um dia que lhe dá a oportunidade de estar ali vivo fazendo o que escolheu fazer.
E eu digo escolheu porque temos um breve relance, em um dado momento, de que Hirayama talvez tenha vivido uma outra vida antes, muito diferente dessa que tem hoje. Não sabemos o que aconteceu - afinal, o que passou é o que passou. Mas ele parece plenamente satisfeito com a vida que leva e, de alguma maneira, essa vida exerce um apelo na sobrinha adolescente, alguém que talvez o veja como nós o vemos: como um respiro no meio do caos, como um momento de paz, como a prova de que talvez seja possível viver de outra maneira.
Eu sei que não sou a única com todos esses sentimentos bagunçados e talvez seja ainda mais difícil para as gerações mais novas, que nunca souberam como era viver de outra forma, sem toda essa conexão, exposição e vigilância o tempo todo. Talvez por isso a gente esteja vendo esse movimento tão grande de voltar para o analógico recentemente: ouvir discos, voltar a revelar filmes. O próprio filme dá indícios disso: as fitas cassete de Hirayama valem uma fortuna. Raridades que, há pouco tempo atrás, devem ter enchido os sacos de lixo de quem resolveu trocá-las pela nova tecnologia do momento.
De alguma forma, tem um alívio tão grande em ver esses dias se desenrolando, que é difícil de explicar. E se vem uma sensação tão boa, é inevitável se perguntar quais são os excessos que habitam nossa vida hoje, o que é aquilo ao qual nos acostumamos sem perceber. Quer estejamos correndo sem motivo, nos preocupando à toa, caminhando com a cabeça em outro lugar ou trabalhando para pagar coisas que nem sabemos mais porque compramos. A gente está aqui, vivo. Sempre podemos ir lá fora dar uma volta. Talvez caminhar, andar de bicicleta, comer com calma um comida boa feita com cuidado, beber uma cerveja despreocupado olhando o rio, aproveitar nossos momentos sozinhos e bem acompanhados, brincar com desconhecidos, observar como as pessoas fazem as coisas, ajudar quem precisa. Cuidar de casa, mas também viver lá fora, em tudo que a vida em comunidade e a cidade podem proporcionar.
Todos os dias, Hirayama tira uma foto das árvores no parque onde vai almoçar. Ele tenta fotografar o instante em que a luz que bate nas folhas, um fenômeno chamado komorebi. Algumas fotos ficam boas, outras não. Ele guarda aquelas que fazem sentido e separa as que deram errado. Nem sempre há o que aprender com elas - às vezes são só fruto do acaso, do clique em um segundo não muito favorável. O sol pode ter mudado, o vento batido mais depressa do que de costume - nem tudo está no nosso controle. E talvez a gente só precise deixar as coisas passarem, sabendo que no próximo dia há toda uma nova oportunidade de tentar de novo.
Vivendo nesse último ano com dois gatos filhotes, é interessantíssimo observar como eles vão construindo uma rotina e como lidam com ela. Todas as manhãs, quando percebem que nós estamos começando a acordar, eles levantam e ficam atentos, mas não seguem imediatamente para o prato de comida. Já percebi que a agitação deles não é para comer logo, mas sim porque eles estão acordados e nós também e é só isso! Significa que um novo dia começou e eles estão só muito animados para vivê-lo.
Todo santo dia. Todo perfeito dia.
Até o próximo passeio :)
Oh, freedom is mine
And I know how I feel
It's a new dawn
It's a new day
It's a new life for me
I'm feeling good
Onde assistir
Dias perfeitos entrará no catálogo da Mubi nessa sexta-feira, dia 12!
Links extras
- Dias perfeitos tem um site próprio e ele é PERFEITO. Se perca olhando as várias informações sobre o filme, detalhes sobre as músicas e livros de Hirayama, a introdução da história e, principalmente, Days of Hirayama, uma espécie de livro que vai rolando na tela, descrevendo o dia de nosso protagonista com o som de seus movimentos ao fundo. Tudo isso com um visual lindo (em inglês).
- Em fevereiro a
fez uma sequência de edições em torno do tema Nada e eu achei que todos os três textos conversam demais com Dias perfeitos. Leia no : Espaço, Sem centro e A onipresença do invisível.- “O que sei é que, desde que o mundo é mundo, contar, ler e ouvir histórias muda como a gente olha e lida com a própria vida”. A alegria da vida está no processo, texto incrível da
.- Apreciando arte na era da emoção, da
.- “No longa, depois de um tempo, a gente entende que o protagonista deixou uma certa vida pra trás, optou pela renúncia que, certamente dolorosa, por outro lado indica o acordo com algum princípio inegociável. Hirayama decidiu escolher um caminho, se dedicar a ele e fazer dos seus dias aparentemente banais, “dias perfeitos”, e essa é uma das coisas mais bonitas representadas ali”. A
também escreveu sobre Dias perfeitos em uma edição linda: Por onde nos curamos?- Eu não quero produzir conteúdo - texto perfeito da
na .- Uma crítica de Dias perfeitos, por Paula Jacob.
- A lista de livros, de fitas e dos principais objetos de Hirayama e os bastidores de Dias Perfeitos.
Outros passeios
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Lu, acabo falhando em comentar aqui porque sempre demoro para ver os filmes e os temas se perdem nesse rebuliço louco do dia a dia, mas curto demais a forma como você escreve e enxerga a vida :)
Também fui muito tocada por esse filme e posso dizer que também passei por esse ciclo de me inspirar tanto na rotina do personagem ao ponto disso me causar ansiedade. Vi o filme num domingo e acordei na segunda determinada a viver "dias perfeitos", com atenção e intenção, aproveitando cada segundo... nem preciso dizer que não durou nada e já na sexta, na terapia, comentei sobre essa frustração. Minha terapeuta falou que estar presente e aproveitar a vida ao redor é bem diferente de enfileirar atividades que eu acho que preciso cumprir para ter esse dia ideal, e com esse tapa na cara voltei pra casa.
No fim, é um exercício de presença e leveza, entender que existe esforço em priorizar aquilo que é importante, mas também é importante ver que aquilo que importa provavelmente já faz parte do nosso dia, tá logo ali do lado, a gente só precisa olhar ao redor e reconhecer.
beijos!
Estou te devendo um comentário na newsletter há um tempo, de vários textos que li e me senti conectada para não tinha tempo de responder. Tempo, esse bem tão precioso e que parece tão constantemente escasso. Eu também vivo na armadilha da pressa, de planejar mais do que consigo fazer no dia, de escorregar na agenda e me perder por horas vendo uma série porque de repente estava cansada. Cansada não tanto de fazer, mas da cobrança de querer fazer tanto. Desde que vi Dias Perfeitos, tenho estado fascinada com o equilíbrio atingido por Hirayama em sua rotina, e tentado aprender com o filme o que posso incorporar na minha. Ou melhor colocando, o que posso retirar dela. Obrigada por ter colocado em palavras tanto do que eu também senti com o filme e tenho sentido com a vida nos tempos de hoje..