#84 Um cafezinho: a Andanças no Olhar de Cinema 2024
Como foram os 9 dias de festival e 5 filmes lindos para você colocar na sua lista
O Olhar de Cinema chegou ao fim e, ao todo, assisti 26 filmes, sendo 17 longas e 9 curtas. É muita coisa. A minha impressão é que a edição deste ano passou voando: foram dias intensos de correria (literalmente: foi uma média de 5.500 passos por dia durante essa semana!) e malabarismo de agenda para conseguir encaixar tudo. Essa maratona de 3 ou 4 sessões por dia é sempre cansativa, mas é muito legal ver filmes tão interessantes, com propostas tão diferentes, e poder ouvir e ver pessoalmente as pessoas que os fizeram falarem sobre o processo. Acho que a experiência de uma exibição muda completamente quando a gente assiste guiado pelo olhar de quem o realizou e sinto que essas conversas proporcionam a compreensão de que um filme é sempre muito mais do que aquelas poucas horas que a gente vê na tela. Existiu, muitas vezes, um trabalho de uma vida inteira para que ele pudesse estar ali.
Antes do festival começar, fiz uma lista de filmes que eu queria muito assistir e outros que eu ficaria de olho para encaixar conforme a programação permitisse. Consegui assistir a maior parte do que estava naquela lista e apenas um ou outro não correspondeu à expectativa que eu tinha: vários não só as atenderam como as ultrapassaram. Fiquei bem feliz com a minha seleção e com a sensação de dever cumprido de ter encontrado tantos filmes andantes lindos.
No cafezinho de hoje, trago um pouco mais dos meus filmes favoritos, agora com a perspectiva de quem os assistiu em salas lotadas, vendo toda a reação das pessoas que estavam ali assistindo também. Não vou me estender demais sobre eles, porque quero trazer alguns para as nossas edições convencionais em algum momento. Então, por enquanto, fica aqui o que eu achei de mais legal e interessante para a gente voltar no futuro.
“Parece que Istambul é um lugar onde as pessoas vem para desaparecer.”
Caminhos cruzados era a minha maior expectativa e ela foi completamente ultrapassada com louvor. Falei um pouquinho da sinopse dele na edição #82, e o que eu descobri assistindo é que o título fala muito sobre esse que é um dos filmes mais lindos que eu assisti nesses dias. Essa é uma história de pessoas que se cruzam enquanto seguem seus próprios caminhos e que se juntam em alianças inesperadas para ajudar umas às outras. Em inglês, o título do filme é Crossing e eu acho que isso acrescenta mais uma camada de compreensão. Fronteiras geográficas, naturais e metafóricas são cruzadas pelos personagens nessa grande busca que é uma procura por Tekla, mas também uma procura por si mesmos, pelos nós nunca resolvidos do passado e por uma vida diferente que, aos poucos, eles vão acreditando cada vez mais que são merecedores de ter.
Istambul é um personagem à parte nessa história também, cruzando a caminho dos personagens e sendo cruzada por eles inúmeras vezes. A cidade vai se abrindo para eles com o passar do filme, assim como eles vão se abrindo para ela e uns para os outros. É uma coisa linda demais. Lia é seca e sarcástica, gerando vários momentos engraçadíssimos, mas também é uma mulher de uma sensibilidade imensa. Achi é aquele que não desiste fácil e Evrim, uma sonhadora que faz de tudo para construir uma vida melhor para si e para as outras. O final é completamente emocionante e eu choro só de lembrar - mas lógico que eu chorei horrores o filme inteiro na sessão lotada de estreia no sábado à tarde. Esse já é com certeza um dos melhores filmes que eu vi esse ano e acho que todo mundo ali achou isso também: Caminhos cruzados ganhou o prêmio do público de melhor filme do festival, escolhido entre os filmes nacionais e internacionais.
A estreia dele nos cinemas será no dia 11 de julho e na Mubi no dia 30 de agosto.
“Por que não posso simplesmente viver minha vida do jeito que quero?”
Eu não sou tudo aquilo que quero ser foi uma surpresa. A sinopse do filme já havia me interessado: um filme documentário que conta a história da fotógrafa tcheca Libuše Jarcovjáková e suas andanças por Praga, Tóquio e Berlim contada através de seu trabalho e trechos do seu diário. Eu só não imaginava que isso fosse acontecer literalmente e de uma forma tão íntima, delicada e tocante. Libuše tem um acervo imenso de fotografias, registros guardados desde quando ela era adolescente e comprou sua primeira câmera. O filme inteiro é apenas com essas imagens e a voz que narra é da própria Libuše lendo trechos de seu diário escritos no momento em que as fotos foram feitas.
O filme consegue criar um ritmo tão perfeito, que a gente esquece que está vendo imagens estáticas e ouvindo uma mulher narrar coisas que escreveu décadas atrás. Junto com as fotos há o som da rua, dos carros, da música de uma festa, dos gatos miando. Tudo parece tão vívido, tão presente, e com isso o filme vai nos mergulhando por esse esse caminho junto com Libuše e sua vida que não foi nada fácil. Vemos as suas dificuldades em entrar na universidade por conta do momento político da antiga Tchecoslováquia, seus desentendimentos com os pais, seus primeiros empregos e namorados, a descoberta da sexualidade e dos relacionamentos com mulheres, seus muitos pontos baixos, momentos de extrema vulnerabilidade e de se sentir completamente perdida. É uma vida em um lugar e momento tão distante do nosso, mas é possível se ver ali de muitas formas nas emoções confusas que ela tem sobre si mesma e sobre o próprio trabalho.
É muito comovente ver a insistência dela em continuar fotografando, mesmo quando ninguém mais acreditava nela e, em muitos momentos, nem ela mesma. Levou muito tempo para que o trabalho dela fosse reconhecido e essa parte da história também teve altos e baixos. O trabalho dela é estupendo de lindo e o filme mais ainda. É extremamente emocionante ver essa vida inteira tão singular em um filme, acompanhada dos inúmeros autos-retratos que Libuše fez até hoje, em sua velhice. Um dos filmes que me deixou mais vidrada do início ao fim.
Dá para ter um gostinho de como é o filme com o trailer aqui.
Praia formosa é um filme que eu não havia listado e que me surpreendeu muito. Ele tem um ritmo um pouco teatral misturado com documentário, que imagina a vida de uma mulher negra escravizada no século XIX se sobrepondo ao Rio de Janeiro do presente. A diretora Julia De Simone contou que o filme surgiu de uma pesquisa de mais de 10 anos acompanhando as obras da região portuária da cidade do Rio de Janeiro. Em determinado momento, no Cais do Valongo, foram encontrados em uma escavação inúmeros objetos que pertenciam às pessoas negras que chegavam até a cidade por ali. Toda aquela região compunha o que se chamava de Pequena África e essa é uma parte da história que sofreu um apagamento para dar lugar à imagem de cidade que se quis construir no passado e também agora.
Nesse caminho, acompanhamos Muanza, uma mulher negra escravizada na casa de uma mulher rica portuguesa. Tudo no filme é muito metafórico, nesse passado e presente que se misturam e, em alguns momentos, acontecem ao mesmo tempo. A casa luxuosa do passado é também as ruínas do que ela é hoje; aquela mulher portuguesa é a marca de um pensamento colonial que permanece fortemente enraizado em nossa sociedade; as cenas de Muanza, com suas roupas antigas, andando pela cidade de hoje são de arrepiar. Na contraposição dessa cidade do passado com essa luminosa e “moderna” do presente, o filme nos convida a lembrar em cima de quem foi e continua sendo construída essa cidade do “futuro”. Lindíssimo.
O filme ganhou os prêmios de Melhor Direção de Arte e Melhor Direção de Fotografia.
“É uma jornada que me trouxe tantas coisas, tantas pessoas, tantos lugares. E tantas sensações.”
Quem é essa mulher? é filme lindo e delicado, que acompanha a historiadora Mayara em seu encontro com Maria Odília Teixeira, a primeira mulher negra médica do Brasil. Mayara encontra a informação sobre a Odília em um de seus estágios e se apaixona pelo tema, mergulhando na história dessa mulher durante o mestrado. No documentário, vemos não só as informações sobre Odília, mas também a imensa trajetória de estudos e de pesquisa de Mayara, que também enfrenta vários obstáculos em uma vida acadêmica que permanece sendo, muitas vezes, hostil às mulheres negras. A história de Mayara é possível pelas inúmeras pessoas que vieram antes dela, não apenas a pioneira Odília décadas atrás, mas também sua família, as pesquisadoras que encontrou no caminho, a ajuda de seu companheiro e todas as pessoas que de alguma forma a auxiliaram. É muito bonito ver essa trajetória em conjunto com todas as andanças feitas por ela pela Bahia para encontrar mais informações sobre a vida de Odília. As conversas dela com o filho de Odília, um senhor de 100 anos, são lindíssimas e o final é totalmente emocionante.
Millenial mambo era um dos filmes que eu mais queria ver da Mostra Retrospectiva do diretor Hou Hsiao-Hsien e adorei ele demais. O filme acompanha Vicky, uma mulher de Taipei que está narrando como foi sua juventude 10 anos antes, no ano de 2001, quando ela tinha uns vinte anos. A maior parte do filme se passa em apartamentos apertados e casas noturnas banhadas à luz negra, fumaça de gelo seco e muita música eletrônica, no ápice da virada do milênio. Vicky narra especialmente seu relacionamento altamente tóxico com Hao-Hao e a vida solta regada à cigarros, bebidas e drogas que eles levavam. O filme me fez pensar em muitas coisas e acho que ainda vai levar um tempo para digeri-lo, assim como os vários outros filmes de Hao Hsiao-Hsien que eu consegui ver nesses dias (assisti também O mestre das marionetes, Poeira ao vento, Café Lumiere e Adeus, ao Sul). Nesse cenário noturno, com algumas cenas lindas de andanças pela cidade à noite, Millenial Mambo tem um visual maravilhoso, com todo um trabalho com as luzes que traz uma atmosfera de sonho que se conecta com as lembranças dessa mulher mais velha olhando para o seu passado conturbado.
Além desses, Retrato de um certo oriente (que foi o filme de abertura) tem uma história lindíssima e a fotografia do filme é mais linda ainda. É de ficar abismado com cada cena maravilhosa em preto e branco contanto essa história tão delicada de uma longa travessia para um país desconhecido - e claro, foi lindo demais ver tudo isso em uma tela imensa na Ópera de Arame. Ri demais com Greice e todas as conversas ácidas dessa relação Brasil e Portugal no presente. O filme é leve, engraçadíssimo e inesperado, daqueles que a gente nem vê o tempo passar. Ele levou os prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Atuação para a atriz principal Amandyra e o Prêmio Olhar de Melhor Longa-Metragem. Ri muito também com Um é pouco, dois é bom, filme clássico do diretor Odilon Lopez que teve a estreia da sua cópia restaurada que está em perfeito estado. Dois filmes incríveis.
O filme de encerramento foi Salão de Baile, que trouxe a cultura Ballroom da periferia do Rio de Janeiro em um documentário lindíssimo, cheio de cenas muito engraçadas e outras tantas emocionantes demais conforme a gente vai vendo a importância que o Ballroom e as famílias formadas ali tem na vida de cada pessoa, proporcionando um espaço de reconhecimento, valorização, cuidado, conforto com o próprio corpo e acolhimento.
Fuçando a programação todos os dias, a vontade era de assistir tudo, mas infelizmente não deu tempo de ver muita coisa. Agora que o festival acabou, vou assistir aos curtas que não consegui ver no Itaú Cultural Play, onde eles ficarão disponíveis gratuitamente até o dia 07 de julho.
No geral, foi uma edição incrível, cheia de filmes lindos que eu adorei muito ter assistido. Deixo aqui o meu muito obrigada a você que acompanhou essas andanças cinéfilas por aqui e também pelo instagram nesses dias. Agora é hora de descansar e voltar aos poucos à nossa programação normal <3
E se você assistiu algo nesses dias, me conta o que achou!
Até o próximo passeio :)
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
Que maratona, lu-
Quando eu falo que a Andanças só aumenta minha lista... :)